É preciso dizer-lhe toda a verdade, ser Francesco. Ela é de boa têmpera. São coisas que ela não deve descobrir por si própria. Seria ainda mais duro.
Tendes razão suspirou Beltrami. Vou-lhe contar tudo; é verdade, Fiora, messire de Selongey empregou esse meio. Ele queria-te a qualquer preço e disse-me que estava pronto a qualquer acção, fosse ela vil, para te conseguir. A parecença admirou-o, é verdade, mas, sobretudo, dá-se com os Brévailles e conseguiu descobrir, não sei como, o que se passou naquele dia infeliz. Sabia que a filha de Marie vivia em Florença com um rico mercador que fizera dela sua filha. Quando te viu, percebeu logo quem tu eras e só te falou no jovem escudeiro para ver o que sabias...
De tudo aquilo, Fiora só reteve uma coisa: Philippe era capaz, por ela, de ir até ao crime! Uma felicidade infinita apoderou-se dela.
Nesse caso, ele ama-me até esse ponto! Oh! Philippe! Outra qualquer reprovar-te-ia por teres empregado um tal meio, mas eu agradeço-te, porque me permitiu ser tua, tua mulher, até que a morte nos separe.
Beltrami, subitamente, não foi capaz de suportar aquele olhar extasiado, aquela paixão que vibrava na voz da sua filha. O ciúme levou-o mais longe do que queria.
Nunca mais o verás, Fiora! Nunca, como tu pensas, ele te virá buscar para te levar para o seu castelo e para a corte do seu senhor! Só queria de ti uma noite, uma só, para saciar o ardor que lhe inspiravas e tu terás de passar a tua vida aqui, junto de mim!
Tal como uma nuvem esconde o Sol, o rosto de Fiora perdeu toda a luz. A jovem vacilou sob o golpe. Pensando que ela ia cair, Léonarde quis segurá-la nos braços, mas Fiora repeliu-a docemente.
Ainda não sei tudo, pois não? O notário, a bênção no convento, tudo isso não passou de uma comédia, de uma astúcia.
Não. Tu és verdadeiramente a condessa de Selongey e nada pode mudar esse estado de coisas... salvo a morte! O teu marido não voltará, porque vai procurá-la sob as armas do duque da Borgonha.
Ele quer morrer? Mas, porquê?
Desta vez, Beltrami hesitou. O que tinha ainda para dizer era terrível... mas Fiora mantinha-o sob o seu olhar, de uma dureza mineral. A jovem repetiu, quase gritando:
Eu quero saber porquê!
Não ousando mais suportar aquele olhar terrível, Beltrami virou a cabeça para o retrato, como que pedindo socorro. A voz nítida de Léonarde chegou-lhe como num sonho:
É preciso ir até ao fim, ser Francesco! É preciso tirar o abcesso. A ferida sarará mais depressa.
Então, sem olhar para Fiora, Beltrami deixou sair a verdade:
Ele quer punir-se a si próprio por ter manchado o seu nome ao casar com a filha de Jean e Marie de Brévailles...
Por que razão o fez, nesse caso? Eu apaixonei-me perdidamente por ele. Creio, Deus me perdoe, que me poderia ter tido sem essa comédia!
Mas não poderia ter tido o teu dote! E ele precisa dele para financiar a guerra do seu senhor, ao qual Lourenço tinha recusado emprestar dinheiro... Evidentemente que serei reembolsado com os seus bens quando fores viúva. Terás, então, direito de usar o seu nome... mas não de ir viver para o seu castelo.
E se eu tivesse um filho?
Devíamos educá-lo até que tivesse idade para servir. Então, deixar-nos-ia para ir para a Borgonha, receber a sua herança e aprender O seu mister de cavaleiro...
Na condição de ser rapaz! E se fosse uma rapariga? Que faríamos? Atirávamo-la ao rio, sem dúvida?
E Fiora, girando nos calcanhares, saiu a correr do studiolo para se ir refugiar no seu quarto. Ouviram a porta deste bater mal ela entrou.
Deixemo-la! suspirou Léonarde. Ela vai, sem dúvida, chorar e, nesse caso, a doçura de Khatoun será melhor bálsamo do que todas as minhas argumentações. Mas é preciso falar de novo de Hieronyma. Que contais fazer, ser Francesco?
Tendes razão. É preciso tentar esquecer o passado e pensar no futuro. Creio que não dormireis muito esta noite, donna Léonarde, porque ides preparar as bagagens de Fiora e as vossas. Isto para que elas possam ser levadas rapidamente... Não me interrompais! Partireis com Fiora e Khatoun sob a guarda de dois criados: Jaíopo, o filho do meu velho Rinaldo e o seu primo Tommaso, anunciando, entretanto, que ides rezar ao convento de Vallombrosa, mas depois de passardes as portas, fareis um ligeiro desvio para Livorno, onde tomareis lugar a bordo do Santa Maria del Fiore. Entregar-vos-ei uma carta para o capitão. E ali esperareis notícias minhas. Levai pouca coisa, como convém a damas que só partem por um dia. Far-vos-ei chegar o resto...
Partimos cedo?
Não. Esperareis o meu regresso até ao meio-dia. Amanhã de manhã vou ao palácio da via Larga, onde vou falar com Lourenço de Médícis e, salvo o casamento de Fiora, vou contar-lhe tudo. Ele é o senhor, no fim de contas e aqui todos lhe obedecem. Além disso, ele gosta de histórias de amor. Talvez a minha o enterneça...
Nesse caso, por que enviar-nos para Livorno?
Porque não estou certo da sua ajuda. Ele é um homem imprevisível. Pode ser a bondade em pessoa, mas também pode ser de uma crueldade extrema. Tem vistas largas porque é um grande político, mas não sabemos como acolherá um pedido... ou uma confissão. Depende, muitas vezes, do lugar que o assunto possa ter no mosaico minucioso da sua política. Talvez não chegueis a partir e talvez preciseis de abandonar a cidade à pressa. Peço-vos apenas que estejais pronta.
Assim faremos, não receeis.
Muito bem. Depois do jantar, pedir-vos-ei para virdes aqui, a fim de regularizar convosco certos assuntos que tenho em mente. Temos de prever o caso de... eu não voltar a ver Fiora. O seu caso é dos que não pode atrair o anátema da Igreja.
Pensava que a Igreja não incomodava muito ao senhor Lourenço? perguntou Léonarde, sarcástica. Apenas os filósofos, os poetas e os deuses gregos têm direito à sua veneração...
... mas acontece-lhe retirar-se muitas vezes para uma das celas
de San Marco. É verdade que sempre suspeitei que ele ia lá para poder contemplar à vontade as pinturas divinas de Angélico, porque pede sempre uma cela diferente. Mas o facto é que ele vai lá, que demonstra um respeito humilde pelo prior e que tem com o bispo as melhores relações. Devemos desconfiar...
Depois do jantar, que comeu na companhia de Léonarde, Francesco Beltrami fechou-se com ela no studiolo, onde a vela ardeu durante uma grande parte da noite. Antes da partida difícil que ia jogar, o homem mais rico de Florença depois dos Médicis punha os seus negócios em ordem com aquela solteirona encontrada um dia por sorte, mas que era a única pessoa do mundo, talvez, em quem ele depositava inteira confiança, para além da sua filha.
Enquanto isso, estendida no seu leito e com os seus grandes olhos abertos, Fiora, que não derramara uma lágrima, reflectia. Sob o golpe das revelações do seu pai vira desenrolar-se a sua infância, as suas convicções, os seus sonhos e as suas esperanças. Acreditava ter nascido de um dos homens mais ricos da Europa e não passava do fruto de amores malditos, acreditara no amor de um homem e esse homem, afinal, só queria o seu corpo e o seu dote, estava casada e, no entanto, não tinha o direito de usar o nome de casada, porque aquele que lho tinha dado a desprezava, ao ponto de preferir a morte à vida a seu lado. Achava-se um cavaleiro sem medo e sem mancha, usava ao pescoço o Tosão de ouro que muitos príncipes invejavam e, no entanto, abusara impiedosamente do seu coração, da sua inocência e da sua confiança. Partira sem sequer um último beijo, sabendo que não regressaria e que aquela esposa de uma noite o esperaria indefinidamente, até já não ter mais lágrimas e os cabelos embranquecerem. Acordara nela a paixão e o gosto pelo amor, mas só lhe consentira uma noite em troca de uma quantidade enorme de ouro, que foi entregar ao seu senhor bem-amado. O mesmo senhor que não tivera piedade do seu jovem escudeiro e o deixara morrer miseravelmente em cima de umas miseráveis pranchas pintadas de negro, maldito à face do céu e na comPanhia daquela irmã demasiado encantadora, que ele amava mais do que tudo no mundo...
À medida que as horas daquela noite de desespero se iam passando, Fiora fazia a lenta e amarga aprendizagem do ódio. Cansada de tentar em vão arrancar-lhe uma palavra, Khatoun acabara por adormecer enroscada aos pés da grande cama com o alaúde inútil entre os braços. Parecia tão pequena, tão frágil e perdida que Fiora, comovida, levantou-se para lhe estender por cima um cobertor. A jovem estava decidida a guardar a ternura do seu coração para os fracos e os que eventualmente precisassem dela.
Era mais ou menos uma hora da manhã quando Léonarde entrou no seu quarto na ponta dos pés, pensando encontrá-la a dormir, esgotada pelas lágrimas derramadas. Ficou sobressaltada ao descobrir, à luz amarela da vela, Fiora de pé, junto da cama, como uma aparição branca...
Não dormis? perguntou ela sem pensar no que dizia.
Parece-me que é evidente...
Nesse caso, ides ajudar-me. E Khatoun...
Deixai-a dormir! Ela chorou muito, esta noite...
Mais do que vós, Fiora? No entanto...
Eu não consigo chorar. Penso, no entanto, que gostaria, que me faria bem, mas não consigo. Parece-me que o meu coração secou de repente disse ela com uma voz queixosa. Talvez porque já não sei por quem ou por que chorar: se pelos meus pais tão vilmente assassinados, se pelo meu pai que está agora em perigo, se por mim mesma, que...
... que estais em tanto perigo como ele! Filosofaremos sobre o valor e o interesse das lágrimas numa outra ocasião qualquer. Por esta noite, temos mais que fazer...
A governanta foi de novo até à porta e regressou, puxando atrás de si uma arca de viagem em couro, com pregos, que colocou no meio do quarto, antes de ir buscar outra, depois uma terceira e por fim uma quarta bastante mais pequena, que se podia levar com facilidade presa no arção de uma sela...
Que pretendeis fazer? perguntou Fiora.
As vossas malas. Amanhã ao meio-día partimos para Livorno, onde esperaremos notícias do vosso pai...
Enquanto dobrava e metia nas arcas os vestidos, os mantos, a roupa branca e os sapatos de Fiora, Léonarde dava parte à jovem das decisões de Beltrami: era preciso que a sua filha estivesse longe de Florença no momento em que Hieronyma fizesse a sua denúncia. Fiora esforçava-se por ajudá-la, mas não estava verdadeiramente em si e Léonarde acabou por lhe arrancar o vestido que ela segurava, dobrando-o ela própria e metendo-o numa das arcas.
Deixai que eu faço! Despacho-me mais depressa sem vós!
Mas se o meu pai não se juntar a nós em Livorno, que fazemos?
O capitão do Santa Maria del Fiore terá as suas ordens. Se ao fim de quarenta e oito horas messer Francesco não estiver ao pé de nós, deverá levantar ferro para nos levar para França. Será uma longa viagem, porque iremos por mar e por rio até Paris, onde nos alojaremos em casa do irmão-de-leite do vosso pai, Agnolo Nardi, que tem lá uma sucursal da casa do vosso pai. E depois, veremos... mas, por agora, despachemo-nos...
É inútil. Eu não quero deixar o meu pai. Ou partimos com ele, ou não partimos de todo.
Léonarde, que acabava de atar as correias de uma arca, endireitou-se e, de mãos nas ancas doridas, perguntou:
Vós amais o vosso pai?
Que pergunta! Naturalmente que sim!
Nesse caso, obedecei-lhe sem procurar armar em heroína! Se ele decidiu assim, é porque pensa que é a melhor coisa a fazer. Não achais que ele já se sente suficientemente infeliz com aquele demónio feminino que lhe pretende morder a carne? Pensais que ele não tem medo?
Eu não quero agravar-lhe as preocupações, mas não faríamos melhor se fugíssemos todos juntos? Podíamos ter partido ontem à noite...
Fugir é confessar que se tem culpa, ou, pelo menos, confessar que se tem medo. Talvez não cheguemos a partir para França. Depende de Médicis! Imaginai que, para evitar o escândalo, ele decide casar-vos com o vosso primo Piero? Se assim for, o vosso pai poderá dizer que vós fugistes e que ignora para onde. Mas se vos sentis tentada pelo vosso primo Piero...
Como ousais falar-me assim? Eu sou casada e vós sabei-lo bem.
Sobretudo, sei que um casamento, ainda por cima secreto, pode ser anulado. É tudo uma questão de dinheiro. E diz-se que o papa Sisto Iv gosta mais de dinheiro do que convém a um soberano pontífice. Compreendestes?
Sim. Acabemos isto e tentemos, depois, descansar um pouco. Vós estais muito pálida, Léonarde!
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