Ama-lo assim tanto? perguntara Francesco com a voz sem entoação. Ama-lo ao ponto de já não me amares a mim?
Não te amar? Oh, pai, espero que nunca tenhas acreditado em semelhante coisa? Ninguém, nunca, te poderá substituir no meu coração. Ele é diferente... é meu marido. Não é a mesma coisa. E peço-te perdão por estes três dias, mas eu não queria que me visses chorar...
Mas tu estás a chorar neste momento, Fiora... e eu também. Não achas que o desgosto se suporta melhor quando o partilhamos?
É por isso que partes? Para melhor o partilhar? Ou queres-me punir?
Não. É porque Lourenço de Médicis, tendo descoberto a minha amizade por Bernardo Bembo, me pediu para ir ter com ele por alguns dias. Não me peças que te diga porquê...
Teria sido incapaz. Aquela viagem, com efeito, não passava de um pretexto para se poder afastar por algum tempo de Fiora, para tentar voltar a ser ele próprio longe de um olhar que podia ser demasiado perspicaz. Tinha necessidade de colocar alguma distância entre ambos, para melhor se habituar àquela nova Fiora que entrevira à chuva numa manhã de dor: uma mulher ardente e apaixonada, que se entregara de corpo e alma a outro...
Por seu lado, a jovem acolhia com uma secreta satisfação aquela curta separação. Percebera que aquele casamento não era de todo agradável ao seu pai e que não teria qualquer prazer em ouvi-la, a ela, cantar elogios, ao longo do dia, a um marido perfeito.
Beltrami partiu, portanto e Fiora, tendo regressado como desejava ao palácio nas margens do Arno, pôde dar-se à alegria de cantar o seu amor por Philippe, para benefício, apenas, dos ouvidos de Léonarde e Khatoun. Depois, acalmou-se. Após o desgosto da partida e a alegria retrospectiva, Fiora entrou na espera do regresso que desejava próximo, °u, pelo menos, de uma mensagem. Permaneceu longas horas no seu quarto, ou no jardim, escutando Khatoun que cantava para ela e contemplando o grosso anel de ouro batido com as armas dos Selongey, que Philippe lhe enfiara no dedo ao tomá-la como esposa. Era demasiado largo para o seu dedo delgado e como não era possível mandá-lo estreitar por um joalheiro, ou sequer usá-lo em público, a jovem metera-o num delgado e longo fio de ouro, que lhe permitia escondê-lo sob os vestidos. O anel pendia-lhe entre os seios e ela gostava, quando não lhe era possível tirá-lo, apoiar-lhe a mão em cima, para melhor sentir a sua presença.
Quando Francesco regressara da sua viagem, ela oferecera-lhe, para o seu beijo, uma fronte serena e a vida recomeçara, como no passado, na casa dos Beltrami. Só, Léonarde dera um grande suspiro de alívio ao constatar que depois de mais de um mês, a jovem não apresentava qualquer sinal de maternidade...
Chiara respeitou por um momento a meditação da sua amiga. Aliás, ela própria precisava de pôr os seus pensamentos em ordem. Aproveitou para aumentar ainda mais um grande ramo de violetas que já tinha nas mãos e depois, achando que o silêncio já ia longo, lançou uma olhadela a Léonarde e a Colomba, que, sentadas à sombra de um pinheiro, conversavam sem parar, ao mesmo tempo que mantinham os dedos vagamente ocupados com um bordado. E meteu o braço no da sua amiga:
Já sonhaste o suficiente? perguntou ela alegremente. Contemplas a nossa bela cidade como se a visses pela última vez.
Devias dizer, como se a visse pela primeira vez. Já viemos aqui muitas vezes por esta altura, mas este ano Florença tem um encanto diferente. Até as muralhas e as torres de vigia parecem participar da beleza geral. Gostaria...
De estar aqui com outra pessoa que não uma velha amiga! É exactamente o que eu penso: já não estás apaixonada por Giuliano porque estás apaixonada por outro... por outro que está longe! E aposto que é por messire Philippe de Selongey!
Inesperado, aquele nome, doravante o seu, atingiu Fiora tão repentinamente que ela estremeceu e corou.
Fala mais baixo, por favor! Ou melhor: não fales de todo!
É assim tão grave? murmurou Chiara elucidada. Desculpa-me! Pensava que era uma paixoneta passageira, como tantas outras que temos e que desaparecem com o vento, como a que tiveste por Giuliano. Sabes, ao menos, se voltas a vê-lo?
Creio que sim disse Fiora com um sorriso que se dirigia mais aos seus próprios pensamentos do que à amiga. E agora falemos de outra coisa! Aliás, não são horas de voltarmos? Já temos flores suficientes para duas ou três igrejas!
Elas costumavam, com efeito, oferecer todos os anos a sua recolha a Santa Maria del Fiore, acrescentando à sua oferenda perfumada um generoso donativo para as crianças pobres, das quais se ocupavam os curas da catedral. Iam, portanto, juntar-se a Colomba e a Léonarde, que, por seu lado, já juntavam as suas coisas, quando, subitamente, Fiora deteve a sua amiga.
Espera! disse ela com a voz oprimida...
Que é que se passa? Estás doente?
Não... não, mas tenho uma sensação bizarra... Há pouco, disseste que eu estava a olhar para a cidade como se a visse pela última vez...
Sim... mas foi uma brincadeira. Disse aquilo porque tu tinhas uma expressão de avidez... como se quisesses absorver aquilo tudo com os olhos. E tu respondeste-me...
Eu sei... mas agora pergunto a mim própria se não terás tido razão. Sinto qualquer coisa que me diz... que não regressarei a este local!
Que loucura! Continuas a pensar na profecia do médico grego?
Não. Juro-te que não... nem sequer pensei nele... mas tive como que um pressentimento, como se Florença se me tornasse, subitamente, hostil... me rejeitasse, a mim, que a amo tanto!
Achas que ela te quer mal porque amas um estrangeiro, quando tantos dos seus filhos suspiram por ti? Expulsa essas ideias! Tens vivido demasiado retirada, estes últimos tempos. O que precisas é de uma bela festa, onde brilhes com todo o teu fogo e onde o grande Médicis dance mais uma vez contigo! Ora ai está! É isto, precisamente, o que te falta!
Com efeito, um grupo de jovens, conduzidos por Luca Tornabuoni em alegre cavalgada, desembocava no pequeno adro da igreja.
Tinha a certeza que vos encontraria aqui disse o jovem saltando para terra e tirando o chapéu. Não é neste dia do ano que colheis flores para a Madona?
E vós vindes ajudar-nos? perguntou Chiara, rindo-se.
A levar tudo isso? Certamente. E também para vos escoltar até ao Duomo, para juntarmos as nossas orações às vossas!
Eis-vos bem piedoso, ser Luca! disse Léonarde, que se juntara ao grupo. Cria-vos um discípulo fiel de Platão e eis que falais da Madona como se quisésseis entrar para um convento.
Nunca desejei tal coisa e há um tempo para Platão e um tempo para rezar. Parece-me acrescentou ele olhando ternamente para Fiora que se me ajoelhar aos Seus pés na companhia de certa jovem ela ouvirá melhor as minhas preces...
Esperava uma risada da jovem, mas esta desviou os olhos, incomodada com a imagem que ele evocara e fez como se não tivesse ouvido. Pensando, então, que fora demasiado arrojado, o jovem foi buscar o cavalo de Fiora e ajudou-a a subir para a sela:
Algo me diz que hoje não estou inspirado, Fiora murmurou ele procurando-lhe o olhar mas queria tanto que me autorizásseis a enviar o meu pai para falar com o vosso! Eu sei que ele vos acha ainda muito nova, mas se, pelo menos, nós fôssemos noivos... eu esperaria o tempo que vós desejásseis! O ânimo não nos falta, quando sabemos que podemos ter esperança!
Pela primeira vez ela olhou para ele com uma espécie de ternura. Ela, que só podia viver de esperança, podia compreender o que sentia o jovem, mas não tinha o direito de lhe dar qualquer esperança.
Não me faleis mais disso, Luca! Perdeis o vosso tempo e o vosso coração comigo. Eu não quero deixar o meu pai e...
... e não me amais! Como vedes, completo a vossa frase. Digo o que vós não ousais dizer. Mas, se não me amais no momento, talvez me ameis mais tarde. Vós mesma o dissestes: ainda sois muito nova... Não! Não digais mais nada! Estamos na Primavera e o tempo está lindo. Deixai-me continuar a sonhar!
O jovem regressou para o seu cavalo e o pequeno bando, carregado de grandes ramos e folhas perfumados desceu na direcção da cidade, ao mesmo tempo que um dos rapazes cantava um romance em honra da Primavera. Todos cantaram o refrão em coro e todos riram muito, mas Fiora não conseguiu afinar pelo mesmo diapasão. À medida que avançavam, a tristeza que se apoderara dela em San Miniãto acentuava-se, E juntava-se a ela uma impressão de perigo iminente. Supersticiosa como todas as boas Florentinas, lembrou-se que Philippe estava na guerra, portanto em perpétuo perigo, mas que corria um perigo talvez maior e o seu amor pressentia-o como uma premonição... Em breve, toda aquela alegria que a rodeava se lhe tornou insuportável e quando passaram a Ponte Vecchio, onde àquela hora do dia os talhos estavam fechados, pretextou um súbito mal-estar e, sem mesmo permitir que Chiara a acompanhasse não era preciso que pelo menos uma das apanhadoras fosse levar as flores? tomou o caminho de casa com Léonarde e Khatoun. Tinha pressa de chegar, agora, sem poder dizer de onde lhe vinha a impaciência. Mal respondeu à saudação alegre que lhe dirigiu Gian-Battista di Rinaldo, um barqueiro do rio que Beltrami tinha salvado da ruína e de cujo filho ela era madrinha.
Não lhe queirais mal gritou Léonarde, desejosa de apagar o que o bravo homem pudesse considerar como uma ofensa donna Fiora não está bem e eu vou levá-la para casa!
Que Deus a abençoe e lhe devolva a saúde. Lá em casa rezaremos por ela, esta noite!
De qualquer maneira, umas orações não nos farão mal resmungou Léonarde, devorando Fiora com os seus olhos inquietos. Que se passa, minha querida? Estais mesmo doente? Na verdade, estais muito pálida...
Sim... não... não sei. Mas tenho de voltar para casa. Quero ver o meu pai!
Estais preocupada porque ele vos disse esta manhã que se sentia um pouco fatigado? Creio que exagerais...
Fiora não respondeu. De que serviria? Se dissesse que tinha o pressentimento de que uma infelicidade a esperava no palácio, Léonarde, com o seu sólido bom senso, esforçar-se-ia por lhe demonstrar que estava enganada. Aliás, estavam a chegar...
Dir-se-ia que o vosso pai tem visitantes! observou Léonarde apontando para uma mula elegantemente ajaezada de vermelho e duas outras mais modestas, que esperavam placidamente presas junto do apeadeiro de cavalos. Deus me perdoe! Creio que é a equipagem habitual da vossa prima Hieronyma. Que vem ela cá fazer? As suas visitas nunca trazem nada de bom acrescentou a governanta, que guardava na memória as ameaças formuladas contra Fiora na loja do boticário Landucci.
Com efeito disse Fiora mas não tardaremos a saber. Saltando para terra por baixo da abóbada do palácio, Fiora atirou as rédeas a um criado e atravessou rapidamente o pátio interior, onde, com efeito, esperava a seguidora habitual de Hieronyma e um dos seus criados. A jovem subiu a escadaria a correr e quase deu um encontrão em Rinaldo, que era o criado particular de Francesco Beltrami, depois de o ter sido do seu pai.
Onde está o meu pai? perguntou ela.
Na sala do Órgão, donna Fiora, mas não está só.
Eu sei com quem ele está. Obrigada, Rinaldo!... disse a jovem um pouco surpreendida, porque a sala em questão, tal como o studiolo, era um dos locais privilegiados para onde o negociante gostava de se retirar. Aprendera em criança a tocar órgão e, de tempos a tempos, isolava-se naquela grande sala, que, com as suas paredes pintadas com frescos e o chão de mármore sem tapetes, tinha a ressonância de uma capela. Que recebesse nela uma prima de quem gostava pouco não era habitual, mas talvez tivesse sido surpreendido pela chegada inesperada da dama.
Quando se aproximou da porta, Fiora ouviu vozes e refreou o andamento. Se discutia com Hieronyma, talvez Beltrami não ficasse contente por ver chegar a filha... Então, docemente, muito docemente, a jovem entreabriu a porta e a voz do seu pai, vibrante de cólera, chegou até ela facilmente:
Nunca, ouves, nunca darei a minha filha ao teu filho! Tenho muita pena daquele infeliz rapaz, que não é responsável pelo seu físico, mas não se pode pedir a uma mulher jovem e bela que passe a sua vida com um marido como ele.
Porque é coxo e disforme? Pelo menos, Piero é nobre e de nascimento puro. Não é um bastardo!
Creio que nunca ninguém pensou em reprovar a Fiora a sua bastardia e creio, também, que toda a gente sabe isso!
É verdade... mas nem toda a gente sabe tudo...
Seguiu-se um silêncio, no fundo do qual Fiora pensou ouvir a respiração subitamente mais forte do seu pai. Sentiu vontade de entrar, mas foi incapaz, retida por uma força mais poderosa do que a sua vontade. A curiosidade, sem dúvida, à qual se misturava uma espécie de terror... Por fim, Beltrami suspirou e com a ligeira insolência de um homem a quem importunam, continuou:
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