Fiora, a princípio desorientada pelo tom subitamente amigável do monge espanhol e sem perceber os desígnios que o levavam a tentar que ela renunciasse à sua acusação, compreendeu subitamente. Vindo para fazer um inquérito acerca da depravação e supostas violências de Lourenço e Giuliano, frei Inácio contava fazer dela um dos peões do seu jogo. Se bem que pouco a par da política, sabia o suficiente para não ignorar que Sisto IV, inimigo mortal dos Médicis, porque desejoso de oferecer Florença ao seu sobrinho Girolamo Riario, marido de Catarina Sforza, esforçava-se por reunir à sua volta todos os inimigos do senhor da cidade cobiçada. Fiora juntar-se-ia em Roma a Francesco Pazzi, o vencido da giostra, de quem se dizia que estava a ser aliciado pelo Papa para os seus negócios de prata e que transferira para Roma, com a bênção do velho Jacopo, a maior parte da fortuna familiar. Entretanto, Hieronyma, reconhecida como inocente e pura, constituiria um insulto vivo para Lourenço, que tentara defender Fiora... e, certamente, conseguiria que lhe fosse atribuída pela Senhoria uma boa parte da fortuna dos Beltrami.

Vendo que a jovem se mantinha em silêncio, frei Inácio impacientou-se:

Então? Que tens a dizer? Creio que a minha oferta é generosa?

Também acho disse a prioresa. Pela minha parte, aceito manter-te aqui, onde serás tratada como a protegida da Igreja que em breve serás...

Fiora olhou para um e para outro: para ela, com os seus olhos ainda húmidos por uma estúpida ternura e para ele, com o tique enervante da boca, que mordiscava e humedecia. Tanto um, como o outro, causavam-lhe repugnância.

Agradeço-vos a ambos... muito sinceramente pelo interesse generoso que tendes por mim, mas prefiro enfrentar o juízo de Deus. Espero que ele me permita provar que tenho razão!

Frei Inácio, que voltara a sentar-se, saltou da cadeira como se tivesse sido impelido por uma mola:

Pobre louca! Acabas de assinar a tua condenação à morte! urrou ele, ao mesmo tempo que a sua companheira erguia as mãos e os olhos ao céu.

Tu não sabes nada, reverendo padre! Eu posso sobreviver ao afogamento.

Mas não ao fogo! Eu tinha razão: tu não passas de uma feiticeira e, se por infelicidade o rio te deixar viva, será à fogueira que farei com que te condenem! Como farei, talvez, com que condenem um dia o Médicis e todo o seu bando. Não ignoro que ele tem com ele um médico mágico e vidente grego, que não pode ser senão um subordinado de Satanás! Quando o Papa estender a sua mão sobre esta cidade maldita, todos eles arderão... mas tu, tu arderás antes deles, para maior glória de Deus!

O monge perdera o domínio de si próprio e à luz ondulante das velas a sua boca espumante, retorcida de raiva e os seus olhos chamejantes davam-lhe o ar de um demónio.

Será o que Deus quiser. Mas tu devias deixar que Ele próprio se encarregue da sua glória. Ele percebe certamente mais disso do que tu!

É a tua última palavra? Recusas?

Recuso. E agora, com a tua autorização, gostaria de regressar à minha cela. Faz-se tarde... e eu gostaria de rezar em paz.

Sacrilégio! O fogo do inferno espera-te depois do dos homens! O monge gritava tão alto que, temendo sem dúvida que ele fosse ouvido por toda a comunidade, a madre Maddalena apressou-se a chamar de novo a irmã Prisca batendo as palmas. A religiosa não devia estar longe, porque apareceu imediatamente. No instante seguinte, Fiora regressava atrás dela para o seu alojamento. Mal tinha entrado quando ouviu as freiras a sair da capela. A jovem ouviu-lhes os passos deslizantes e os cochichos: as filhas de Santa Lúcia deviam perguntar a si próprias por que razão a madre superiora não assistira ao ofício da noite. Depois, deixou de ouvir qualquer ruído, senão, na vizinhança, os latidos furiosos de um cão e, um pouco mais tarde, o apelo repetido dos soldados da guarda, que, nas muralhas, chamavam de uma torre para a outra.

Fiora viu que na sua ausência lhe tinham levado o jantar. Era composto por pasta de queijo com uma salada de manjericão. Mas estava tudo frio. A jovem comeu um pouco. Achando o prato pegajoso, vingou-se no pão e na água. A despeito de não se ter mexido muito durante todo o dia, sentia-se fatigada, mas era sobretudo o espírito que estava cansado... Quando as portas do convento se fecharam após a sua entrada, Fiora esperara gozar, ao menos, um pouco de paz. Ora, desde que entrara naquele lugar dedicado à oração e meditação, só encontrara maldade, mesquinhez e desprezo. Tivera de defrontar um casal de fanáticos, decididos a empregar todos os meios para lhe impingirem os seus desígnios tortuosos. O monge ameaçara-a, até, com a fogueira. Mas ela não cedera, apesar do medo que aquele monge lhe inspirava e sentia-se feliz...

Sentiu que só lhe restavam dois dias e o seu coração apertou-se, face ao tempo que fugia inexoravelmente. O seu destino, começado numa prisão, deveria mesmo acabar noutra prisão? A jovem pensou na sua mãe e em tudo o que suportara. Como Marie devia ter sofrido, no corpo e na alma, durante as horas penosas do parto, vigiada por carcereiros sem piedade, com a ideia terrível de que não teria o direito de ver viver aquele pequeno corpo saído do seu ventre e que, certamente, seria votado à morte a breve trecho! Dias e noites de agonia, talvez com o gládio do carrasco como única esperança... Mas, pelo menos, era apoiada pelo seu amor próximo, um amor que na última hora pudera pegar pela mão, ao passo que o de Fiora clamava no deserto... Como tudo teria sido diferente se Philippe a tivesse amado como Jean aquele Jean em quem ela não conseguia ver um pai tinha amado Marie!

Um dia, aquele estranho marido saberia que aquela Fiora, que ele jurara amar, defender e guardar em sua casa para o melhor e para o pior, morrera miseravelmente. Derramaria por ela uma lágrima? Ou teria pena? Não, um Selongey não devia saber chorar. Sentiria apenas um grande alívio. A vergonha deixaria de existir, a sujidade teria sido lavada... Ele poderia virar-se alegremente para outra mulher... uma mulher que talvez já ocupasse a sua vida e os seus pensamentos?

Naquela noite, Fiora não conseguiu rezar. Deus estava demasiado longe, demasiado indiferente, já que permitia que pesasse sobre uma inocente o peso de uma maldição imerecida. Quanto aos representantes da Sua glória e bondade, que Ele tinha posto no caminho da sua vítima, não conseguiam mostrar os doces rostos do Crucificado e da Sua Santa Mãe... E foi a chorar que Fiora adormeceu.

O dia seguinte foi sombrio. De manhã cedo uma outra irmã leiga apareceu para levar a escudela ainda cheia e proceder a uma rápida limpeza da cela, mas manteve os olhos obstinadamente baixos durante o tempo todo que durou o seu trabalho e não respondeu a nenhuma das perguntas que Fiora lhe fez.

Ninguém apareceu durante o resto do dia. Constatando que não lhe traziam nada de comer, Fiora pensou que tinham decidido aplicar-lhe um severo regime de penitência, consequência evidente da sua atitude face à espécie de tribunal constituído pela velha prioresa e pelo monge espanhol. A jovem resignou-se, lamentando apenas, quando soasse a hora do juízo de Deus, afrontar a prova com as forças diminuídas.

Passou o dia todo deitada na cama. Uma chuva fria caía incessantemente desde manhã, alagando o jardim onde já não havia aves e Fiora sentiu o seu coração pesar cada vez mais à medida que o tempo passava.

Para sua grande surpresa, a mesma irmã que viera de manhã, regressou à noite com pão, água e uma grande escudela com uma sopa espessa, que cheirava a legumes frescos. E para sua surpresa ainda maior, falou-lhe.

Está quente disse a leiga. Despacha-te a comê-la!

O tom era quase amigável e Fiora sentiu o seu coração aquecer. Era a primeira criatura, naquela casa, a dirigir-se-lhe como a um ser humano.

«Obrigada», disse ela com um sorriso que não lhe foi devolvido. Mas não tinha importância. Com o apetite da sua idade, atacou a sopa que lhe pareceu suculenta, se bem que tivesse um gosto um pouco invulgar, difícil de determinar. Mas a jovem não teve tempo de fazer a si própria qualquer pergunta, porque, mal meteu à boca a última colherada, a escudela escapou-lhe das mãos. Os seus olhos fecharam-se e Fiora caiu num sono profundo...

CAPÍTULO VIII

O MULHERÃO

Fiora abriu os olhos para um cenário tão diferente daquele em que adormecera, que voltou a fechá-los de imediato, pensando que estava a sonhar, mas a sua cabeça, pesada e dorida, a boca seca e uma penosa sensação de náusea trouxeram-na de volta a uma realidade bem diferente. Abriu de novo as pálpebras e tentou levantar-se, mas a tontura que lhe atingiu a cabeça obrigou-a a deitar-se de novo com um gemido. Imóvel, então, contemplou sem compreender o quadro inverosímil no meio do qual se encontrava.

Aquilo parecia-se com uma estufa, porque havia uma grande selha de madeira pousada num solo de lajes, no qual estava escavado um rego para evacuação de águas, que terminava num buraco escavado na muralha. Havia também um braseiro, aliás apagado, mas cujos fumos tinham enegrecido o tecto grosseiramente rebocado. Também se parecia com uma prisão, porque a divisão era mal iluminada de cima por um respiradouro e parecia-se também, finalmente, com um quarto, porque a cama, na qual Fiora estava deitada, suficientemente grande para acolher três ou quatro pessoas, era confortável. Os lençóis e cobertores estavam limpos, mas as cortinas que a rodeavam, feitas de um tecido de grandes ramagens berrantes vermelhas e amarelas, algo desfiadas, mostravam, aqui e ali, fios brilhantes, sinal de um passado mais faustoso. Sobre uma grande arca verde cuja pintura estava escamada, um candelabro de ferro, cheio de cera sólida, suportava seis velas que iluminavam a parede, em frente da qual se encontrava o leito. Ora, essa parede estava pintada...

Grosseiramente, sem dúvida, porque não tinha a mão dos jovens génios que faziam o orgulho de Florença, antes pelo contrário um grande sentido do realismo e um verdadeiro abuso de cores, o pintor desconhecido tinha espalhado pela parede os amores de uma ninfa roliça e de um sátiro membrudo. Espantada, Fiora corou e fechou os olhos com força, para não ver aquela imagem ordinária.

Se pretendes fingir que estás a dormir disse uma voz de aguardente essa não é a maneira ideal!

Reabrindo os olhos com prudência, Fiora já não viu a pintura. Esta fora substituída por uma espécie de monstro: uma criatura talhada como um mercenário alemão, do qual tinha a voz áspera, mãos parecidas com pás de bater roupa, ombros de carregador e braços extremamente musculosos. Da posição alongada em que se encontrava Fiora, parecia imensa e quase tão larga quanto alta. No entanto, tinha de se render à evidência: a criatura era uma mulher! Atestavam-no os seios que apontavam como canhões sob a seda verde-crua do vestido e os longos cabelos ruivos crespos, que enquadravam um rosto com as dimensões do resto, mas que, talvez, tivesse alguma beleza se fosse desembaraçado da camada de pintura e se os olhos fossem maiores; pareciam-se, com efeito, com dois seixos verdes, dos quais tinham a devida ternura. Uma profusão de jóias tilintantes complementava a personagem, cintilando a cada um dos seus movimentos.

Eu não estou a fingir que durmo disse Fiora mas gostava de saber onde estou.

Isso n’é difícil: tás em minha casa.

E onde é isso, a tua casa? E quem és tu?

A mulher apoiou-se às colunas do leito que tremeu sob o choque, provocando em Fiora uma nova dor.

Na precisas de saber onde é a minha casa! Quanto a mim, chamam-me Pippa, a grande Pippa, ou ainda o Mulherão. Como não frequentamos o mesmo mundo, isso na te deve dizer grande coisa.

Não... absolutamente nada. Mas, como vim parar aqui? Eu adormeci ontem à noite no convento.

Na foi ontem: foi antes d’ontem. Tava a ver que nunca maisacordavas... A minha opinião é qo’as freiras tiveram a mão demasiado pesada co’a droga...

Uma... droga? Mas porquê?

Pippa desatou num riso relinchante, mostrando uns dentes capazes de moer o trigo:

Por pura bondade. São umas santas mulheres, sabes? Devem ter pensado qu’era mau negócio deitarem uma mercadoria tão boa à água.

Queres dizer... que foram elas que me trouxeram para aqui?

N’exageres! Tás a ver umas irmãzinhas a virem aqui? E voltou a relinchar.

Por piedade gemeu Fiora cala-te! Dói-me imenso a cabeça... e o coração! Parece que tenho lã na boca.

Pippa parou, franziu o sobrolho e pousou a sua pata na fronte da jovem:

É mesmo o qu’eu dizia: elas tiveram a mão muito pesada. Vamos já tratar disso!