”Quando Jean regressou, as coisas começaram a tornar-se graves. Pela minha parte, tive um pressentimento, face à atitude daquelas duas crianças. A partir do momento em que se reencontraram, nunca mais se separaram um do outro. Sentavam-se sempre um ao pé do outro de mãos dadas. Multiplicavam as ocasiões para se isolarem e davam juntos, grandes passeios a cavalo. Uma noite... aconteceu o drama... e lamento dizer que fui eu o culpado.

Antoine Charruet afastou-se da mesa e foi sentar-se perto do fogo, para o qual estendeu as mãos magras que tinham recomeçado a tremer.

Nessa noite, Jean tinha ensinado a Marie uma dança da corte muito graciosa, sem dúvida, mas na qual as figuras, plenas de languidez, não eram para ser dançadas entre um irmão e uma irmã. Além disso, eu tinha reparado nalguma perturbação, um certo frémito, quando os olhos de ambos se encontravam, ou quando as suas mãos se tocavam. Tudo aquilo fez com que me mantivesse acordado durante toda a noite. Sentia crescer o meu nervosismo e acabei por compreender que não conseguia conciliar o sono enquanto não falasse com Jean. Era preciso convencê-lo a regressar para junto de monsenhor Charolais logo na manhã seguinte. Peguei, portanto, na minha vela e dirigi-me ao seu quarto, que se situava numa das torres, quer dizer, afastado dos da família.

Ao chegar, vi que um pouco de luz se filtrava por baixo da porta e fiquei contente, porque evitava ter de o acordar. Muito suavemente, abri a porta, pensando surpreendê-lo a ler, ou a escrever. Infelizmente, o que vi era ao mesmo tempo terrível e de uma beleza fascinante: no grande leito de cortinas vermelhas, à luz doce de uma vela, Jean e Marie amavam-se...

«Não sei o que teríeis feito no meu lugar. Eu devia, sem dúvida, ter entrado pelo quarto dentro e arrancado Marie àquele leito e àqueles braços, nos quais ela parecia gozar uma felicidade indizível. Mas não pude. Por um instante, contemplei-os, perdidos naquele amor que os enaltecia... e depois fechei a porta docemente, muito docemente e voltei para o meu quarto, onde rezei durante toda a noite. Aliás, o mal estava feito e umas horas a mais ou a menos não teriam mudado nada.

»De madrugada, fui ter com Jean, que, desta vez, estava só. Disse-lhe o que tinha visto e ordenei-lhe, em nome do Senhor, que abandonasse imediatamente aquela casa, que ele não tivera pejo em macular. Ele não protestou. Disse apenas: «Nós amamo-nos e nada nem ninguém no-lo impedirá». No entanto, aceitou partir. Se tivesse recusado, eu teria sido obrigado a prevenir o seu pai e ele sabia-o.

»A Marie, mergulhada em lágrimas por aquela partida tão brutal, não disse nada, mas fui ter com os pais dela e dei-lhes a entender que era tempo de casar a sua filha. Para minha surpresa, encontrei-os decididos a isso. Eles também não tinham gostado da dança de corte... E, dessa vez Marie não teria o direito de recusar o marido que lhe iriam oferecer.

»A infelicidade quis que, entretanto, eu fosse obrigado a ausentar-me por algumas semanas, mas parti tranquilo, persuadido de que no meu regresso as coisas já teriam reencontrado o seu curso normal. Na minha ideia, pensava que um marido jovem, belo e apaixonado faria esquecer a recordação de Jean. Acabara por me persuadir que a cena de que fora testemunha não passara de uma loucura passageira, uma criancice grave. Eles eram tão jovens, os dois!

«Quando regressei, Marie estava noiva e, contrariamente ao que esperava, fiquei consternado. Por não sei que aberração, Pierre de Brévailles, a despeito dos pedidos da sua mulher, decidira escolher Regnault du Hamel. Vós viste-lo, não preciso, portanto, de vo-lo descrever. Limito-me a dizer-vos que, como conselheiro e tenente da chancelaria com assento em Autun, bastante rico e com grandes e poderosas relações, era um genro desejável. Além disso, tomava Marie sem dote, o que contara na decisão de Brévailles. As suas finanças, soube-o então, não iam muito bem... Face a tudo isto, o amor não tinha grande peso.

«Nunca celebrei um casamento tão dramático. Foi preciso, literalmente, arrastar para o altar uma Marie desfigurada pelas lágrimas, ao ponto de eu quase me recusar a celebrar. Mas du Hamel tinha um primo, cónego em Saint-Benigne de Dijon, que se prontificou a substituir-me. Abençoei, pois, aquele casamento e transportarei essa culpa comigo até à minha última hora.

”Porque, mal Marie entrou na casa de Autun, onde residia o seu marido, a sua vida transformou-se num inferno. Du Hamel mostrava-se de uma avareza sórdida e de um ciúme maníaco. Marie, submetida a uma incessante espionagem, vivia fechada, mal alimentada e privada de tudo ° que pode tornar agradável a vida de uma jovem. O nascimento de uma rapariga, nove meses mais tarde, não melhorou as coisas. O marido queria um filho e responsabilizou a mulher por aquilo que ele considerava uma ofensa. Além disso, mais grave ainda, deu ouvidos a certos mexericos acerca da natureza real dos sentimentos que Marie alimentava pelo seu irmão.

Onde tinha ele ouvido isso?

Vá-se lá saber. Uma criada despedida, um criado subornado ou talvez uma testemunha daqueles longos passeios que as duas infelizes crianças davam juntas, muitas vezes. Mas, a partir daí, Regnault du Hamel não poupou a sua mulher a injúrias e a maus tratos. Espancada, desprezada, desonrada, Marie resistiu o melhor que pôde, mas, quando du Hamel atingiu o cúmulo da maldade ao levar-lhe a filha, a coragem abandonou-a. A algumas léguas da sua prisão estava a casa da sua infância e o tecto que abrigara a sua demasiado curta felicidade. Uma noite, aproveitando uma breve ausência do seu carrasco, Marie conseguiu fugir com a ajuda de uma jovem criada, que tivera piedade dela. Correu sem parar até casa dos seus pais, ávida por um refúgio, no qual o seu corpo, martirizado e coberto de vis nódoas negras, pudesse encontrar aconchego. Ignorava que Jean, inquieto há meses pela falta de notícias da sua irmã, acabava de chegar. E o drama desencadeou-se. Ao reencontrarem-se, os dois jovens reencontraram também, intacto e até, talvez, reforçado, aquele sentimento monstruoso que os empurrava um para o outro e os Brévailles tiveram medo. Com súplicas e depois com ameaças, tentaram persuadir Marie a regressar a casa do seu marido. Madeleine de Brévailles estava com o coração despedaçado perante os sofrimentos da sua filha, mas du Hamel era seu marido: tinha sobre ela todos os direitos e ninguém podia fazer nada.

Jean, esse, lutou pela irmã. Foi preciso retê-lo à força, para não correr a Autun e matar o odioso marido. De qualquer Maneira, opôs-se fortemente a que Marie regressasse à casa conjugal e os pais deixaram de saber o que fazer: Marie ameaçava matar-se se a enviassem de volta. Foi nesse momento que chegou uma carta de Regnault. Uma carta extremamente violenta e agressiva. A terrível personagem acusava formalmente Marie de relações incestuosas com o seu irmão e anunciava que ia apresentar queixa na justiça ducal. Jean e Marie amedrontaram-se. Desejando colocar a maior distância possível entre eles e o seu inimigo e temendo atrair graves problemas aos seus pais, fugiram. A sabedoria teria exigido que eles fossem cada um para seu lado: ele para junto do conde de Charolais, que abandonara sem autorização e ela para se fechar num qualquer convento afastado. Mas não tiveram coragem de se separar, nem de resistir à sua paixão. Foram para Paris, onde, confiantes no tamanho daquela cidade, se instalaram num albergue vizinho do Louvre. Ali viveram sob nome falso como marido e mulher. Lamento dizer que conheceram ali, na sua inconsciência, seis meses de uma felicidade indizível...

Nunca se deve lamentar a felicidade disse Francesco com gravidade. É uma coisa muito rara!

Mesmo quando o preço é assim tão caro?

Se vos referis à morte deles, creio que vos enganais. Eu vi-os.

Pareciam ir para o Paraíso. Sabiam que mais nada os poderia separar. Iam para a eternidade...

Sem dúvida suspirou o padre Charruet mas o que ignorais

é que essa felicidade não tardou a dar fruto. Essa notícia fê-los medir o abismo que se abria entre ambos e o seu universo habitual. Com a coragem de tal tipo de almas, não recuaram perante as consequências e sentiram-se, pelo contrário, mais unidos no seu crime como nunca. Pensaram então em fugir para Inglaterra para poderem viver livremente, mas o dinheiro começava a faltar-lhes... e depois, sem que se apercebessem, o destino apertava as suas malhas. Acreditavam-se bem escondidos na grande Paris e ignoravam que, com ouro, tudo se consegue. Regnault du Hamel, depois da queixa depositada na justiça ducal, gastara muito dinheiro a despeito da sua avareza. Pagos por ele, alguns espiões descobriram a pista dos fugitivos e arranjaram cumplicidades. Não se podia, com efeito, prendê-los em pleno dia, porque não estavam na Borgonha. Du Hamel pagou o que foi preciso e uma noite um bando de homens mascarados invadiu o albergue, pegou nos dois jovens e atirou-os para uma barca, que subiu o Sena até um ponto onde esperavam uns cavalos. Depois de uma viagem terrível, no decurso da qual Marie, grávida, pensou morrer cem vezes, as infelizes crianças foram trazidas para aqui, onde as esperava, não apenas du Hamel triunfante, mas também a prisão... Com efeito, aquele homem não queria apenas a morte dos culpados, queria também o aviltamento público, queria vê-los acorrentados juntos numa fogueira, no meio de uma multidão brutalmente alegre e insultuosa... E, de facto, eles foram condenados. O marido arranjou mais testemunhas do que as necessárias, um punhado de miseráveis que, contra um pouco de ouro, juraram que tinham visto cem vezes Jean e Marie entregarem-se um ao outro... Aliás, Marie estava à espera de um bebé. Corajosamente, na esperança de salvar o seu irmão, ela afirmou que se tinha entregado a um amor de passagem, mas isso não serviu de nada. A sentença foi apenas adiada até ao nascimento da criança.

«Então, eu supliquei a Pierre de Brévailles que fosse ter com o senhor duque, pedindo que, pelo menos, lhes poupassem a vida e que os encerrassem em conventos. Mas ele recusou brutalmente. O seu orgulho fora ferido, julgava-se aviltado, desonrado e creio bem que passara a odiá-los. Dame Madeleine, a sua mulher, juntou as suas súplicas às minhas, mas também sem resultado. Então, partimos os dois para Bruxelas. A diligência recusada pelo pai era aproveitada pela mãe com todo o seu amor intacto. Em Lille, ao sair da capela, atirou-se aos pés do senhor duque, que lhe virou as costas sem sequer a ouvir. Aquele velho bode, que sempre ofendeu Deus com a sua luxúria desenfreada, talvez tivesse tido piedade de Marie se ela tivesse sido sua amante. Mas só mostrou desprezo por aquela mãe desesperada - lançou o padre numa súbita explosão de cólera que fez sobressaltar o seu ouvinte.

- Que dissestes, padre?... Subitamente corado até à coroa de cabelos brancos, o padre Charruet teve um tímido sorriso:

- Nada! Perdoai-me, meu filho! Deixei-me levar por um resto da cólera que senti perante as lágrimas de dame Madeleine, abandonada de joelhos no meio de uma galeria sumptuosa e sob os olhares trocistas dos cortesãos. Levantei-a do chão e saímos juntos, mas ela quis ainda tentar outra coisa.- Jean tinha servido, durante muito tempo, o jovem conde de Charolais, que o tratara amigavelmente. Talvez aquele jovem príncipe, que diziam de costumes puros, se deixasse tocar pela piedade? Jean dizia, muitas vezes, que o seu senhor lhe queria bem...

- E então?

- Dessa vez, fomos recebidos, mas a esperança só durou um instante. O conde Carlos tem horror ao deboche que reina na corte do seu pai e esforça-se por fazer reinar no seu séquito a dignidade e a decência. Além disso, é um príncipe orgulhoso e Jean abandonou o seu serviço sem lhe pedir autorização. Encontrámo-lo demasiado severo: «Os culpados de semelhante crime não merecem perdão nem misericórdia, porque pecaram ao mesmo tempo contra o Senhor Nosso Deus e contra a natureza. A justiça deve seguir o seu curso...» As lágrimas de uma mãe desesperada não encontraram o caminho daquele coração couraçado e tudo o que obtivemos foi que a sentença fosse mudada: a abominável fogueira daria lugar à decapitação pela espada, única morte digna de um fidalgo. E agora, já sabeis tanto como eu...

- Ainda falta qualquer coisa, padre. A jovem estava grávida, disseste-lo. Ela conseguiu trazer a criança ao mundo?

- Conseguiu. Na prisão, há cinco dias, Marie deu à luz uma menina, que foi levada logo no dia seguinte para o hospital da Caridade, para onde vão todas as crianças abandonadas.

- Abandonadas? - insurgiu-se Francesco - mas, essa pobre pequena não tem avós? Os Brévailles não podem tomar conta dela? Parece-me a mim que ela tem duplamente o sangue deles?

- Por nada deste mundo messire Pierre quer essa prova sob o seu tecto e dame Madeleine, que foi duramente repreendida aquando do seu regresso da Flandres, não ousou afrontar a cólera do seu marido. O que ela tenta conseguir, de momento, é que lhe confiem a criança que Marie deu a Regnault du Hamel.