- Então e a outra pequena? Que vai ser dela?

O velho padre afastou as duas mãos, no meio das quais o vazio traduzia a sua impotência:

- Não sei. No entanto, antes de morrer, Marie suplicou-me que tomasse conta da sua filha. Não sei qual vai ser o seu destino. As senhoras do asilo acolheram-na com alguma repugnância.

- Como assim?

- Um filho do incesto é objecto de horror, produto de uma coisa diabólica. Nenhuma ama-de-leite quis encarregar-se dela. Dão-lhe leite de cabra; morrerá dentro em breve, se já não morreu. Eu podia encarregar-me dela, mas onde arranjar uma mulher que me ajude? Moro em Brévailles e não tenho outra casa...

Francesco deixou explodir a sua indignação:

- As pessoas daqui parecem-me muito pouco cristãs. A criança foi baptizada?

O padre Charruet fez sinal que não:

- Eu queria fazê-lo; mas não me deixaram aproximar e...

- Isso é o que vamos ver! Conduzi-me a esse asilo onde as crianças inspiram repugnância!

- Que quereis fazer?

- Ides ver! Eh lá, Marino! Manda atrelar dois cavalos, ou antes três, e prepara-te para nos acompanhares.

- É uma loucura! Em breve será noite, as portas vão fechar-se e o hospital está à entrada da estrada de Beaune - disse o padre.

- É precisamente por isso que devemos apressar-nos!

Um instante mais tarde, os três homens retomavam a direcção da porta de Ouche. Com efeito, o Hospital da Caridade, dedicado ao Espírito Santo, erguia a sua construção mesmo ao lado do rio Ouche, perto do antigo hospício dos empestados. Era um velho edifício, fundado em 1204 pelo duque Eudes III para os peregrinos, os pobres doentes e as crianças abandonadas. Umas religiosas do Espírito Santo partilhavam a obra com algumas religiosas agostinhas, que se ocupavam em particular das crianças.

A noite caía quando Francesco e os seus dois companheiros chegaram à vista do antigo portão. Subitamente, Antoine Charraet segurou no braço de Francesco e reteve-o. Um homem vinha a sair, acompanhado até à soleira da porta por um religioso.

Olhai disse o padre. É Regnault du Hamel! Reconhecê-lo-ia fosse onde fosse, apesar daquele grande manto em que se abriga...

... e sob o qual esconde qualquer coisa! Sigamo-lo!

Achais que é... a criança?

Sou capaz de jurar! Escutai! O vento da noite permitiu-lhes ouvir, com efeito, um leve vagido, que tirou as últimas dúvidas ao padre. Era mesmo a criança que du Hamel escondia sob o seu manto e era urgente tentar saber o que iria ele fazer dela. Deixando os animais à guarda de Marino, Francesco e o seu companheiro lançaram-se no seu encalço. Não era difícil de seguir. O local era deserto e o homem não se sabia espiado. Caminhava rapidamente na direcção do velho hospício e do seu cemitério aterrador. Francesco viu-o parar perto da fossa recentemente coberta, que a neve afastada distinguia do resto do terreno. De repente, o florentino compreendeu o que ele fora fazer ali e, empunhando o seu punhal, arrancou como uma flecha e chegou ao pé do homem num instante. Era tempo. Du Hamel tinha tirado das pregas do seu manto um bebé, que se pôs a chorar quando o miserável o ergueu acima da cabeça para o esmagar contra uma pedra. Mas já o punhal de Francesco se encostava aos seus rins...

Devagar, messire assassino! Devagarinho, se não quereis que vos mate. Eu já sabia que éreis um miserável, mas a este ponto...

A dor devia ser grande, porque Regnault obedeceu e baixou os braços.

Que... quereis?

Essa criança. Dai-ma... e sem lhe fazer mal! Vamos! Depressa! Eu sou pouco paciente!

O punhal enterrou-se um pouco mais. O homem deixou sair um grito e largou a sua presa, que Francesco agarrou com a mão livre, para a entregar de imediato ao velho capelão, que tinha as suas unidas e chorava de emoção:

Deus permitiu que chegásseis a tempo, messire! Na verdade, creio que sois Seu mensageiro.

Começo a pensar o mesmo! E agora, que fazemos? Acabo com ele?

Mas, para escapar à dor que lhe verrumava os rins, du Hamel lançou-se para a frente, rolando na lama. O miserável espumava de raiva:

Miserável estrangeiro! Hás-de arrepender-te a vida inteira pelo que fizeste hoje! Eu sou um homem poderoso e tenho os meios para te castigar como mereces.

Sobretudo, sois um criminoso que nós acabamos de surpreender quando íeis matar uma criança rugiu o padre Charruet. Testemunharei perante a justiça de monsenhor Filipe e veremos quem tem razão!

Francesco pôs-se a rir e bateu as palmas para chamar Marino, que acorreu com as montadas. De uma das sacolas que os cavalos transportavam tirou uma corda:

Vamos fazer de Maneira, mestre cobarde, que não possas prejudicar ninguém durante algum tempo. Ajuda-me aqui, Marino!

Antes que du Hamel pudesse fazer o menor gesto para se defender, viu-se solidamente amarrado e reduzido à impotência. Como continuava a gritar, Francesco tapou-lhe a boca com dois lenços. Em seguida, os dois homens transportaram-no para o velho hospício meio arruinado e abandonaram-no encostado a uma parede daquilo que fora, em tempos, o vestíbulo.

Não temeis que ele morra de frio? inquietou-se o padre, que embalava maquinalmente o bebé abrigado sob o seu manto e que, aliás, já nem sequer chorava.

Isso é com ele e com Deus! Não me peçais piedade para este assassino. Está bem-vestido e está ao abrigo das correntes de ar. Eu desconfio deste género de homem e quero abandonar Dijon antes que dê início às suas ameaças. No fim de contas, tem razão, quando diz que eu sou aqui um estrangeiro... Mas, agora, temos de tratar deste pobre pequeno ser que ele ia massacrar de Maneira tão selvagem. Mostrai-mo, padre!

O ancião entreabriu o manto, descobrindo uma pequena figura redonda coroada com um caracol castanho e dois punhos minúsculos, que se agitavam docemente. Os olhos estavam fechados e a pequena boca abria-se e fechava-se, procurando mamar.

Ela tem fome disse Francesco. Regressemos depressa à Cruz de Ouro, Dame Huguet saberá cuidar dela. Dir-lhe-ei que a encontrei na rua, para evitar chocar as sensibilidades das gentes locais.

Mas, que ides fazer dela?

Francesco inclinou-se e segurou numa das mãozitas, que se agarrou imediatamente ao seu dedo. O florentino pousou nela um beijo ligeiro, mas a sua voz era grave quando respondeu:

Vou fazer dela minha filha. Não tenho mulher e a minha família é pequena, mas a dela também. Juntos, seremos, talvez, felizes. Pela minha parte, farei tudo por isso.

Vós sois jovem, meu filho. Um dia, haveis de vos casar.

Não... não, nunca! Tomai-me por louco, se quiserdes, padre, mas eu hoje vi morrer a única mulher que poderia ter amado. E espero que lá, onde ela se encontra, Marie... Marie, que me parece conhecer desde sempre, me olhe, sorrindo.

Um sino tocou, ao longe. As portas da cidade fecharam-se para os três cavaleiros e o seu frágil fardo. Dijon, confiante na solidez das suas muralhas, dispunha-se a passar uma noite tranquila.

O regresso ao Cruz de Ouro com um bebé de apenas alguns dias teve foros de acontecimento. Dame Berúlle Huguet era muito dedicada a um cliente do qual conhecia, há muito, a extrema generosidade e se a chegada repentina de uma criança caída do céu lhe pareceu um pouco bizarra., absteve-se de fazer qualquer pergunta. Pelo contrário, comoveu-se com a triste sorte a que tinha sido votada a pequenita, declarou que já era bela como um anjo e colocou-a nas mãos experientes de uma parente de idade madura, Léonarde, que a ajudava no albergue e que, como todas as solteironas, adorava tratar de crianças. Encontrou nas suas malas fraldas e roupa de criança que tinham pertencido à sua filha, descobriu mesmo um berço e instalou tudo no quarto de Léonarde. Em compensação, mostrou um pouco de hesitação quando Beltrami lhe declarou que era preciso encontrar com urgência uma ama-de-leite que aceitasse partir para lá dos Alpes e pediu ao marido que descobrisse, fosse a que preço fosse, uma liteira para transportar o bebé e a ama-de-leite.

Ides partir já amanhã? espantou-se o padre Charruet.

É claro. Pretendo pôr a criança em segurança em minha casa o mais rapidamente possível, sem dar tempo a vós sabeis quem de nos fazer mal.

Mas... e os vossos negócios? Não me dissestes que estáveis a caminho de Paris para visitar a sucursal que lá tendes?

A viagem não tinha nada de urgente. Fi-la para não estar em Florença para as festividades do Natal. Foi nessa ocasião do ano que o meu pai morreu e essa recordação ainda me é penosa. Um dos meus servidores, a quem vou dar uma carta, conduzirá sem dificuldade o carregamento de tecidos finos até à nossa casa da rua dês Lombards. Só Marino ficará comigo. Será suficiente para chegar a Marselha, onde me espera a minha carraca, a Santa Maria delFiore, que nos levará até Livorno, um pequeno porto de pesca que pertence a Florença desde há 30 anos...

Um navio? Também sois armador? Pensava que éreis apenas um fabricante de tecidos finos?

Com efeito, é isso que nós somos, os que praticamos aquilo que chamamos, entre nós, a arte di Calimala. Importamos do estrangeiro, principalmente da Flandres e de Inglaterra tecidos em bruto, que são, depois, no tear, transformados em tecidos finos, tão maleáveis e suaves como a seda e que são muito apreciados em toda a Europa. Mas o meu pai tinha a paixão do mar. Assim, temos dois navios, o Santa Maria e o Santa Madalena, dos quais um é para o comércio, enquanto o outro visita as costas de África ou as escalas do Levante, para de lá trazer produtos raros ou preciosos... Mais para satisfazer o seu gosto pela beleza du que para realizar grandes negócios. Pelo menos era o que ele dizia acrescentou Francesco com um sorriso porque o Santa Madalena, por vezes, trouxe-lhe alguns tesouros... Mas, onde ides, padre?

O ancião tinha-se levantado e dispunha-se a partir.

Se me demoro muito disse ele a porta do convento do Petit-Clairvaux, onde me dão hospitalidade, fecha-se e eu...

Francesco colocou-se rapidamente entre ele e a saída e, estendendo as mãos, fechou as do padre no sólido abraço das suas:

Por esta noite, suplico-vos que aceiteis a minha hospitalidade. Partilharemos este quarto...

Mas...

Por misericórdia, aceitai! Não gostaria nada de vos perder já. Amanhã deixarei esta cidade, talvez para nunca mais voltar. Pode ser que nunca mais nos encontremos neste mundo... e eu queria que me falásseis ainda... dela!

De... Marie?

Mal ouso pronunciar o seu nome, mas bastou um breve momento para ela se apoderar do meu coração, da minha vida... Ficai! Aliás, vem aí o nosso jantar.

Com efeito, batiam à porta e quem entrou foi uma grande mulher, seca, cujo nariz pontiagudo estava adornado com um par de lunetas, que lhe conferiam uma irresistível parecença com uma cegonha. Por trás dos vidros rodeados de aço, os seus olhos azuis brilhavam, cheios de vivacidade. Sobre o seu austero vestido negro, onde estava pregado um avental imaculado, o seu rosto, marcado por grandes rugas verticais, não tinha mais idade do que o seu corpo magro e liso. Era a tal Léonarde a quem dame Bertille tinha confiado o bebé. Ao entrar executou uma espécie de meia reverência bastante desenvolta, mas que acompanhou com uma abertura dos lábios que podia, com bastante boa vontade, passar por um sorriso.

Venho dizer-vos que a pequenina adormeceu, messire e que parece estar de boa saúde, a despeito daquilo por que passou.

Agradeço-vos por terdes tomado conta dela respondeu Francesco que, crendo que a mulher procurava uma recompensa, levou a mão à bolsa.

Ela deteve-o com um gesto e com um breve:

Obrigada, mas não se trata disso!

De que se trata, então?

Do que se vai passar amanhã. Dame Bertille disse-me que contáveis partir para o vosso país levando esta pobre pequena. De facto, como se chama ela?

Francesco e o padre Charruet olharam um para o outro, perplexos. Nem um, nem outro, tinham pensado naquilo... Umas lágrimas de vergonha subiram aos olhos do ancião.

Nós não... sabemos. Nem sequer sabemos se foi baptizada... Uma criança... encontrada...

Léonarde atirou-lhe um sorriso trocista, desta vez um verdadeiro sorriso, cheio de graça e até de malícia, o que nela era inesperado.

Um santo homem como vós não devia mentir, padre. Algo me diz que o encontrastes no Asilo da Caridade, este pequeno anjo... e que, em boa justiça, se deveria chamar Marie... ou Jeanne! Vamos, não façais essa cara! Eu sou curiosa, mas também me sei calar. E o que se passou esta manhã na praça Morimont foi uma coisa bem triste. Aquelas infelizes crianças...