Quanto a esses só tenho ódio e desejo de vingança...

De vingança? Como poderás vingar-te? Se o duque Philippe já morreu e tu ignoras se o senhor du Hamel e o teu avô ainda estão vivos?

Não o chames assim! Ele não tem qualquer direito. Enquanto eu viver, Francesco Beltrami será sempre o meu pai, o único que conheci e a quem amo. Mas creio que um dia, talvez em breve, irei à Borgonha para acertar as minhas contas. E se Deus ainda não dispôs das suas vidas, eu porei ordem nelas. Aliás, resta um culpado: o duque Carlos!

És louca? Queres haver-te com um príncipe que, dizem, é mais poderoso do que todos os outros? Queres morrer como a tua mãe?

De qualquer maneira, ainda não chegámos lá. Primeiro, tenho de me vingar do miserável... ou da miserável que mandou matar o meu pai. É o sangue dele que grita mais forte! Os outros virão depois.

Chiara estremeceu, como se o frio da morte tivesse entrado subitamente na sala elegante e efeminada: «.

O teu desgosto perturba-te, Fiora! Deixa a justiça para aqueles que a têm a cargo! Lourenço de Médicis não pretende deixar impune o assassino de messer Beltrami e tu podes ter confiança nele. Quanto a essa infeliz história que dormia no coração do teu pai há 17 anos, farias bem se pensasses nela o menos possível e eu estou certa de que, se ele ainda fosse vivo...

Mas, pensa bem no que estás a dizer! Já te esqueceste de Hieronyma? Achas que, possuindo esta arma contra mim, ela não se vai servir dela? Eu acabo de recusar, tal como o meu pai, um casamento com o filho dela... e tu ouviste.

É verdade. Tinha-me esquecido. Nesse caso, só tens uma solução, a que o teu pai queria tentar: dizer tudo a Lourenço! Ou muito me engano, ou ele ajuda-te!

Fiora foi buscar a cobertura de veludo e, com gestos muito doces, cobriu o retrato com ela...

Vou seguir o teu conselho. Na noite do funeral vou-lhe pedir que me oiça...

Toda a Florença estava na rua dois dias depois, quando Francesco Beltrami deixou a sua casa para a sua última viagem, sobre uma padiola transportada por seis homens, os mais poderosos da arte de Calimala e coberto com um pano branco. O cortejo fúnebre, como o exigia a lei, era modesto: quatro monges transportando círios precediam o corpo, seguido por uma vintena de carpideiras conscienciosas nos seus vestidos negros mal cosidos. Por fim, Fiora, uma longa silhueta enquadrada por Léonarde e Chiara, seguia à cabeça dos seus criados e de todos aqueles que, nas suas diversas casas, tinham trabalhado para o grande negociante. Não havia música nem cânticos, mas, caindo do céu cinzento, por onde corriam as nuvens e as andorinhas, ouvia-se o toque a finados de todos os sinos de Florença. Assim o tinha decidido o Magnífico...

Lourenço também ordenara, para que todos pudessem assistir, que a cerimónia religiosa tivesse lugar no Duomo, antes de o defunto ser levado para a igreja de Orsanmichele, onde seria inumado.

Durante o caminho, a multidão que assistia era heteróclita, mas em redor do fabuloso Baptistério e nos acessos à catedral polícrona, todos aqueles que eram alguém na cidade estavam ali reunidos: as Artes maiores: Calimala, a Lã, a Seda, a Banca, os Juristas, os Boticários e os Peleiros, cada um com o seu estandarte particular e depois as Artes menores: talhantes, ferreiros, sapateiros, carpinteiros, taberneiros, estalajadeiros, curtidores, mercadores de azeite, sal e queijos, armeiros e, por fim, padeiros, que formavam a corporação menos apreciada da cidade, porque mais acessível... Toda a Senhoria ocupava a varanda do Bigallo, em frente da porta sul do Baptistério. Por fim, à entrada do Duomo, Lourenço e Giuliano de Médicis, vestidos de veludo negro e rodeados pela sua família e amigos. Todos os poetas, filósofos e pintores estavam presentes! Sandro Botticelli estava presente, assim como Verrocchio com os seus alunos: Perugino, Leonardo da Vinci e também os aprendizes, que moíam as tintas, limpavam os pincéis e velavam pelo abastecimento da equipa. Também lá estava... mas era impossível dar um nome a todos os rostos.

O esplendor vinha todo da igreja. Em frente das portas abertas da catedral, ao fundo da qual ardia uma floresta de círios, as capas douradas, os vestidos púrpura, as mitras cintilantes do bispo e dos abades de vários mosteiros compunham um fresco fabuloso, evocando a magnificência inaudita do paraíso para o qual ia a alma de Francesco Beltrami.

O som dos sinos caía do alto do campanário esguio, cujas ricas cores o tempo cinzento do dia não conseguia apagar, ao mesmo tempo que no interior da igreja se elevavam as vozes profundas dos órgãos, às quais se juntariam as de uma trintena de meninos de coro quando o defunto penetrasse no santuário.

Os carregadores já avançavam para seguirem o clérigo que começava a entrar, quando, subitamente, uma mulher envolta em véus negros se postou diante deles de braços abertos:

Para trás! O homem que transportais para este santo local morreu em estado de pecado! Não entrará aqui enquanto a verdade não for conhecida de todos!

Hieronyma! gemeu Fiora. Meu Deus, que vai ela fazer?

Até tenho medo de pensar murmurou Léonarde. Era todo o caso, não lhe falta audácia! Como messer Francesco morreu sem confissão, ela veio aqui denunciá-lo!

Tenho a certeza! Infelizmente, não podemos provar o contrário e ela sabe-o...

Entretanto, formava-se na multidão uma ondulação, de onde se elevava um burburinho que era impossível dizer se era de cólera ou de espanto. O capitão Savaglio, que seguira até ali, ladeando a multidão, a marcha de Fiora, avançou para repelir a perturbadora, que se debatia vigorosamente ao mesmo tempo que berrava:

Não me farão calar! É preciso que se faça justiça e que cesse o escândalo!

Está calada, mulher e sai daqui! bradou Savaglio. A tua conduta é que é escandalosa e sacrílega! Se alguém tem direito a clamar por justiça é o morto, que assassinaram vilmente...

Já pedia ele socorro aos seus homens com um gesto quando o magistrado municipal se aproximou:

Deixa essa mulher! A lei e a honra da nossa cidade dizem que qualquer cidadão pode exprimir-se livremente.

Livremente, sim, mas não em qualquer ocasião!

Essa também é a minha opinião disse a voz rouca de Lourenço de Médicis, que interveio por sua vez. Nós estamos aqui para dizer o último adeus a um dos nossos, um dos melhores e isto é indecente! Retira-te, Hieronyma Pazzi. Se tens uma queixa a fazer, serás ouvida mais tarde! Não se faz esperar um morto diante da casa de Deus!

Mas Hieronyma sabia que entre aquela gente havia quem tivesse ciúmes e detestasse Francesco Beltrami e que, ao falar de um escândalo, despeitava muitas curiosidades maldosas. Com toda a força da sua voz, gritou:

Este morto é do meu sangue. No entanto, apelo para o julgamento do povo, porque ele utilizou a mentira e o fingimento! Ele não merece a pompa que o espera aqui. Ele traiu Florença e aviltou a sua qualidade de cidadão da nossa república ao fazer passar por sua filha uma criatura nascida nas circunstâncias mais desonrosas!

Tu calas-te? rugiu Lourenço. A tua indignação virtuosa, que me parece um pouco tardia já que Fiora Beltrami era um bebé quando Francesco a trouxe para cá, não virá antes de um desejo grande de te fazeres atribuir uma herança interessante?

Só descobri a intrujice há pouco tempo e...

Balelas! Nós sabemos todos que donna Fiora nasceu dos amores de Francesco com uma nobre dama francesa!

Tu dizes que são balelas, mas eu digo que são mentiras! O meu primo Beltrami recolheu esta rapariga do sangue do cadafalso onde acabavam de morrer o seu pai e a sua mãe pelo duplo crime de incesto e adultério!

A mulher berrara com tanta força que Lourenço teve um movimento de recuo, como se o sopro dela fosse o do próprio inferno. O magistrado municipal Petrucchi aproveitou para usar da palavra, consciente da imperceptível mudança que começava a produzir-se na multidão, uma multidão florentina apaixonada e versátil, capaz, num acesso de humor, de enviar à noite para o cadafalso aquele que idolatra pela manhã. Parecia uma daquelas vagas, curtas e rápidas, que se erguem subitamente num mar calmo, um arrepio que anuncia a febre e pressagia a tempestade...

Monna Hieronyma disse ele as palavras que acabas de pronunciar são muito graves e compreenderás que a Senhoria não as pode aceitar sem provas. Tens essas provas?

Tenho. Recebi as confidências de um homem que estava presente em Dijon, na Borgonha, no dia da dupla execução, no dia em que o meu primo adoptou esta... esta podridão! Aliás, está aqui outra testemunha: esta mulher acrescentou ela apontando para Léonarde que veio com ele para tratar deste ser que deviam ter atirado para o esgoto e não coberto com o belo nome de florentina e que está ali, atrás do corpo do meu infeliz primo, adornada com um nome que só pode ser devido a uma maquinação do demónio...

Desta vez, a multidão rugiu. Hieronyma sabia o que estava a fazer ao evocar as práticas da feitiçaria e, com uma alegria maldosa, sentiu que estava quase a ganhar. Com um pouco de sorte, a multidão pegaria fogo e atirar-se-ia àquela Fiora que ela odiava e que, de mãos no rosto, se esforçava por nada ver, para a desfazer em pedaços... Mas Lourenço, a princípio surpreendido, não tencionava deixar-se levar assim por uma mulher histérica, nem que o povo, que reconhecia a sua autoridade porque o enriquecera, lhe dissesse qual era o seu dever. Por fim, porque detestava desde sempre os Pazzi, dos quais desconfiava como da peste.

Chega! gritou ele. Já disse e repito que esta cena em frente de uma igreja é escandalosa e que o funeral de um homem respeitado e admirado não deve servir de pretexto para um ajuste de contas. Se Francesco Beltrami desrespeitou, pelo que só pode ter sido um impulso do coração, as leis da nossa cidade, julgá-lo-emos mais tarde... Por agora...

Peço-te que me desculpes interrompeu Petrucci mas que queres dizer com esse «mais tarde»?

Quero dizer depois de Francesco Beltrami estar em repouso na tumba que o espera.

Aceitas, portanto, que logo a seguir aquela a quem chamamos sua filha, a governanta e a acusadora, assim como a testemunha desta sejam levadas à Senhoria para ali serem ouvidas e confrontadas?

O Magnífico hesitou. O seu olhar sombrio percorreu o seu grupo de amigos, de guardas e depois todas aquelas cabeças e rostos, onde podia ler a mesma hesitação. Viu Fiora em lágrimas, amparada por uma Léonarde lívida e por uma Chiara Albizzi cujos olhos faiscavam de cólera, mas já alguns gritos se ouviam um pouco por toda a parte:

Justiça! Que se cumpra a lei! e até, infelizmente À morte a feiticeira!

Lourenço compreendeu que não ganharia nada em se opor ao pedido do magistrado municipal. Sabia muito bem que devia o seu poder à adesão do maior número possível e que um assunto como aquele podia ser um excelente pretexto para uma rebelião.

Seja! disse ele por fim. Que se faça segundo a lei na nossa cidade.

Nesse caso, guardas da Senhoria, prendei estas mulheres e levaias para o palácio, onde elas aguardarão que seja estatuída a sua sorte!

Compreendendo então que lhe iam roubar o direito de acompanhar o seu pai bem-amado até à sua última morada, Fiora revoltou-se:

Eu quero gritou ela assistir ao funeral do meu pai! Ele era o que eu tinha de mais querido neste mundo...

Se ele não era teu pai troçou Petrucci não tens nada com isso!

Eu fui legalmente adoptada perante esta mesma Senhoria.

Mas, aparentemente, sob falsas declarações. E nós não gostamos de falsas declarações!

Talvez. No entanto, aceitais, como se fossem palavras do Evangelho, as acusações desta mulher, que ainda ontem pediu ao meu pai que me desse em casamento ao seu filho! A ignomínia do meu nascimento não pareceu incomodá-la muito em comparação com a fortuna que cobiçava... e que continua a cobiçar!

Isto é verdade? perguntou severamente Lourenço a Hieronyma.

É falso berrou ela. Não há nada mais falso! Eu, pertencente a uma nobre família...

Tu querias que eu fosse para tua casa como tua nora. A tua última visita, na véspera da morte do meu pai, teve testemunhas. A despeito das ameaças que proferiste, ele recusou casar-me com Piero... e, no dia seguinte, foi assassinado!

Hieronyma uivou como se uma serpente tivesse desenrolado os anéis a seus pés.

Tu ousas acusar-me, tu, uma larva miserável, que vais regressar em breve para o lodo de onde saíste?

Eu não acusei ninguém respondeu Fiora. Mas se a carapuça te serve, a culpa não é minha! Quanto à tua testemunha, vai buscála! Eu sei quem é: é Marino Betti, o intendente da nossa propriedade, um homem que o meu pai pensava ser fiel, que cumulou de benesses e que, dizem, é teu amante.