Não receeis! Não procurarei regressar, porque perderia a minha alma. Ficai a saber que vivi durante algumas horas toda a felicidade que poderia esperar. Nunca esquecerei esta noite... e espero que Fiora também não! E agora, adeus, messer Beltrami! Cuidai bem dela!
Cobrindo as mãos com as grandes luvas que levava à cintura, Philippe dirigiu-se para a porta, mas Beltrami deteve-o e, tirando do seu longo traje de veludo negro um rolo de pergaminho selado, estendeu-o ao jovem.
Um instante, senhor conde! Esqueceis-vos disto. Não é este o preço dessa famosa nódoa que vos suja a honra?
Philippe empalideceu e esboçou um gesto de recusa. Hesitou:
Gostaria de vo-la poder atirar à cara, a vossa letra rugiu ele mas monsenhor Carlos precisa desse ouro. Mas ficai tranquilo! Esta soma ser-vos-á devolvida e com juros, quando a minha mulher, depois da minha morte, herdar os meus bens.
Raivosamente, o jovem arrancou o rolo das mãos de Beltrami, meteu-o dentro do gibão e saiu a correr, perseguido pelo riso irónico do negociante. Atravessando uma pequena parte do jardim que o amanhecer tornava acinzentado, dirigiu-se para as instalações dos criados, onde os seus homens o esperavam e onde Frames já se encontrava.
De pé na zona sombria da escadaria onde a altercação dos dois homens a tinha gelado, Léonarde fez um rápido sinal da cruz ao ouvir diminuir o som dos passos daquele estranho marido que tinham dado a Fiora. O que acabava de ouvir explicava muita coisa e percebeu os termos daquele contrato, pelo qual uma criança fora atirada para os braços de um homem que nunca vira antes. A velha dama desceu lentamente os últimos degraus e juntou-se a Beltrami, que, na soleira da porta, apontava um punho furioso para um jardim vazio.
Ele sabia, nesse caso? perguntou ela docemente. Francesco, que esquecera a sua presença, estremeceu e olhou para ela sem dizer nada. O seu braço caiu, sem força, ao longo do traje. Encolhendo os ombros, suspirou, por fim:
Se não soubesse, achais que lhe teria dado Fiora? Lourenço de Médicis recusou-lhe o empréstimo que ele veio pedir para o duque da Borgonha. A mão da minha filha... e o seu dote foram o preço do seu silêncio! Um belo preço, como vedes!
Um homem com aquele nome e aquela qualidade, baixar-se a um negócio tão vil? Mal consigo acreditar. Os Selongey sempre foram gente de carácter rude, difíceis de conviver, mas de uma lealdade sem falha para com os seus duques e incapazes de uma baixeza. E porquê? Por ouro? Eles nunca foram pobres e os seus privilégios devem permanecer intactos...
É a sua única desculpa: ele não queria este ouro para ele. Não o ouvistes? Mas agora, graças a Deus, foi-se embora e para sempre! Nunca mais o veremos!
Nunca mais? Ele tem intenção, então, de abandonar uma jovem esposa pela qual parece, no entanto, apaixonado...
Não, mas tem intenção de se deixar matar na guerra. Ele ama Fiora, ou, pelo menos, é o que ele diz e talvez seja verdade, mas acha que, ao casar com a filha de uma gente desonrada, feriu a grandeza do seu nome.
Casou com a filha de um dos maiores homens de Florença. Não tem razão para se envergonhar, parece-me, por mais Selongey que seja? Ninguém, aqui, ouviu falar, nunca, dos Brévailles...
Sem dúvida, mas para ele a mancha é insuportável.
Como é que ele soube?
Palavra de honra que não sei. Diz que se sentiu surpreendido com a semelhança. Irmão e irmã, os jovens Brévailles eram muito parecidos. A filha de ambos é o retrato, tanto de um como do outro. E agora, peço-vos, dame Léonarde, não falemos mais desta personagem que eu desejo esquecer o mais depressa possível.
Achais que conseguireis o mesmo por Fiora? Ela entregou-se a ele demasiado espontaneamente para que o seu coração ainda lhe pertença e ela não é daquelas que amam duas vezes, era capaz de o jurar. Ela vai sofrer...
Agora não! Ainda não! Ela sabe que ele teve de partir para se juntar ao seu duque diante de Neuss. Vai esperar por ele. Será então, quando souber da sua morte, que vai sofrer. Só desejo que a espera não seja muito longa: a dor será, talvez, mais violenta, mas mais breve...
Mas talvez venha a ser longa. Um cavaleiro não tem o direito de se entregar à morte, sob pena de perder a alma e, de certa maneira, a honra. É preciso que morra defendendo-se, que encontre quem seja mais forte do que ele. E a acreditar nas histórias do seu escudeiro, um tal adversário não é fácil de encontrar... Concluístes um estranho negócio, ser Francesco! Talvez Deus se divirta a contrariá-lo...
Veremos. Por agora, alegremo-nos por a nossa Fiora não nos ter sido levada. Poderemos continuar a rodeá-la, a protegê-la.
Ela nunca usará o nome do marido?
É evidente que sim. Desde que a conjuntura política o permita e sem ofender os Médicis, declararemos o casamento.
E se o pudermos declarar ao mesmo tempo que a morte do marido, melhor, não é verdade? disse Léonarde com uma amargura que não conseguiu evitar. Acabava de compreender que, se Philippe não tivesse exigido a sua noite de núpcias, Beltrami teria achado o incrível negócio a seu gosto e descobriu que o melhor dos homens podia abandonar-se a um egoísmo impiedoso. Francesco Beltrami devia ter sofrido um martírio naquela noite em que Fiora se entregara ao desejo de um homem, mas, agora, só queria pensar na felicidade que representava poder ficar com a sua filha junto de si para sempre...
Bem, tudo acabou bem! suspirou ela. Mas chegou a hora de ir para o pé dela, para quando acordar. É possível que ela não ache esta manhã tão feliz como vós...
Léonarde sentia grande dificuldade em dissimular a cólera. Com quantas lágrimas iria a sua criança pagar uma felicidade que só durara três dias e uma noite? Beltrami não compreendia que ela nunca mais seria a mesma uma vez passada a soleira do amor físico? E se viesse um filho?
Espero que isso não aconteça respondeu ela para si própria. Se for mãe, Fiora nunca conseguirá esquecer este marido de poucas horas e o esquecimento é o melhor que lhe pode acontecer.
Mas não acreditava. Lentamente, sempre com as mesmas precauções, regressou ao quarto onde a jovem continuava a dormir e puxou uma cadeira para o pé do leito, para ali aguardar o seu despertar. Não queria que ela abrisse os olhos para um quarto vazio. E, com efeito, quando Fiora acordou, foi o rosto familiar de Léonarde que ela viu. Ofereceu-lhe um sorriso radioso:
Estáveis aí? Já é tão tarde?
Quase meio-dia. Dormistes bem?
Mas Fiora já procurava alguém naquele leito subitamente tão grande, mas que guardava ainda sinais de outro corpo:
Philippe!... Onde está ele?
Léonarde saiu da cadeira e sentou-se perto da jovem.
Partiu disse ela tão docemente quanto pôde, subitamente horrorizada ao ver os olhos de Fiora, uns instantes antes enublados, iluminarem-se rapidamente e arregalaram-se:
Partiu?... Mas não para...
Para se juntar a monsenhor o duque da Borgonha. Abandonou esta casa.
E vós deixastes-me dormir?
Nunca Fiora olhara para a sua velha amiga com aqueles olhos, ardendo de cólera.
Ele não quis que vos acordassem. Temia, creio, o momento sempre difícil da partida. Limitou-se a cortar, para levar com ele, uma mecha dos vossos cabelos...
Ele tinha mesmo de ir já? Não podia esperar mais algumas horas? Fomos tão felizes juntos!... Mas talvez ainda não esteja longe...
Fiora saltou transtornada do leito e, sem mesmo pensar em cobrir-se com uma roupa qualquer, correu à janela, que abriu de par em par. O céu estava cinzento e o vento varria a chuva fina que caía desde o meio da manhã, mas Fiora não quis saber:
Philippe! chamou ela em voz alta. Philippe! Regressa!
Beltrami, que dava um passeio pelo jardim para acabar de expulsar os vapores da sua noite maldita, ouviu os seus gritos, levantou a cabeça e ficou confuso com o que viu: uma mulher nua, desgrenhada, gritando desesperada ao vento húmido. Uma mulher que não era, não podia ser a sua filha. A voz quente e doce de Fiora não poderia emitir aquele clamor rouco de leoa chamando o seu macho...
Os gritos não cessavam, a imagem impudica e enlouquecida não se apagava. Então, como um cego e com as duas mãos nos ouvidos para não ouvir mais, o infeliz enfiou-se através dos arbustos despidos pelo Inverno, até ao abrigo precário, mas surdo, de uma pequena gruta, onde, para um tanque, corria água de uma cabeça de leão. Ali, deitado na terra húmida, Francesco Beltrami chorou as suas ilusões perdidas. O estrangeiro só pedira uma noite, mas essa noite fora suficiente para fazer de Fiora uma outra mulher, a mulher «dele». E a criança de outros tempos nunca mais regressaria...
CAPÍTULO V
HIERONYMA
Tu mudaste, Fiora... Há dias que te observo e de cada vez isso me parece mais evidente. Tinha que to dizer, hoje.
Fiora sorriu para a sua amiga. O rosto gentil de Chiara tinha, com efeito, uma ruga de preocupação, que lhe era pouco usual e que lhe dava uma certa gravidade.
Em que é que eu mudei assim tanto?
Ris-te menos do que antigamente e vejo que por vezes, quando estamos juntas, pareces pensar noutra coisa. Não respondes às perguntas que te faço, ou então respondes por portas e travessas. Mas há outra coisa mais grave...
Mais grave? O que é, meu Deus?
Antes de ontem, quando, perto do Baptistério, estávamos a ouvir a história do contador de fábulas, Giuliano de Médicis, que estava de passagem com alguns amigos, veio cumprimentar-nos. Habitualmente, quando o vias ficavas vermelha como um tomate. Desta vez, mal olhaste para ele, o que o deixou vexado, creio.
Ora, e eu ralada. Para que precisa ele da atenção e admiração de todas as mulheres se as suas vão exclusivamente para Simonetta? É só presunção, mais nada!
Que linguagem é essa? Já não o amas?
Eu amei-o alguma vez? Creio... que me agradava. Mas agora já não... pelo menos já não tanto.
Deixando a sua amiga especada de espanto, Fiora deu alguns passos na direcção do murete de pedras baixas, de onde se via toda a cidade de Florença e para lá. As duas amigas, escoltadas pelas suas governantas e por Khatoun, tinham saído a cavalo para se dirigirem a San Miniato, como sempre que chegava a Primavera, para colher violetas e espinheiros-alvar, que cresciam em abundância em redor da igreja de San Miniato al Monte e do palácio dos Bispos. As jovens diziam que elas eram ali mais belas, naquele local bendito, do que noutros locais e que, dali do alto, tinham a impressão de que toda a cidade se abria como uma gigantesca flor. À luz nova da Primavera, Florença parecia acumular beleza como um avarento acumula o seu ouro: um pouco mais, se bem que já haja muito...
Fiora teria preferido fazer aquele passeio tradicional com Philippe, contemplar com ele, para além da longa fita loura do Arno cheia de pontes que pareciam prestes a afundar-se sob a acumulação de lojas, a confusão de telhas vermelhas sobre o ocre-quente, o cinzento-suave ou o branco-leitoso das paredes. Era como que um tapete de rosas, de onde emergiam jóias: o Duomo, uma bolha de coral pousada sobre uma manta de retalhos brilhante, uma flor-de-lis de prata jamais desabrochada por completo sobre o palácio dos Senhores, espirais de coralina cujas seteiras tinham o ar de borboletas e campanários que se pareciam com círios de Páscoa na alegria dos seus mármores polícronos. E depois, um pouco por toda a parte, a verdura nova dos jardins, onde desabrochavam as glicínias e os lilás, os loureiros e as camélias, porque em parte nenhuma, no mundo, a Primavera era mais bela do que em Florença... nem mais maravilhosa de admirar do que de mão dada com o seu marido e regressar depois com ele ao cair da tarde e sob um Sol poente glorioso como o de Fiesole, prelúdio de uma noite de amor. Mas Philippe estava longe, a centenas de léguas dos seus braços e Fiora nem sequer tinha a consolação de saber onde ele estava exactamente.
Há já dois meses que ele tinha deixado a villa Beltrami, dois meses que poderiam muito bem ser dois séculos, porque Fiora nunca achara o tempo tão vagaroso. Após os três dias que passara fechada no quarto sem consentir em sair, sem ver outra pessoa que não Khatoun, que lhe levava as refeições e sem permitir que lhe mudassem sequer os lençóis onde Philippe a amara, consentira, por fim, em sair quando Léonarde aparecera para lhe dizer que o seu pai se preparava para partir para Veneza. Não podia deixar que ele se fosse embora sem o abraçar.
Quando o reencontrou e viu virar-se para ela aquele rosto pálido de olhos tristes como nunca tinha visto antes, teve vergonha de si própria e da sua reclusão egoísta. Devia puni-lo só porque a sua felicidade desaparecera? Então, cedendo ao impulso da sua ternura filial, caíra-lhe nos braços e tinham ficado longos momentos abraçados, chorando os dois lágrimas diferentes, mas que, ao fim e ao cabo, os uniam...
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