O dia foi longo. A cativa passou-o quase todo a observar o jardim e o voo dos pombos. Mas perdeu muito do seu encanto quando viu Hieronyma, sempre vestida com o seu traje fúnebre, passeando-se pelo braço da madre Maddalena, como se se conhecessem desde sempre... E, subitamente, a jovem recordou-se do que lhe dissera Chiara numa das suas visitas: a superiora das dominicanas dava-se, sem dúvida, com os Albizzi, mas tivera por mãe uma Pazzi. Era naquele parentesco que era preciso procurar a causa do tratamento de favor de que gozava a sua inimiga. Esta permanecia um membro da nobreza florentina, ao passo que a ela lhe recusavam o direito de se dizer filha de Francesco Beltrami. A outra era recebida como uma amiga, ao passo que Fiora era vista apenas como uma prisioneira.

Entretanto, a sua ameaça de denunciar publicamente o tratamento indigno a que a submetiam dera os seus frutos com aquela mudança de alojamento. E quando a meio do dia lhe trouxeram a refeição, esta, sem ser faustosa, era farta: almôndegas de vitela com puré e um bocado de pão branco. Apenas a água continuava a mesma... Fiora devorou tudo, pensando que a fome não era uma boa companheira de combate e que se luta melhor quando se está na plena posse das suas forças. Aquela ideia fez-lhe companhia durante o resto do dia, mas, quando a noite caiu, reapareceu a angústia. Teria sido agradável ter junto de si uma amiga a quem se confiar, porque naquele convento, onde ainda há pouco lhe sorriam, nenhum rosto se queria virar para ela. Pior ainda: ninguém se queria aproximar dela.

As freiras estavam de novo na capela para cantar as vésperas, que é a última oração da noite, quando de súbito, aquela que viera ter consigo de manhã apareceu de novo, sempre muito fria, sempre muito distante, de vela na mão.

Põe esse véu na cabeça! ordenou ela apontando para o tecido branco com que Fiora não julgara útil cobrir-se e segue-me!

Onde vamos?

Já vais ver! Mas aconselho-te a que tenhas uma atitude menos arrogante! No lugar onde te vou conduzir impõe-se um comportamento modesto e não esse olhar seguro e nariz arrebitado!

Desde a minha mais tenra idade que me aconselham a manter a cabeça bem erguida... seja em que circunstância for!

A religiosa encolheu os ombros, saiu da cela e encaminhou-se para a direcção oposta à que ia dar à capela. Fiora seguiu-a. A corrente de ar que ali reinava apagou a chama da vela, aliás inútil: a noite que banhava o jardim interior era suficientemente clara para que se orientassem e Fiora, que estava fechada desde manhã, respirou os odores frescos com delícia. Mas, de facto, não foram longe: até ao outro lado do claustro, onde a freira abriu uma porta baixa e mandou entrar a sua companheira. As duas mulheres encontraram-se na soleira de uma sala bastante grande, onde uma abóbada romana se apoiava em pesados pilares redondos. Ali, por trás de uma mesa sobre a qual ardia um archote de cinco mechas, estavam sentadas duas personagens, imóveis sob as pregas negras e brancas dos seus hábitos quase iguais: a madre Maddalena degli Angeli e o monge espanhol de San Marco: frei Inácio Ortega.

Obrigada, irmã Prisca! disse a prioresa. Quanto a ti, Fiora, aproxima-te. Aqui o nosso venerável irmão Inácio deseja fazer-te algumas perguntas. Não te esqueças, ao responder-lhe que ele é um enviado do nosso Santo Padre o Papa Sisto, que Deus queira conservar com a sua saúde e santidade.

Fiora inclinou-se sem uma palavra, perguntando a si própria que faria um enviado do Papa num convento de mulheres àquela hora. Também não percebia muito bem o que teria ele para lhe dizer, mas, lembrando-se que fora ele que propusera o juízo de Deus, pensou que era melhor ter cuidado.

Seguiu-se um silêncio. Apoiado na cadeira de madeira escura em que estava sentado, o monge, de olhos meio fechados, olhava para a alta e delgada silhueta branca que tinha diante de si, direita e digna, sem medo aparente, mas também sem sobranceria. As chamas do candelabro cinzelavam os traços do rosto delicado e punham reflexos dourados nos grandes olhos cinzentos sob a brancura do véu de onde deslizava, para cima de um ombro, a espessa trança de cabelos brilhantes. Frei Inácio mordiscou os lábios finos, que humedeceu em seguida com a ponta da língua. Depois, abandonando com um suspiro a sua pose descontraída, encostou-se à mesa:

Tu pretendes chamar-te Fiora Beltrami? perguntou ele depois de ter deitado uma olhadela a uns papéis pousados diante de si.

Nunca me chamei outra coisa. A reverenda madre aqui presente pode atestá-lo: ela conhece-me há muito.

Mas pode ser que tenhas abusado da reverenda madre, assim como de toda a cidade e não tenhas direito a esse nome.

Tenho o direito que me concedeu a Senhoria, ao assinar o acto de adopção que o meu pai lhe entregou.

Mas esse acto de adopção é falso, porque o teu... pai enganou conscientemente a Senhoria. Na realidade, tu és a filha de dois miseráveis que a justiça de Deus mergulhou no fundo dos Infernos.

Só Deus pode dizer que justiça é a Sua e eu creio, antes de tudo, na sua misericórdia.

A voz de Fiora permanecia tão firme como a sua atitude.

Erguendo as suas pálpebras engelhadas, frei Inácio fixou-a, como se através da intensidade do seu olhar quisesse reduzi-la à submissão. Fiora encontrou aqueles olhos sem cor definida e não baixou os seus. Um ligeiro rubor coloriu as faces magras do monge espanhol.

Atitude cómoda! Será porque temes essa justiça? No entanto, aceitaste com facilidade submeter-te à sentença do juízo de Deus! É verdade que foste um pouco obrigada... Não foste tu a primeira a aceitar, mas sim aquela que acusaste. Se ela está inocente, como tudo leva a crer, tu vais morrer. Não temes a morte?

Mentiria se dissesse que não. Eu tenho 17 anos, reverendo padre mas, se tenho razão, não morrerei. Hieronyma, pelo contrário, morrerá e é a ela que deveríeis perguntar por que razão o aceitou ela com tanta facilidade...

Mas, justamente, porque a sua consciência é tão pura como a sua alma exclamou a madre Maddalena e porque a sua fé em Deus é total. Não sei se se poderá dizer o mesmo de ti!

Erguendo a mão num gesto apaziguador, frei Inácio pôs fim à intervenção da prioresa.

Veremos isso mais tarde. Quem é o teu confessor?

Fiora hesitou. Ela confessava-se raramente, tanto ao cura de Santa Trinita como ao capelão de Orsanmichele, sem que fosse possível dizer qual tinha a sua preferência. Era uma questão de horas e de humor, porque, nunca tendo conhecido grandes pecados, parecia-lhe uma coisa sem interesse ir confiar os seus pensamentos mais íntimos a um quase desconhecido. A jovem confessou francamente essa dupla participação na sua vida religiosa e compreendeu de imediato que acabava de escandalizar frei Inácio ao ver o seu grande nariz estremecer:

O quê? Não tens um director de consciência?

Eu sempre tive confiança no juízo e rectidão do meu pai. Ele é que era o meu director de consciência...

Um homem que mentia tão bem? E que, naturalmente, não te empurrava muito na direcção da Igreja. Era a ela que devias ter sido confiada desde o teu nascimento, para que pudesses expiar, nos rigores benfazejos de um convento, o crime e o grande pecado da tua concepção, que o baptismo não foi suficiente para apagar...

O meu pai não achava que eu deveria pagar por um pecado que não cometi. Ele queria que eu acreditasse que era uma rapariga como as outras. Queria que eu fosse feliz...

É por isso, sem dúvida cortou a madre Maddalena que ele te educou nos preceitos ímpios desses filósofos antigos, cujo pensamento infecta esta cidade, onde se consagra a esses escritos profanos, às artes, às festas e ao prazer o que se devia consagrar apenas a Deus.

O sumo pontífice sabe tudo isso, minha querida irmã e preocupa-se seriamente. A desordem espiritual de Florença aflige-o ainda mais porque o exemplo vem de cima. Os irmãos Médicis fazem pouco da fé cristã e da honra das mulheres. O adultério e o deboche espalham-se livremente pela sua corte. Eles chamaram aos seus conselhos gente baixa, ao mesmo tempo que, por meio do exílio, da morte ou simplesmente do desdém, afastaram aqueles que desde sempre contribuíram para a riqueza e bom nome da cidade... Mas Deus não os esquece!

Fiora olhou com estupor para aquele monge, que parecia em estado de transe. Com os olhos postos na abóbada, como se estivesse à espera que ela se abrisse para dar passagem ao castigo celeste, erguera-se e, apoiado com as duas mãos na mesa, vociferava o seu furor fanático... e o seu ódio pelos Médícis...

Acreditais que um dia o Anticristo se afastará de nós? perguntou a madre Maddalena com as mãos unidas e os olhos marejados de água.

Frei Inácio regressou bruscamente à terra e enxugou o suor que lhe perlava o crânio calvo: É o que espera Sua Santidade e eu não fui enviado aqui se não para lhe trazer o socorro dos meus olhos e dos meus ouvidos. Eu sou estrangeiro, portanto imparcial, mas o que vi e ouvi até agora faz-me lamentar que a poderosa máquina da Inquisição, tão florescente quando estava nas nossas mãos, tenha finalmente sido confiada aos irmãos pregadores, que não se preocupam muito com ela. Entretanto, seria desejável que ela retomasse o seu rigor nestes países e aliás, a rainha Isabel de Castela, por quem fui enviado a Roma, desejaria que o Papa autorizasse a sua instalação nos seus reinos, nos quais ela prossegue a sua reconquista face aos Mouros infiéis... mas, parece-me que nos afastámos um pouco do caso desta rapariga, a quem tudo isto não diz respeito. Ela olha para nós com olhos arregalados, que devia aprender a baixar!

Não tão afastados quanto isso, muito reverendo irmão. Não é ela o pior exemplo daquilo que produz uma educação onde Deus não entra?

Ler livros nunca impediu fosse quem fosse de servir e amar o Senhor protestou Fiora, indignada. Eu acho que sou tão boa cristã como...

Como eu, talvez? Não sejas vaidosa, Fiora!...

Deixemos isso, minha irmã e acabemos com isto! cortou frei Inácio secamente. Por agora, estou aqui para tentar salvar uma alma, se ainda for a tempo. Tu disseste-me, há pouco, que temias a morte, rapariga pecadora? Quero acreditar em ti, porque, com efeito, tu és jovem... e bela, mesmo se essa beleza é obra do Maligno. Portanto, faço-te uma pergunta simples: queres viver?

Viverei se Deus quiser e se o rio não me engolir disse Fiora calmamente.

És corajosa, reconheço-o... a menos que contes com a ajuda... do Outro?

Do Outro? Qual outro?

Não te faças inocente, porque os teus olhos não têm nada de inocente. Estou a falar daquele que os feiticeiros e feiticeiras invocam e tu tens tudo o que é preciso para ser uma. Já vi iguais a ti sorrirem face a uma fogueira...

Mandastes-me vir aqui para me insultar? exclamou Fiora, revoltada. Eu não sou nenhuma feiticeira, assim como não o eram os meus infelizes pais, cujo único crime foi amar quem lhes era proibido!

Não te aconselho a invocá-los muitas vezes! Mas seja, acredito em ti: tu não és uma feiticeira disse o monge com a voz subitamente diferente, tão doce e envolvente como antes dura e cortante. Tu não passas de uma ovelha tresmalhada, por teres maus donos. É por isso que me proponho salvar-te.

Tens, portanto, o poder de evitar que eu seja atirada à água, quando toda a cidade espera isso com impaciência?

Vejo que não tens muitas ilusões sobre o que podes esperar dos teus antigos amigos! disse frei Inácio com um pequeno sorriso. Dito isto, não me é possível evitar o juízo de Deus. A única pessoa que o pode fazer és tu mesma.

Eu?

Quem mais? E basta uma pequena coisa: reconhece diante de mim, aqui mesmo, que acusaste falsamente... talvez sob o império do desgosto como vês, esforço-me por te compreender! aquela pobre mulher... Lembra-te que ela agarrou, como se fosse a sua última hipótese, a terrível prova que eu propus. Portanto, não pode ser culpada. Reconhece que te enganaste e eu farei com que os daqui se acalmem...

E se eu aceitar, que me acontece depois?

Primeiro, ficarás aqui no convento, aos cuidados da madre Maddalena. Será mais prudente, porque tu própria o disseste: estes bons florentinos só vêem em ti... uma filha de ninguém. Não poderás recuperar os bens do teu pai: Médicis ficará muito feliz por poder guardá-los para ele. Serás desonrada e atirada ao rio...

Por que razão seria obrigada a ficar aqui? Podia muito bem saír de Florença!

Mas, tu sairás de Florença. Quando os espíritos estiverem um pouco mais calmos e estiveres um pouco esquecida, far-te-ei conduzir a Roma, onde Sua Santidade, a meu pedido, te acolherá. Poderás, então escolher entre um convento agradável ou o serviço de uma nobre dama qualquer. A sobrinha do Papa, por exemplo: a condessa Catarina... Ela receberia, certamente com bondade, uma jovem indignamente abandonada e espoliada pelos Médicis.