Nem tudo será como vós dizeis, senhor Lourenço! Quando monsenhor Carlos tiver vencido os suíços e fizer da Borgonha o reino que em tempos foi, aperceber-vos-eis do peso da cólera!
Com um gesto, o borgonhês chamou os dois homens que esperavam a um canto da sala e que faziam, sem dúvida, parte da sua escolta. Ia afastar-se quando se apercebeu da presença dos Beltrami e aproximou-se deles. Um sorriso iluminou-lhe o rosto tão duro instantes antes:
Donzela Fiora, sois aquela que eu desejava ver antes de abandonar este palácio. Pensava, se não dançar, o que não sei fazer, pelo menos conversar convosco por um momento. Creio que vou protelar a minha partida por uns instantes.
Philippe ofereceu o seu punho fechado, para que Fiora depositasse nele a sua mão. Beltrami repeliu-o suavemente.
Não vos demoreis, messire! Acabais de pronunciar palavras que tornam a vossa presença nesta casa pouco desejável. Quanto à minha filha, não vejo que assunto de conversação possais ter com ela!
Mas... todas aquelas coisas encantadoras que podem interessar a uma jovem e, talvez, saber por que razão o seu rosto me é tão familiar. Tenho a impressão de que já a encontrei, sem poder dizer onde nem quando... O que me envergonha. Devia ser impossível esquecer uma tal beleza.
Fiora já abria a boca para dizer que o cavaleiro teria, sem dúvida, conhecido outrora a sua mãe, mas Beltrami não lhe deu tempo.
Sois vítima de uma ilusão, messire. A minha filha só tem 17 anos e nunca saiu deste país. A menos que se trate de um estratagema... utilizado muitas vezes para meter conversa com uma desconhecida! Boa noite, messire! Nós vamo-nos embora!
A voz era cortês, mas o tom não admitia réplica. Selongey não insistiu e afastou-se, saudando e dando passagem ao pai e à filha. Disfarçadamente, Fiora apanhou-lhe o olhar, ao mesmo tempo sonhador e interrogativo. Já não sentiu a irritação que sentira nos encontros anteriores, antes, pelo contrário, uma curiosa impressão de pena, como a que se sente quando se deixa qualquer coisa interessante por acabar. No entanto, respeitava demasiado as vontades paternais para as discutir... senão na intimidade.
No fundo da escadaria reencontraram os seus servidores, que os esperavam para os escoltar até casa com archotes. Nessa noite não seria preciso iluminação, porque as ruas da cidade estavam cheias de luzes, música e alegria. Festejava-se até nas praças, onde, por ordem de Lourenço, se regalava o popolo minuto, o povinho e, por toda a parte, cantores e saltimbancos arrasavam corações ou mostravam as suas habilidades. A noite de Florença, em festa, estava bela e estrelada...
Diante das portas de bronze do Baptistério, cujas personagens douradas pareciam animar-se à luz dançante dos archotes, um bando alegre de estudantes, aprendizes e raparigas envolveu subitamente o negociante e a sua filha numa roda que os isolou, por instantes, dos seus servidores: Há carícias no ar, messer Francesco exclamou, de imediato imitado pelos outros, um dos rapazes. Ainda não são horas de voltar para casa, são horas de dançar...
Eu já não tenho idade para dançar, meus amigos lançou Beltrami com bom humor e a minha filha sente-se cansada... Cansada? Com esses olhos? Um dos rapazes, que trazia um alaúde às costas, saiu da roda. Pôs um joelho em terra diante de uma Fiora divertida e cantou:
Oh rosa colhida do verde ramo. Foste plantada num jardim de amor...
A canção era célebre. Todos a entoaram em coro e Fiora, sorridente, estendeu a mão ao jovem cantor, que a beijou. Ao mesmo tempo, Beltrami abriu a sua bolsa e tirou dela um punhado de moedas, que atirou para o círculo:
A noite ainda é uma menina, meus amigos! Tirai dela o maior divertimento possível à nossa saúde!
As moedas foram apanhadas rapidamente, após o que o bando, ao som dos alaúdes, das flautas e dos tamborins escoltou o pai e a filha até ao seu palácio, onde, com a permissão do dono da casa, os criados portadores de archotes ofereceram de beber a todos, antes de partirem, também, para dançar até ao nascer do dia. Fiora e o seu pai entraram em casa e Beltrami, tendo exprimido a sua vontade de ir trabalhar para o seu studiolo num manuscrito grego recentemente adquirido, foi seguido por Fiora. Sonhadora, ela aproximou-se do retrato, do qual retirou o véu.
Não são horas para isso! reprovou docemente Francesco. Devias ir dormir...
Por favor, pai, deixa-me contemplá-la mais um pouco! Não vês que acabo de a descobrir? Tu nem sequer me disseste o nome dela.
Disse-te que se chamava Marie.
Há tantas mulheres chamadas Marie! Isso não chega.
Para já, chega. Mais tarde, dir-te-ei...
1 Expressão florentina que significa que se está feliz
Isso, na tua boca, significa imensos anos, não é verdade? E eu, que queria tanto saber... Aquele estrangeiro, aquele... Philippe de Selonggy acrescentou ela corando subitamente tê-la-ia conhecido?
Admitindo que isso seja possível, devia ser bastante jovem.
E a semelhança de que ele falou? Beltrami fechou nas suas as mãos de Fiora.
Não insistas, minha filha! Não me farás dizer o que eu quero guardar para mim e acabarás por ficar zangada! Vai dormir! Aliás, eis donna Léonarde, que te vem buscar...
Com efeito, a porta acabava de ranger, como habitualmente, dando passagem à governanta.
Não vos esperava antes da madrugada. Que se passou?
Nada, fui eu que quis voltar para casa. Não me estava a divertir tanto quanto esperava disse Fiora.
Monsenhor Lourenço dançou com ela e ainda se queixa!
Mas Léonarde já não os escutava. Tinha visto o quadro que Fiora tinha deslocado para ficar mais iluminado, perto da chaminé. Ao cabo de um instante, os seus olhos arregalados viraram-se para Beltrami:
Onde arranjastes esta imagem? perguntou ela em voz neutra.
Pintaram-mo segundo as parecenças de Fiora. É espantoso, não é verdade?
Ele deu uma pequena risada falsamente desenvolta, mas Léonarde continuou a não o ouvir.
Porquê?
Simplesmente porque me apeteceu. Não é suficiente?
Um enorme suspiro, que evocava o silvo de uma forja, escapou-se do peito da governanta:
Vós sois o vosso único juiz, messer Francesco, mas permiti que vos diga que não gosto nada. Isto é tentar o destino... e até o diabo, dar a um rosto morto as parecenças de um rosto vivo. Se acontece alguma coisa à criança...
Bagatelas, tudo isso! Não metais tais ideias na cabeça da rapariga, que já tem demasiada imaginação... e curiosidade! Ela disse que estava cansada, ide deitá-la!
Fiora, que seguira o curto diálogo com a atenção que se compreende, ofereceu a fronte ao beijo do seu pai e deixou-se levar sem protestar, mas a perturbação de Léonarde não lhe escapara e, uma vez no quarto, enquanto Khatoun, estremunhada, e a governanta a despiam para a meterem na cama, ela perguntou bruscamente em francês, para ser compreendida apenas por Léonarde:
Vós também não me ides dizer nada?
Acerca de quê?
Acerca da minha mãe. Por que razão não tenho o direito de saber o apelido dela?
Já chega que rezeis por ela. Se o vosso pai não vos diz nada é porque tem as suas razões. Tentai dormir, agora!
Não tenho sono e acho que a história da minha mãe é uma história terrível.
Quem é que vos meteu essa ideia na cabeça? ”
O meu pai, com o que fez esta manhã...
E ela contou o que se passara no studiolo, quando Francesco quis demonstrar-lhe que ela era tão bela como aquela que ele quisera perpetuar numa recordação.
Reparei numa mancha escura na renda e o meu pai acabou por me dizer que era sangue. O sangue da minha mãe! Não me podeis dizer como ela morreu?
Léonarde, que durante o relato dera sinais de agitação, persignou-se várias vezes:
Não!... Não, não conteis comigo para isso! Dir-vos-ei apenas isto: a vossa mãe era uma criatura doce e adorável, que a infelicidade perseguiu durante toda a sua existência. O amor que o vosso pai lhe devotou foi a única dádiva que o destino lhe deu. É por isso que rezaremos sempre por ela. E agora, dormi!
Empunhando as cortinas brancas de damasco do leito, a governanta ia fechá-las quando Fiora a impediu:
Sabeis muito bem que não gosto de dormir fechada. E tenho mais uma coisa para dizer: esta noite, no palácio Médícis, um homem estranho fez-me uma profecia.
Isso já é outra coisa! Que profecia? E a jovem repetiu-lha, acrescentando:
A vossa amiga Colomba, que sabe sempre tudo, deve ter ouvido falar de Demétrios Lascaris! Gostaria de saber o que pensa ela dele.
Certamente nada de bom! rabujou Léonarde. Não deve passar de um charlatão e de um mau homem! Meter semelhantes ideias na cabeça de uma criança como vós! Espero bem que não tenhais acreditado
nem numa palavra! Quanto a monna Simonetta, toda a Florença sabe que ela não passa bem de saúde. Que um médico seja capaz de ver mais longe, é possível, mas não tinha nada que vos dizer essas coisas. Onde havíeis de estar no ano que vem, meu Deus, senão aqui, ou em Fiesole?... A menos que o vosso pai tenha decidido levar-vos numa das suas viagens e nesse caso vós possais enjoar? Não é preciso ir mais longe, porque monsenhor não vos quer casar já.
Achais que sim? disse, aliviada, Fiora, que não tinha pensado naquela eventualidade.
Com certeza, meu passarinho azul. Esquecei tudo isso! Amanhã direi a messer Francesco que vigie um pouco mais as pessoas que se aproximam de vós quando eu não estou convosco...
Mandando Khatoun, que não parava de bocejar, para o leito de almofadas e peles que ela ocupava a um canto do grande quarto, Léonarde apagou as velas, deixando apenas uma de azeite, perfumada, à cabeceira da cama. A pedido de Fiora, deixara a janela meio aberta para deixar entrar o ar fresco da noite.
Estendida no seu grande leito, Fiora, que não era de uma piedade extrema, murmurou uma curta oração e depois, sentindo que o sono lhe tornava as pálpebras pesadas, fechou os olhos.
Reabriu-as quase de imediato. Um ruído seco de vidros partidos, seguido de um choque surdo, fê-la sentar-se na cama e depois deslizar para fora dela. Qualquer coisa batera no batente da sua janela entreaberta, quebrando um dos pequenos quadrados e essa coisa caíra no tapete.
Com a ajuda da vela, Fiora descobriu uma pedra, à volta da qual estava atado um papel, bem apertado. Com o coração a bater com toda a força, a jovem apanhou-a e lançou, depois, um olhar na direcção de Khatoun, mas a pequena escrava não ouvira nada e dormia de punhos cerrados, enroscada no seu ninho de almofadas.
Fiora foi sentar-se no seu leito, recolocou a vela no seu lugar, rasgou com os dentes a guita que fixava a estranha mensagem, desdobrou-a e leu-a. Continha apenas algumas palavras:
«Amanhã espero-vos, durante toda a manhã, na igreja da Santa Trinita. Não poderíeis ir lá rezar? Preciso absolutamente de vos falar!» E estava assinada: Ph. de S.
Corada e confusa, como se o enviado borgonhês tivesse entrado no seu quarto, Fiora virou e revirou o bocado de papel entre os dedos, sem perceber bem se estava furiosa ou perturbada. Que aquele desconhecido tivesse a audácia de lhe marcar um encontro escandalizava-a, mas sem bem se dar conta sentiu um certo de orgulho misturado com uma certa excitação perante aquela espécie de aventura que se lhe apresentava. Uma aventura como as que ela soubera-o ao ouvir Leonard e Colomba conversarem aconteciam a certas jovens senhoras e raparigas da cidade. A questão era saber se iria ou não a Santa Trinita. A igreja era próxima e ela sabia que podia ir lá apenas na companhia de Khatoun. Léonarde ia lá regularmente, todas as manhãs, para a pequena missa da manhã e, logicamente, não acharia útil regressar só porque, extraordinariamente, Fiora se sentia piedosa e disposta a ouvir o santo ofício num outro dia que não ao domingo e nos dias de festa. A jovem não sabia, na sua candura, que, posta a pergunta naqueles termos era já conhecer a resposta e quando, por fim, adormeceu depois de ter queimado o papel e depositado a pedra onde ela caíra, já decidira ir ao encontro de Philippe de Selongey.
A dita pedra e a janela quebrada intrigaram dame Léonarde quando esta as descobriu na manhã seguinte. O ar inocente das duas raparigas bem desempenhado por parte de Fiora, mas autêntico por parte de Khatoun, que não vira nem ouvira nada convenceram-na a atribuir o incidente a um bêbedo qualquer das muitas centenas que floresciam durante as noites de festa. Evidentemente, não era tão ingénua que ignorasse que uma pedra lançada através de uma janela era um meio conhecido de fazer chegar uma mensagem, mas pensou que nesse caso Fiora teria feito desaparecer, tanto a pedra, como o bilhete. E tranquilizou-se ao pensar que o expedidor, a ser um galanteador, não podia ser senão Luca Tornabuoni, ou um dos outros admiradores da jovem. Em qualquer dos casos, o mal não era grande.
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