Proíbes-me? Tu podes proibir seja o que for ao teu senhor? Vais-te arrepender... Eu disse aqui! Aqui, de joelhos!

Pippa, assustada com a reviravolta dos acontecimentos, interveio:

Um pouco de paciência, senhor! Serve-te desse chicote mais tarde, quando ela estiver mais habituada a ti disse ela com uma voz mansa, que pretendia fosse suave. Pensa que tens diante de ti uma rapariga doce, uma virgem pura, que nunca imaginou, sequer, as alegrias de uma união contigo... Começa por tomá-la! Depois, estou certa, ela ficará doce... e submissa!

O olhar de Pietro vacilou. Respirou duas ou três vezes com muita força e deixou cair o chicote:

Tens razão. Celebremos, primeiro, as bodas! Traze-la aqui! Pippa não se fez rogada. A despeito da defesa desesperada de Fiora,

arrancou-a ao seu abrigo precário e forçou-a a deitar-se na cama, onde a jovem imediatamente se enroscou. O seu coração batia-lhe com toda a força no peito, porque, com um grito de raiva, Pietro voltara a pegar no chicote e fustigava-lhe os ombros e o dorso que ela lhe oferecia. Ele ia voltar a fustigar, mas o Mulherão, compreendendo que ele era capaz de matar a sua preciosa pensionista, deteve-lhe o braço.

Já t’aconselhei a teres um pouco de paciência, senhor! É inútil bateres: o sangue sujar-te-ia. Eu seguro-ta!

Segura-a bem, então! Ela é capaz de me arranhar!

Não receies! Eu trato disso. Despe-te! e, em voz baixa, sussurrou ao ouvido de Fiora: Por amor de Deus, deixa-t’ir! El’é capaz de te matar!

Que Pippa invocasse o amor de Deus num tal lugar e num tal momento era significativo da sua inquietação, mas não precisava da ajuda de ninguém: precisou de pouca força para quebrar a resistência da infeliz, que se viu estendida de lado na cama com os ombros e os braços solidamente seguros.

Entretanto, Piero tirara o seu grande manto, que atirou para um canto:

Eu nunca me dispo para desflorar uma rapariga. Elas acham esta roupa mais agradável. Excita-as!

O gibão que ele trazia estava, com efeito, constelado de pequenas placas de ferro pontiagudas, que, sem causarem ferimentos graves, deviam arranhar cruelmente a pele das suas companheiras.

Por todos os diabos! sussurrou Pippa, estupefacta. No entanto, sabia que o filho de Hieronyma não era normal e, na sua casa, já encontrara muitos homens cruéis, mas aquilo confundia-a.

Vendo que ele se aproximava, Fiora fechou os olhos com força e apertou nervosamente as pernas, mas o monstro abriu-lhas com um violento golpe de joelhos e depois, à-vontade, entrou nela brutalmente... mas retirou-se de imediato arranhando os seios e o ventre da jovem, que não conseguiu reter um gemido:

Ela não é virgem! urrou ele.

Ela não é virgem? repetiu Pippa, aturdida. Deves’tar enganado, senhor! Entraste com muita força!

Eu não sou estúpido, Pippa e sempre soube quando uma rapariga é nova, ou não! Esta já serviu... mas ela vai-me dizer a quem! Ouves, putazinha porca? Com os teus grandes ares, não és melhor do que as que se arrastam pelas tabernas do rio! Mas, agora, vais falar!

E atirou-se a ela de novo, apertando-lhe a garganta e começando a apertar, a apertar. Pippa lançou um grito:

Como queres tu qu’ela fale s’a estrangulas? Deixa-a... Estou-te a dizer p’ra deixares!

E o Mulherão já segurava no monstro pelos punhos quando, subitamente, surgiu um homem sem que ela pudesse adivinhar de onde, um homem vestido com uns trapos que lhe davam o ar de um rato careca, tão grande e tão negro que ela pensou ver o diabo em pessoa. E mal teve tempo de aperceber o brilho do punhal com que, por duas vezes, ele feriu Piero no dorso...

O corcunda lançou um grito e abateu-se. As suas mãos largaram a presa mesmo a tempo para Fiora, que sufocava. Pippa, que estava de joelhos no outro lado da cama para melhor imobilizar a jovem, ergueu-se penosamente. Os seus olhos espantados iam do corpo inerte para o homem vestido de farrapos, que, com uma mão e sem esforço aparente, agarrou no morto pela gola do gibão e afastou-o de Fiora, sobre a qual estava estendido pesadamente, para o atirar por terra com nojo, como uma coisa imunda. O corpo da jovem apareceu coberto de pequenas arranhadelas, de onde corria sangue; o homem não se perturbou. Com as asas do nariz meio fechadas, Fiora respirava com dificuldade...

Fizeste-a linda! murmurou Pippa, que olhava com horror para a mancha de sangue a aumentar nas costas de Pietro. E, já’gora, quem és tu?

Alguém que poderia mandar-te enforcar... ou, até, queimar, se este monstro tivesse matado madonna Beltrami em tua casa. Já é suficientemente grave ter prisioneira uma mulher raptada do asilo de um convento disse tranquilamente Demétrios, que apalpava com suavidade o pescoço dorido, para se assegurar de que não havia nada quebrado. Tu és cúmplice. Seguravas-lhe os braços enquanto ele a estrangulava.

Não o teria deixad’ir até ao fim! Juro por...

Não jures, Pippa! É tempo perdido. Farias melhor se tratasses dela. Ele pô-la num lindo estado!

O médico grego tirou de sob o seu vestuário imundo um pequeno frasco, que aproximou dos lábios brancos de Fiora; umas gotas deslizaram-lhe para a boca e nos segundos que se seguiram todo o corpo da jovem foi percorrido por um longo arrepio. Por fim, Fiora abriu os olhos e olhou com imensa surpresa para o rosto barbudo inclinado para si. Reteve a tempo uma exclamação, porque Demétrios lhe pousou rapidamente um dedo sobre a boca:

Isso vai melhor?

Sim sussurrou ela. Sim... obrigada!

Entretanto, Pippa mexia-se. Acabou de arrancar o que restava da túnica de musselina, lavou o corpo com água de laranjeira e foi buscar um pequeno púcaro, do qual tirou uma noz de pomada que espalhou por todos os ferimentos, prodigalizando à vítima palavras tranquilizadoras, sem por isso deixar de espreitar, pelo canto do olho, o seu estranho visitante:

Pronto, minha pomba! Não é nada! Uma boa noite de sono em cima disto e desaparece logo!

Estou de acordo com a boa noite de sono disse Demétrios mas não aqui! Veste-a com o que encontrares à mão. Eu vou levá-la!

Subitamente, Pippa reencontrou toda a sua combatividade. Pondo-se nos bicos dos pés, fez frente ao grego, de mãos nas ancas, formidável e ameaçadora:

Levas mas é nada! Já me fizeste muito mal ao matar assim um bom cliente. Mas ela, sou eu que fico com ela! ’tás a perceber? No fim de contas, quem és tu? Na passas d’um mendigo e eu tenho aqui um tipo ou dois que me podem muito bem ajudar. Sem contar que posso gritar oh-da-guarda. E hei-de dizer a verdade: que mataste um nobre e é a ti qu’hão-de enforcar! E pensando bem... por que não hei-de eu gritar já?

E ia gritar, mas Demétrios estendeu um braço, os dedos separados dirigidos aos olhos da mulher, que ficou de boca aberta. Sem mudar de posição, o grego avançou um passo e Pippa recuou um passo e assim sucessivamente até que ela ficou encostada à parede, tão hirta como uma prancha. Os olhos negros que Demétrios dardejava sobre ela flamejavam como velas.

Tu não vais chamar ninguém, Pippa disse ele com uma voz calma e sem deixar de olhar para ela. Pelo contrário, vais obedecer-me... Ouves a minha voz?

Sim... sim, ouço a tua voz! Fala! Obedecerei! A voz da mulher estava diferente, longínqua...

Então, ouve: vais vestir esta jovem e depois vais acompanhar-nos até à porta. De seguida, chamarás o teu irmão e quando a tua casa estiver vazia, levareis este corpo até ao rio, para onde o atirareis depois de o terdes lastrado com uma ou duas pedras grandes. Depois, regressareis. Só então acordarás, mas terás esquecido tudo do que acaba de se passar aqui. Quanto à tua prisioneira, conseguiu fugir enquanto os bêbedos que entraram aqui lutavam uns com os outros...

Toda a sua força parecia concentrada no olhar e na mão que pregava Pippa à parede. O médico destacava claramente cada sílaba, como para melhor as fazer entrar no espírito da mulher. Esta tinha os olhos muito abertos e estava absolutamente imóvel. Parecia uma grande estátua, para a qual Fiora olhava com estupor. Entretanto, Demétrios, após um curto silêncio, perguntou:

- Compreendeste as minhas ordens?

Sim.

Executá-las-ás? Sem faltar nada?

Sem faltar nada...

Então vai, obedece! acrescentou ele com uma voz forte, deixando cair lentamente o braço. Pippa vacilou, como se lhe faltasse subitamente um apoio e meteu mãos à obra com gestos bizarros de autómato. Vestiu Fiora que não ousava mexer-se, vestiu-lhe a roupa que a jovem trazia à chegada e que tirou de uma arca: a sua camisa, o hábito branco de noviça e as sandálias de corda entrançada. Demétrios pegou então no manto negro que Pietro abandonara, entregou-lho para que ela envolvesse a jovem e estendeu a mão a esta.

Vem! disse ele. E não temas! Ela vai, tal como lhe ordenei, acompanhar-nos até à porta...

Pippa, com efeito, tão indiferente como se estivesse só, acendeu uma vela no candelabro e dirigiu-se para a porta. Mas Fiora resistiu à mão que a levava:

E Khatoun? Eu não posso partir sem ela!

A pequena tártara que te é tão devotada? Onde está ela? Fiora fez um gesto vago:

Não sei. Algures nesta casa, com um homem... um estranho. Pippa disse que ia dá-la a alguém que a apreciaria... É preciso encontrá-la!

Demétrios franziu as sobrancelhas:

Esta noite é impossível! Esta casa é grande e não podemos vasculhar tudo. Além disso, não posso adormecer uma multidão como adormeci esta mulher. Temos de partir sem ela.

Não! disse Fiora. Recuso-me a abandoná-la. Deus sabe o que lhe pode acontecer, entregue a esses demónios!

Não vejo que possas fazer grande coisa para a proteger. Mas, descansa: ela não arrisca nada. Pippa sabe muito bem o valor de uma rapariga bonita. Aliás, amanhã mandarei buscá-la. O Mulherão não resiste muito tempo ao ouro e vai tê-lo. E agora vem, temos pouco tempo!

Pippa esperava na soleira da porta como uma criada bem ensinada. Quando Demétrios e Fiora se aproximaram, pôs-se em marcha precedendo-os e levando na mão a vela para iluminar o caminho. Percorreram um corredor mergulhado na noite e que desembocava num pátio interior, o mesmo para onde dava o quarto-estufa de Fiora. Ouviram-se gritos e risos quando passaram sob uma abóbada onde desembocava uma escadaria. Estavam tão próximos que a fugitiva sentiu uma angústia ao pensar que podia abrir-se uma porta, deixando sair alguns dos que, lá dentro, faziam uma verdadeira bacanal.

Não tenhas medo sussurrou Demétrios. Com ela não temos nada a temer. Aliás, ela evitou a grande sala... E já estamos quase lá fora...

No fim de um último corredor, Pippa abriu uma porta e afastou-se para deixar passar os seus companheiros. Em seguida, voltou a fechá-la. Com uma alegria infinita, Fiora olhou para o grande céu azul-escuro, ponteado de estrelas, no qual o intervalo das silhuetas das casas encostadas umas às outras da ruela formava fitas cintilantes. A jovem respirou a plenos pulmões o ar húmido que arrastava odores de peixe, azeite e madeira queimada e apertou com mais força a mão de Demétrios:

Como agradecer-te... começou ela, mas ele fê-la calar-se.

Mais tarde teremos todo o tempo para conversar. Por agora, temos de nos abrigar até ao fim da noite. Ao nascer do dia, quando as portas forem abertas, levar-te-ei para minha casa, em Fiesole...

Onde vamos?...

A casa do amigo a quem devo este espólio... e outras coisas...

Os dois saíram da ruela com infinitas precauções e só quando tiveram a certeza de que o passo da milícia se afastava, em lugar de se aproximar. Na sua frente estendia-se o que parecia um amontoado de ruínas e que, de facto, era um estaleiro inacabado: o de um grande palácio que só tinha o rés-do-chão e uma parte do primeiro andar, mas que não deixava de ser impressionante pelas pedras enormes, meio desbastadas, rugosas e bárbaras da sua construção. As pessoas do bairro não se aproximavam dele porque tinha má fama. O homem que o quisera construir, Luca Pitti, um dos homens mais ricos de Florença, pedira os planos a Brunelleschi, o arquitecto genial que tinha erigido o Baptistério e coroado o Duomo com a sua enorme bolha cor de coral. Queria-o como o maior, o mais rico da cidade, à altura da sua ambição desenfreada. Após a morte de Cosimo, o avô de Lourenço, Pitti conspirara com Soderini, o administrador municipal de então, para arrancar o poder das mãos mais fracas de Piero o Gotoso, filho de Cosimo, mas a conspiração fracassara e Pitti, arruinado e exilado, morrera longe da cidade amada. A imaginação popular, que não se satisfazia com um fim simples, pretendia, em voz baixa, claro, que os restos mortais de Luca Pitti, assassinado pela gente dos Médicis, estavam enterrados sob o seu palácio inacabado e como as lendas têm vida longa, as mulheres benziam-se ao passar pelos muros enormes e pelas grandes arcadas vazias, para onde abriam os olhos cegos das grandes janelas rectangulares. Ninguém se atrevia a ir buscar uma daquelas pedras abandonadas, que diziam malditas. Aquilo durava há 35 anos...