Lourenço cessou bruscamente o seu passeio agitado em frente do médico grego:
E, naturalmente, ela está em tua casa?
Onde querias que estivesse? Só espero acrescentou Demétrios com um sorriso que não o vás dizer ao teu amigo frei Inácio? Atirava-nos aos dois para a mesma fogueira...
Pelo olhar que Lourenço lhe lançou, o grego compreendeu que fora longe de mais e desculpou-se, pondo a sua frase infeliz na conta da indignação sentida há pouco ao escutar o monge espanhol. E acrescentou à guisa de conclusão:
Só falta dizeres o que queres que eu faça.
Lourenço não respondeu. Reflectia. Mas o cónego-filósofo tomou a palavra:
Há uma coisa que me intriga, Demétrios e peço-te que me perdoes se te pareço indiscreto. Tu já não és novo e és um homem de ciência, muito afastado das loucuras da juventude. Por que te interessaste tanto por essa jovem? Pela sua beleza? Isso pode explicar-se num grego...
É verdade que não suporto ver arruinar uma obra de arte. Mas, no que diz respeito a donna Fiora, há outra coisa... Tu sabes que eu consulto os astros e que me acontece ter, do futuro, certas visões inexplicáveis. Ora, tive uma, quando na noite da giostra encontrei essa jovem...
O que é que tu viste? perguntou Ficino com curiosidade.
Prefiro não dizer. Mas no seguimento disso, consegui obter a data e o local de nascimento e fiz um horóscopo que, em certas coisas, se parece com o meu. Soube, com toda a certeza, que ela ia perder em breve o seu defensor natural, que teria necessidade de ajuda e decidi unir-me a uma estrela cuja luz era incerta, mas que, um dia, talvez emitisse um grande brilho...
Lourenço, que se reaproximava, escutara as palavras do grego. O Magnífico pousou-lhe uma mão no ombro: Se sabes o destino dela, por que razão me perguntas o que hás-de fazer?
Eu não sei tudo... e tu és o senhor. Agora sabes a verdade no que a ela diz respeito. Por que não fazer-lhe justiça? O pai dela só tem contra si uma mentira bem natural e ela é inocente. Não sofreu já o suficiente?
Se entendes por justiça restituir-lhe o palácio, os seus bens e pôr as coisas no estado em que estavam antes, é impossível. O povo não o permitiria. A imagem que tem dela é a de uma criatura diabólica. Seria preciso mantê-la escondida dia e noite. E depois... Eu não tenho assim tanta certeza da lealdade do defunto Beltrami...
Como é isso possível? indignou-se Marsile Ficino. Ele era o homem mais generoso, mais franco e mais honesto que eu já conheci... depois de ti!
Nesse caso, como é que explicas isto?
Lourenço foi a um armário e trouxe um pequeno cofre de malaquite, do qual tirou um rolo de pergaminho, que desenrolou e estendeu diante de si entre as duas mãos:
Angelo Donati, a quem confiei, de acordo com a Senhoria, a administração provisória dos negócios de Beltrami, recebeu do banco Fugger, em Augsburgo, o pedido de reembolso de uma letra, aceite por Francesco Beltrami e sacada por messire Philippe de Selongey, no valor de cem mil florins de ouro...
Livra! disse Ficino: que bela soma! Um resgate real!
Por que prisioneiro? O mais curioso é que, a pedido de Selongey, a soma foi depositada directamente no tesouro do duque Carlos da Borgonha. Eis porque, hoje, duvido da lealdade de Beltrami. Ele sabia da minha estreita aliança com o rei Luís de França e, no entanto, contribuiu e em que proporções para o tesouro de guerra do seu inimigo, que, portanto, também é nosso. Se o Temerário conseguir levar a cabo o seu sonho de império, a guerra estalará em breve entre nós, Sabóia e Milão e os seus aliados todo-poderosos... Eu chamo a isto traição!
Não julgues enquanto não tiveres na mão todos os dados do problema disse Demétrios. Deve ter havido uma razão... simples, mas que te escapa por agora. Confia nesse morto de quem gostavas e diz-me o que decides acerca da filha dele!
Fica com ela em tua casa! Está lá bem segura, na condição de não sair sob que pretexto for e que não veja ninguém. Ela é conhecida em Fiesole. Depois, veremos: tenho de reflectir.
O tom era seco e Demétrios pensou que seria pouco sensato, ou até perigoso, insistir. Lourenço, sabia-o, podia ser extremamente cruel se se achasse traído e as profundezas da sua alma tinham obscuridades insuspeitadas. O médico levantou-se para sair e saudou profundamente:
Direi as tuas palavras a donna Fiora, mas, antes de te deixar, posso pedir-te um favor?
Pede!
Aquela pobre criança está preocupada com uma certa Léonarde, que a educou e a quem é muito ligada. Essa mulher desapareceu no dia em que o palácio foi pilhado. Pode ser que donna Chiara Albizzi saiba onde ela está. Ora, eu não posso ir a casa dela sem levantar suspeitas e desagradar, talvez, à sua família...
Se Chiara souber alguma coisa, também eu saberei. Vai em paz! Assim que ele acabou de dizer aquelas palavras, o silêncio que envolvia o palácio Médicis explodiu sob os acordes de uma música alegre e com o eco de uma canção que acompanhava o passo dos cavalos e as campainhas das mulas. Um brilhante cortejo a cavalo atravancava a rua e acotovelava-se para penetrar no pátio do palácio. Giuliano e os seus amigos regressavam de uma festa no campo e enchiam a via Larga com um espantoso fresco colorido. Os fatos eram rosa, brancos, coral, verde-pálido ou amarelo-solar e era como se o vento, passando por todos os jardins de Florença, tivesse arrebatado as pétalas das flores para as depositar no coração da cidade. As montadas estavam arreadas de vermelho ou de azul debruado a ouro; as jovens traziam todas grandes ramos de lilases brancos, cujo perfume sensual as envolvia com uma nova sedução. Todos os rostos tinham a frescura da Primavera, todos os rostos sorriam em redor de Giuliano e de Simonetta, luminosa e diáfana como habitualmente, que não olhavam senão um para o outro... As flautas e as violas só pareciam tocar para eles...
Demétrios, que descia a escadaria, abraçou com o olhar o grupo turbulento e notou a ausência de Chiara Albizzi, o que não era nada de espantoso, pois a jovem estivera no palácio durante a tarde, mas notou, pelo contrário, a presença de Luca Tornabuoni. Soberbo numa túnica curta amarela bordada a prata, os caracóis negros dos cabelos brilhando à luz do Sol poente, o jovem assediava visivelmente com atenções e sorrisos uma rapariga loira de olhos azuis, que ria enquanto lhe passeava sob o nariz a haste perfumada de um ramo de lilases... Em seguida, todos desceram dos cavalos e o grego reparou de novo que, ao ajudar a companheira, Luca a manteve apertada contra si mais tempo do que o necessário...
Obedecendo a um impulso, Demétrios aproximou-se dos dois jovens e, dirigindo-se à adolescente:
Não deixes que esse rapaz te roube o coração, donzela, porque ele é a coisa mais inconstante que existe neste mundo!
O jovem Tornabuoni ficou rubro de cólera:
Os privilégios que o meu primo Lourenço te concede não te dão o direito de me insultares.
Insultei-te ao dizer uma simples verdade? Há uma semana amavas outra, mas a tua chama não resistiu uma hora, uma hora sequer, ao vento da infelicidade... E dizes tu que és um homem... Toma cuidado para que o destino não te atinja um dia e vejas os teus amigos afastarem-se de ti!
De púrpura, Luca, sob o olhar cintilante do médico, tornou-se lívido:
Que queres dizer? És algum feiticeiro? Tens o poder de ler o futuro?
Talvez... mas não tem importância. Tu também não tens importância. Vive a tua vida fútil, meu rapaz, não foste feito para outra coisa! De qualquer maneira acrescentou ele com um sorriso sardónico ela não te amava.
E girando nos calcanhares foi buscar o seu cavalo, que estava preso a um dos grossos anéis de ferro que pendiam, para o efeito, das paredes do palácio. Sentia uma alegria cruel por ter apagado a daquele casal despreocupado. A sua felicidade tivera nele o efeito de mais uma injúria dirigida àquela que, despojada de tudo, nem sequer tinha destino e esperava, lá em cima, que uma multidão imbecil quisesse esquecê-la. Era, da sua parte, uma maneira como outra qualquer de lhe prestar homenagem.
Também não se sentia nada satisfeito com as reacções de Lourenço, porque tinha a impressão que a letra dos banqueiros de Augsbourg chegara mesmo a propósito, para justificar a tomada de controlo de uma fortuna que pertencia a Fiora e a mais ninguém. Sob a tortura, Marino Betti teria confessado o seu crime e, sem dúvida, denunciado Hieronyma, mas Lourenço nem sequer queria mandá-lo prender com receio da reacção da Senhoria e da de um povo cujo carácter versátil e cruel ele bem conhecia. Quem poderia dizer se, naquele receio, não estava a íntima satisfação de poder controlar, doravante, os bens que, de outra maneira, lhe seriam sempre estranhos? Demétrios não tinha nenhuma dúvida que o Magnífico tinha medo daquela multidão que agora o aplaudia e lisonjeava. O médico sabia que, quando caminhava pelas ruas, Lourenço vestia uma cota de malha sob os seus trajes de veludo, ou de tecido fino. Ele era o primeiro de uma cidade que se queria livre e não o tirano de uma cidadela submetida pela força, se bem que tivesse o devido instinto...
Deixando as rédeas descansar em cima do pescoço do seu cavalo, Demétrios subiu a via Larga a passo. Era a hora a que as lojas fechavam as portas e a hora a que começavam as conversas. Pequenos grupos formavam-se à entrada das portas, enquanto outros os homens sobretudo se dirigiam isolados, ou em companhia, para as praças, onde estavam certos de encontrar os comensais habituais. Demétrios afastou com as costas da mão uma mosca precoce que anunciava um Verão quente, mas terminou o gesto numa saudação: da porta da sua loja, o livreiro Bisticci fez-lhe sinal. O médico aproximou-se:
Tens novidades para mim?
Tenho... e excelentes! Encontrei um jovem árabe que tem uma caligrafia soberba. O tratado de Ibn Sina já está a ser copiado. Tê-lo-ás dentro de um mês ou dois!
Demétrios mostrou uma alegria que estava longe de sentir. Esperara tanto por aquele livro... mas, dentro de dois meses, onde estaria? Um daqueles pressentimentos, que por vezes lhe fazia as vezes de segunda visão, dizia-lhe que por essa ocasião o castelo na encosta da colina estaria vazio e que ele estaria longe. Mas onde?... Aliás, pouco lhe importava, porque desde a juventude que a sua vida era uma longa vagabundagem em busca da sabedoria, mas a entrada de Fiora na sua existência permitia-lhe poder aceder, finalmente, a um sonho: ver um dia a seus pés o cadáver do último daqueles duques da Borgonha, daqueles Grandes Duques do Ocidente, que enchiam o mundo com o seu esplendor, o seu poder e o seu orgulho, mas cuja presunção matara o seu jovem irmão Teodósio, tão certo como o carrasco turco que o empalara! O seu irmãozinho! O único ser que jamais amara!
Separavam-nos 15 anos e, depois da morte dos seus pais, tinham ficado sós no grande palácio de Phanar, em Bizâncio, onde Teodósio nascera. Demétrios, esse, vira a luz do dia na ilha de Cós, pátria de Hipocrates, onde o seu pai tinha umas propriedades. A«sua vocação nascera lá.
Quando em 1453 o sultão turco Maomé II cercou as muralhas de Bizâncio, Demétrios tinha 35 anos e Teodósio 20. Um já era um médico sábio, enquanto o outro pertencia à juventude dourada, como convinha ao descendente de uma rica e antiga família, que tinha, um dia, acedido ao trono e o irmão mais velho sorria com indulgência face às loucuras do mais jovem. E depois, fora preciso combater. Ambos o tinham feito, cada um no seu lugar: Teodósio com o elmo prateado dos guardas do imperador Constantino, pelo qual tinha uma verdadeira devoção e Demétrios no hospital que tinha improvisado sob o seu próprio tecto para as dezenas de feridos que ali afluíam todos os dias...
A notícia da investida dos Turcos naquela triste manhã de 23 de Abril, em que os Bizantinos, espantados, se aperceberam que as galeras do inimigo navegavam no Corno de Ouro depois de terem transposto a colina, chegou como uma tempestade ao palácio-hospital. Demétrios foi juntar-se aos últimos combatentes. No dia 29 de Maio, perto da porta de São Romão, viu cair o Basileu, que só conservara como sinais exteriores do império as suas campagia púrpuras, os borzeguins ornamentados com a águia bicéfala. Conseguiu arrastar Teodósio, que queria morrer ali.
À custa de mil dificuldades, os dois Lascaris conseguiram fugir da cidade em chamas, encontraram um barco e chegaram a Veneza, onde a notícia da catástrofe pesava como um sudário. Todo o Ocidente cristão estava indignado, reclamava a guerra santa contra o sultão e com
"Fiora e Lourenço O Magnífico" отзывы
Отзывы читателей о книге "Fiora e Lourenço O Magnífico". Читайте комментарии и мнения людей о произведении.
Понравилась книга? Поделитесь впечатлениями - оставьте Ваш отзыв и расскажите о книге "Fiora e Lourenço O Magnífico" друзьям в соцсетях.