Mal teve tempo de ver luzir o aço da pesada espada brandida a duas mãos. Tudo acabara. Os ajudantes do carrasco já se apressavam a arranjar lugar para a próxima vítima. Desajeitado, sem dúvida, ou demasiado emocionado, um deles, ao afastar o corpo da jovem, ergueu-lhe o vestido até aos joelhos, deixando ver umas meias de seda vermelha. A multidão rugiu, indignada. Arny Signart, o carrasco, saltou de imediato. Com toda a força, esbofeteou o desajeitado, que rolou para cima do pano ensanguentado, agarrando-o depois com uma mão e obrigando-o a ajoelhar-se diante do despojo delicado em sinal de arrependimento. A multidão murmurou, satisfeita.
Era a vez do jovem, que se desprendeu dos braços do padre, se ergueu para a plataforma, levantou do chão a cabeça loura para lhe dar um último beijo e se deixou cair de joelhos.
Despacha-te, carrasco! Tenho pressa de me juntar a ela...
Não receeis! Não falta muito.
A espada ergueu-se. Outro relâmpago, outro choque e a cabeça do jovem rolou para perto da da jovem. Estava visto e o povo começou a afastar-se pelas ruas adjacentes no meio de um profundo e pouco usual silêncio. O toque a finados, por fim, cessou. Mas Francesco não se afastou. Pelo contrário: entregando o seu cavalo a Marino, avançou para o cadafalso onde o padre, de joelhos, rezava após ter lançado uns sudários para cima dos corpos mutilados. O carrasco e os ajudantes olhavam para ele, não ousando interromper a oração, quando subitamente um homem ricamente vestido com um manto negro forrado de cinzento se lhes juntou. A sua voz áspera repercutiu-se no ar frio, sinistra como a voz de um corvo:
Então, senhor Signart, que esperais para pegar no que vos pertence por direito? As roupas dos supliciados já não pertencem aos executores?
O padre cessou a sua oração e ergueu para o homem um olhar pleno de terror e dor. Ao mesmo tempo, estendeu as duas mãos por cima dos corpos, num gesto de protecção irrisório, mas tocante:
Respeito pela morte, messire Regnault! Em nome de Deus, que sofreu na cruz, retirai-vos. A vossa vingança completou-se.
Não estará completa enquanto estes miseráveis não forem atirados para a fossa malcheirosa que os espera! Vamos, carrasco, tira o que te é devido! Despe-os!
Sem responder, este tirou, com um gesto enfadado, a máscara que fazia dele o artífice impessoal dos actos de justiça, mostrando um rosto rude e triste, cercado por uma barba cinzenta.
Não, messire, eu não quero estes despojos, por mais ricos que sejam. Não me dariam sorte... nem a mim, nem aos meus!
O homem do manto não teve tempo de responder. Francesco interpôs-se subitamente entre ele e o executor, ao qual estendeu algumas moedas de ouro.
Falastes bem, mestre! Mas, como se trata de uma lei, tomai isto: eu compro-vos os trajes. Podeis enterrá-los com eles, padre!
Que tendes vós com isso? resmungou o homem a quem o padre chamara Regnault. Eu tenho todos os direitos sobre estes dois, que foram, aliás, condenados às penas do inferno.
Visto de perto, Regnault estava medonho, pelo ódio que lhe torcia diabolicamente o seu longo rosto de pele amarela, de pequenos olhos cruéis e penetrantes. Aquele homem transpirava fel por todos os poros da sua pele vil. Só lhe faltava uma língua bífida saindo-lhe da grande boca de dentes enegrecidos, para se parecer com uma serpente. Uma violenta cólera apoderou-se de Francesco, que agarrou o homem pelo manto:
Condenados às penas do inferno? Sois Deus, por acaso?
Esta... esta mulher... foi-me dada em casamento... arquejou o homem meio estrangulado.
Entre nós, a Igreja diz que o casamento vale até que a morte separe os cônjuges. Foi o que aconteceu. Ide-vos!
O jovem ia atirar o homem do cadafalso abaixo quando o padre se interpôs. Docemente, mas firmemente, obrigou Francesco a largar a presa:
Dissestes o que era preciso dizer. Deixai-o ir, agora! E vós, Regnault du Hamel, abandonai esse ódio e pedi perdão ao Todo-Poderoso!
Massajando a garganta dorida, a personagem desagradável, depois de um olhar mortífero lançado a Francesco, desceu as escadas. Quando chegou lá abaixo, considerando-se suficientemente afastado daquele inimigo inesperado, mostrou-lhe o punho, zombando:
Eu não sei quem tu és, estrangeiro, mas, a despeito do teu ouro, não poderás fazer com que esta fêmea não seja atirada para a fossa dos pestilentos com o seu cúmplice. Os soldados encarregar-se-ão disso!
Com efeito, o sargento que assistira à execução reunia os seus homens em redor da carroça que mandara avançar. Com o olhar, Francesco interrogou o padre. Este abanou a cabeça com ar desolado:
Infelizmente, ele tem razão! Estas pobres crianças não têm direito a uma sepultura decente. A sentença foi cruel a esse ponto. E eu até tive muita dificuldade para obter o direito de as acompanhar. Mas, mesmo que mo tivessem proibido, teria vindo na mesma. Não sabeis... mas eu vi-os nascer, tanto um como o outro.
Então, eu vou convosco. Deixai-me ajudar-vos.
Por que razão? Eram vossos conhecidos?
Vi-os hoje pela primeira vez, mas sinto que tenho de o fazer. Há qualquer coisa que me leva a fazê-lo.
Receio que vos possais arrepender quando souberdes porque foram condenados e qual foi o seu crime.
Francesco encolheu os ombros.
Eram irmão e irmã... e amavam-se... demasiado! Disseram-me. Mas, estamos a perder tempo.
Entre os dois envolveram os corpos supliciados nos seus sudários e levaram-nos para a carroça. De repente, Francesco apercebeu, abandonado sobre o pano negro, o pequeno chapéu de renda; agarrou nele. Ao sentir nas mãos aquele ornamento encantador que ainda há pouco adornava a beleza delicada da jovem morta, sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Rapidamente, escondeu-o junto do coração, abrigado pelo manto e juntou-se à sua gente que continuava à espera na entrada da praça.
Esperai-me no albergue da Cruz de Ouro disse ele a Marino. Eu já lá vou ter. Nem uma palavra acerca do motivo da minha demora!
Não me conheceis? Ninguém dirá nada. Tendes a certeza que não precisais de ajuda?
Tenho. Tenho uma arma e ouro. É mais do que o necessário para me defender em caso de necessidade.
Levando o seu cavalo pela rédea, Francesco seguiu a pé a carroça, na qual o padre, sentado entre os dois corpos, retomara as suas orações. Transpuseram a porta de Ouche e os fossos e depois obliquaram na direcção de uma construção meio arruinada, que se erguia não longe da estrada de Beaune, entre as antigas fábricas de curtumes e um campo de estrume. O local era deserto e malcheiroso; no entanto estava lá um homem em pé, apoiado a uma enxada, o nariz e a boca escondidos por um lenço atado no pescoço. A seus pés, o buraco que tinha escavado na terra viscosa punha uma mancha negra na paisagem nevada. Foi na direcção dele que se dirigiu o pequeno cortejo que o senhor du Hamel seguia a distância. Ao ver o buraco lamacento, no qual apareciam fragmentos de ossos, Francesco não pôde reter o seu desgosto: aproximou-se do sargento.
Será mesmo impossível encontrar outra sepultura, em vez deste buraco infecto? perguntou ele levando a mão à bolsa. O soldado reteve o gesto esboçado:
Não, messire. O que pedis é impossível, porque isto foi ordenado pela justiça. É necessário que ela seja cumprida, mas acrescentou ele em voz baixa senti-vos feliz por os enterrarmos. Se tivéssemos escutado o marido, estes infelizes teriam sido pregados pelos sovacos ao patíbulo que vedes além, à beira da estrada, para apodrecerem lentamente ao vento, à chuva e sob as pedradas que os miúdos atiram sempre sobre os corpos que têm este triste fim.
Francesco fez sinal de que tinha compreendido e recuou. Alguns instantes mais tarde, aquela fossa terrível fechava-se sobre os despojos daqueles dois seres jovens e belos que teriam podido viver longos anos felizes e despreocupados, se o amor não lhes tivesse estendido uma das suas mais terríveis armadilhas: a paixão contranatura.
Subitamente, o céu pareceu mais cinzento a Francesco, como se acabasse de perder uma parte da sua luz e o frio tornou-se mais áspero. O jovem virou-se para o velho padre, que apertava friorentamente o seu manto negro em redor dos ombros magros:
Gostava de falar convosco, padre. A minha gente espera-me na Cruz de Ouro. Vinde comigo, temos os dois uma grande necessidade de recuperar as nossas forças.
O velho homem quis recusar, mas não tinha forças para contrariar o florentino, uma vez decidido a qualquer coisa. A despeito dos protestos, viu-se sentado em cima do cavalo daquele amigo caído do céu, que segurou nas rédeas e se dirigiu a passo para a cidade, para onde já regressavam, também, os soldados e a carroça. Mas, ao passarem por Regnault du Hamel, que parecia esperar a sua partida, o jovem escarrou-lhe violentamente aos pés. Nunca sentira tanta vontade de matar... nem semelhante asco por um ser humano. No entanto, uma hora antes, nunca tinha visto aquele homem. Fora preciso aquele encontro, na volta do caminho, com um rosto de anjo caminhando para o martírio, para que o seu próprio universo se tornasse num pesadelo, onde, de Maneira inexplicável, se viu perfeitamente à-vontade. Aquela gente tinha invadido, com o seu amor e sofrimento, a sua existência agradável de epicurista e diletante um pouco egoísta. E nem sequer sabia os seus nomes...
Eles chamavam-se Jean e Marie de Brévailles e eu chamo-me Antoine Charruet, sou abade da aldeia e capelão da família. Como vos disse ainda há pouco, vi-os nascer e eram-me tão queridos como se fossem meus próprios filhos. A infância deles desenrolou-se no castelo paternal, uma bela e rica mansão que domina as águas perigosas do Doubs. Os pais deles, Pierre de Brévailles e Madeleine de la Vigne vivem nele como proprietários rurais e como fiéis súbditos do nosso duque Filipe que Deus guarde, se bem que não ouça sempre os apelos de misericórdia...
O padre benzeu-se e depois, pegando na sua taça, bebeu algumas gotas de vinho. Ele e Francesco tinham acabado a refeição que o florentino mandara servir no seu quarto, onde um bom fogo fazia com que ali reinasse um calor agradável. O rosto do ancião, tão pálido ainda há pouco, ganhara cor, mas a sua mão tremia e era visível que as lágrimas não estavam longe.
Preferis repousar um pouco, padre? perguntou docemente Francesco. Receio que este relato vos seja ainda mais penoso.
Não. Não, pelo contrário, faz-me bem falar deles... tentar... explicálos a alguém que tenha compaixão... Os Brévailles tinham ao todo quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Jean, o mais velho, era três anos mais velho do que Marie, mas desde tenra infância que era possível ver que uma profunda afeição, exclusiva e tenaz os unia. Os pais, assim como eu, não se preocupavam, limitando-se a sorrir. Chamavam-nos «gémeos», porque se pareciam de Maneira espantosa e porque, entre todos os irmãos, eram de uma beleza extraordinária, como pudestes ver, messire. Foi um capricho da natureza e nós víamos nisso a razão para a preferência de Jean por Marie e de Marie por Jean. Os Brévailles sentiam-se orgulhosos da sua beleza e citavam como exemplo a ternura mútua, sem que por um instante pensassem que esse amor se tornasse, com os anos, menos puro. Aliás, que pais teriam semelhante ideia?
É difícil de imaginar, sem dúvida, mas há exemplos. Falou-se de um conde de Armagnac e da irmã...
Quando se pertence a uma grande família, talvez se pense que se está acima das regras da moral e da opinião pública! Entre os Brévailles, que vêm de uma boa nobreza, não seria possível permitir um tal escândalo. Quando Jean fez 13 anos, o chanceler da Borgonha, mestre Nicolas Rollin, que é amigo da família, conseguiu que ele entrasse como pajem para o serviço do senhor conde de Charolais, filho do duque Filipe, a fim de ali aprender ao mesmo tempo o Manejo das armas e as Maneiras da Corte. Messire de Brévailles, que tinha renunciado às armas depois do cerco de Compiègne, onde foi gravemente ferido, ficou muito feliz com aquela circunstância, que ia permitir ao seu filho aprender a nobre arte da cavalaria sob as ordens de um príncipe fervoroso discípulo de tal arte. E Jean partiu para Lille.
«Não é possível descrever o que foi o desespero de Marie. O seu desgosto pela partida do irmão foi tão violento que a sua mãe temeu, por um instante, pela sua razão e a criança adoeceu por um período de vários meses antes de recuperar a saúde.
»A ausência de Jean durou quatro anos. De pajem passou a escudeiro de monsenhor Carlos e quando em 1455 regressou a casa para passar o Natal com os seus, todos puderam ver que trazia uma expressão extremamente altiva. Quanto a Marie, que aprendera o canto, a dança, a música e a economia doméstica, a sua beleza florescera com um tal brilho, que os pedidos de casamento começaram a afluir. Ela recusava-os todos, dizendo que não pretendia abandonar a casa dos seus pais, onde se sentia plenamente feliz.
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