Em breve sentir-vos-eis muito só neste grande palácio disse-lhe ela. Por que não vindes viver algum tempo para junto de mim? Nós nunca falámos muito uma com a outra, mas eu gostaria que vísseis em mim uma irmã mais velha, ou, pelo menos, uma amiga verdadeira...

Fiora retribuiu-lhe o beijo com sinceridade e até com um pouco de vergonha. Como detestara aquela jovem maravilhosa, na qual se obstinara a ver uma rival dois meses antes!... Ou dois séculos antes!. Na verdade, nada impedia que a esposa, se bem que desdenhada, de Philippe de Selongey, se tornasse amiga de Simonetta. E a jovem sentiu subitamente uma grande pena ao recordar a profecia do grego, desejando de todo o seu coração que não se cumprisse...

Marco Vespucci apoiou o convite da sua mulher, mas o primo Amerigo, sempre a meio caminho das estrelas, causou uma ligeira perturbação ao virar as costas a Fiora para beijar devotamente a mão de Léonarde, que sufocou, o melhor que pôde, uma risada. Simonetta, erguendo para o tecto um olhar acabrunhado, salvou a situação ao arrastar o atordoado para fora da câmara mortuária em passo de corrida.

Chiara, que fora de manhã cedo com o tio para a sua vinha de San Gervasio, chegou como uma bomba, trazendo a reboque a gorda Colomba e um criado carregado com uma mala de roupa.

Não te deixo mais! declarou ela enquanto beijava Fiora. Instalo-me junto de ti até estares farta. E não tentes impedir-me. Algo me diz que podes vir a precisar de ajuda dentro de pouco tempo.

Sem esperar pela resposta, foi-se ajoelhar junto do leito e, de mãos no rosto, ficou absorta numa profunda oração. Com o coração reconfortado por tanta ternura espontânea, Fiora observou-a a rezar por uns instantes e regressou ao dever esgotante de acolher todos aqueles que se apresentavam, apesar de um cansaço cada vez maior. Sabia, porém, que o pior estava para vir, que a menos que acontecesse um milagre, teria, dentro de pouco tempo, de receber a odiosa Hieronyma, que ela acreditava tinha mandado assassinar o seu pai... A sua única esperança residia no facto de que no meio de todo aquele luto a dama não ousaria reclamar a resposta à escandalosa oferta de casamento que formulara na véspera. Mas conhecia-a mal...

A asquerosa mulher chegou com a noite e os ecos do palácio encheram-se com os clamores e os soluços de uma dor barulhenta que eriçou a pele de Fiora. Saindo do quarto onde há já uma hora o pintor Sandro Botticelli, sentado a um canto, desenhava a carvão, silencioso e com os olhos marejados de lágrimas a última efígie de um homem que sempre acreditara no seu génio, a jovem foi esperar na galeria a chegada da sua inimiga. A sua intenção era interditar-lhe o acesso à sala onde repousava o seu pai.

A visão de Hieronyma, envolta em roupagens fúnebres como uma matrona da Roma antiga e o rosto marejado de lágrimas, provocou-lhe vómitos. Ia gritar, ordenar que pusessem na rua aquele monstro de hipocrisia, mas Chiara deteve-a:

Mesmo que tenhas razão para acreditar no que acreditas, deves recebê-la.

Eu não quero que ela se aproxime do meu pai!

Não podes impedi-la. Ela é da família. Não deves dar azo a qualquer crítica.

Silenciosa mas ao mesmo tempo roendo o freio, Fiora saudou com uma inclinação de cabeça e abriu ela própria, diante da visitante, a porta do quarto, por onde esta se lançou, gritando:

Onde estás, Francesco? Meu primo fraternal... meu irmão! Nunca saberás a que ponto me eras querido, a que ponto...

Pelo contrário, creio que, lá onde está, o meu pai sabe perfeitamente quais são os sentimentos de cada um! disse secamente Fiora, incapaz de se calar por mais tempo. Por favor, põe um travão a essa tua expressão de... dor, prima! O meu pai não gostava que se exteriorizassem os sentimentos.

Falas do que ignoras! Nós, os Florentinos, gostamos de dar livre curso, tanto às nossas alegrias, como às nossas dores. Mas, para compreender, é preciso ser do nosso sangue...

Hieronyma foi ajoelhar-se à cabeceira do leito, escondendo assim a cabeça do defunto a Botticelli. Com um suspiro, o pintor parou. Teve de esperar um grande quarto de hora. A oração de Hieronyma, entrecortada de invocações à alma de Francesco, prolongou-se, irritante até mais não para Fiora, que, de pé do outro lado do leito, observava a prima. Finalmente, esta inclinou-se, pousou um beijo na fronte fria e declamou num tom melodramático:

Repousa em paz, Francesco! Eu fico com o testemunho! Doravante eu é que velarei por tudo o que te era querido, juro-to!

A megera levantou-se penosamente, envolta como estava nos seus véus fúnebres. O olhar gelado de Fiora seguia cada um dos seus movimentos:

Juramento inútil, prima! Ninguém, aqui, te pediu nada e o meu pai menos do que ninguém! Eu sou a mais velha da família. Doravante, sou eu o chefe e estou pronta a prová-lo. No entanto, consinto em dar-te a escolher o futuro. Preferes vir morar sob o meu tecto, ou que venhamos, eu e os meus, instalar-nos aqui?

A impudência de Hieronyma quase cortou a respiração de Fiora, mas o ódio e a cupidez que ela via luzir nos olhos sombrios da mulher galvanizaram-na.

Nem uma coisa, nem outra! Como ousas dispor assim do que não te pertence e, além disso, da minha pessoa?

O que ainda não me pertence não tardará a pertencer. Quanto a ti, é tempo de esqueceres esses ares de princesa. Em breve não passarás da esposa submissa do meu filho Piero... como decidimos, o meu primo e eu!

Como ousas, enquanto ele continua presente e nos ouve, proferir tais mentiras? Pensas que ignoro o que foi dito, ontem, na sala do Órgão? O meu pai repudiou com desdém um casamento que o ofendia...

... mas que não podia evitar. E ele era demasiado inteligente para não o compreender. A partir do fim do luto, procederemos aos esponsais.

Nunca! Nunca poderás forçar-me! Apelarei a monsenhor Lourenço! Subitamente, Hieronyma desatou a rir:

O teu senhor não poderá fazer nada. Nós ainda estamos numa república, apesar dos grandes ares dele. Terá de ceder à vontade do povo! Verás, verás... E desatou a rir a bandeiras despregadas.

Então, largando o papel e o lápis, Botticelli, pálido de cólera, lançou-se a ela para a pôr na rua.

És louca? rugiu o pintor. Ousar rir, ousar ameaçar na câmara de um morto? Isso não traz nada de bom, donna Hieronyma, e tu devias temer a cólera de Deus!

Deixa-me, maldito pinta-monos! Fica-te bem invocar a ira do céu, tu que vives, tal como os teus iguais, no vício e na luxúria!

É sem dúvida, por essa razão que as igrejas e os conventos não cessam de nos fazer encomendas. Retira-te sem fazer barulho, donna Hieronyma! Não tens aqui ninguém a quem convencer e perturbas a paz de um morto!

Com um gesto furioso, Hieronyma arrancou o braço da mão do pintor, pôs ordem na sua toilette depois de lançar a tudo o que a rodeava um olhar de ameaça, transpôs a porta que Léonarde mantinha aberta para ela:

Em breve rirei mais e mais alto do que hoje e aqui mesmo, sem que ninguém me possa impedir! Voltarás a ver-me, Fiora! E não demorará muito!

É a segunda vez que ela te ameaça observou Chiara, que tinha seguido a cena sem dizer nada. Onde arranjou ela o direito?

Fiora não respondeu de imediato, hesitando ainda em confiar a uma estranha o drama que manchara o seu nascimento e perscrutando o rosto amável para tentar adivinhar a sua qualidade. Chiara seria suficientemente sua amiga para ir mais além, ou afastar-se-ia com repugnância? E, subitamente, tomou a decisão. Valia a pena tentar e se a filha dos nobres Albizzi não o suportasse, Fiora só ficaria mais só face ao desastre cada vez maior em que a sua vida parecia mergulhar a cada dia que passava:

Vem! disse ela. Já vais saber...

Acendendo uma vela na chama de um dos dois círios, a jovem pegou na chave do studiolo que estava dentro do pequeno cofre onde o seu pai costumava guardá-la e depois de um último olhar para o invólucro que abrigara uma alma tão forte e generosa, Fiora guiou a sua amiga pela galeria mal iluminada pelos archotes que, no pátio, ardiam dentro de garras de ferro.

A porta abriu-se sem um rangido, descobrindo o esplendor dos embutidos preciosos. Fiora fez entrar Chiara, fechou-a cuidadosamente e foi direita ao retrato. Com uma mão, tirou o veludo protector, ao mesmo tempo que, com a outra, iluminava o rosto louro que, subitamente, pareceu ganhar vida...

Mas disse Chiara és tu!... e, no entanto, não és verdadeiramente tu... Talvez seja dos cabelos louros...

Fui eu que posei, aliás sem desconfiar, mas este retrato é da minha mãe, Marie de Brévailles.

Pensava que nem sequer sabias o seu nome?

É verdade. Só o soube há pouco tempo. E agora vou, se tu quiseres, contar-te a sua história. Foi por isso que te trouxe aqui... Queres?

À guisa de resposta, Chiara instalou-se numa das cadeiras, cruzou os braços e esperou, enquanto Fiora acendia uma após outra as lâmpadas do grande candelabro.

Por que tanta luz? perguntou Chiara.

Porque vou abrir perante ti um abismo sangrento. As sombras serão menos densas, até para mim. Imagina que foi apenas ontem que o meu pai me contou tudo! Ontem... e agora parece-me que sempre o soube...

Queres mesmo falar? Podes calar-te, se preferires!

Não. Vou contar-te tudo, mas não me vou sentar ao pé de ti. Vou ficar aqui, perto desta janela, para que tu não me vejas. Depois... quando eu acabar, poderás deixar esta sala e esta casa sem sequer olhares para trás, se assim o desejares!

Mas...

Não digas nada! Como não sabes, ignoras o que pensarás quando eu acabar e eu quero que sejas livre de decidir. Acrescento apenas que, se partires, não quero que voltes!

Lentamente, Fiora afastou-se da zona luminosa. O seu vestido preto fundiu-se com as sombras da sala. Impressionada, Chiara apertou as mãos uma contra a outra e fechou os olhos, esperando o que se ia seguir com uma angústia da qual não se podia defender. A voz quente e calma de Fiora chegou-lhe como se viesse do fundo dos tempos.

Todos aqui acreditam que eu nasci secretamente em lençóis de fino linho num castelo francês. Nada de mais falso! Eu abri os olhos em Dijon, na palha da prisão onde a minha mãe aguardava a morte... e não sou filha de Francesco Beltrami.

Ignorando o oh» estupefacto da sua amiga, Fiora, com uma espantosa segurança de memória, refez para ela o relato do seu pai sem omitir o menor pormenor; mas, ao passar por aquela voz jovem, umas vezes surda, outras vibrante, o romance trágico de Jean e Marie de Brévailles encheu-se de cores de rara intensidade. Com os olhos fixos no retrato, Chiara mal ousava respirar, suspensa como estava daquela voz na sombra, que fazia renascer para ela as chamas de uma paixão irresistível, inflamada pela atmosfera triste de um quotidiano sórdido, a fuga para uma vida em comum impossível, o cerco, enfim a sentença de morte, a execução e os seus pormenores ignóbeis, contra os quais se erguera o amor súbito e total, absoluto, de um viajante. A jovem florentina pensava que estava a ouvir uma daquelas histórias fantásticas que os contadores de fábulas contavam nos mercados, mas aquela tinha as ressonâncias inimitáveis da verdade. E o encanto subsistia ainda um momento depois de a voz de Fiora se apagar. Seguiu-se um silêncio, profundo, que em breve se tornou insuportável à contadora. A espera de um veredicto que lhe metia medo, apertou-lhe a garganta. Entretanto, Chiara continuava a não reagir. A sua expressão estava hirta e os seus olhos arregalados contemplavam o vazio. Não dizia nada.

Subitamente, a jovem levantou-se com um movimento brusco e o coração de Fiora parou... Mas, em vez de se dirigir para a porta, Chiara foi direita à amiga:

Por que pensaste que eu te ia virar as costas?

Teria todo o sentido, parece-me?

Para mim, não. Primeiro, responde a uma pergunta: que sentes quando pensas nos teus pais? Vergonha?

Não... oh não! Uma grande piedade, na qual há muita ternura. Eu tenho quase a idade da minha mãe quando ela morreu e mal imagino que possa ser sua filha. Os meus pais, sinto-os muito próximos de mim, como um irmão e uma irmã. Quanto aos que os levaram ao cadafalso, não consigo evocá-los sem cólera: aquele marido abominável, aquele pai que não apenas entregou a sua filha a um tal homem, mas que não ousou lutar contra uma morte pública, que, entretanto, o desonrava. E depois aqueles príncipes sem piedade, aquele duque Carlos, sobretudo, que Jean de Brévailles tinha servido com tanta lealdade, que amava como...

A jovem mordeu os lábios. Ia dizer «como Philippe o ama...», mas não queria falar daquele homem a quem estava ligada por um casamento mentiroso e continuou muito depressa: