Encontraram cinzas na igreja? perguntou ele.

Não respondeu Colomba o homem devia ter medo de ser descoberto se fizesse fogo dentro da igreja. Levou o coração com ele. Mas a cidade está de pernas para o ar e como ninguém sabe a quem acusar, toda a gente corre em todas as direcções gritando «à morte!» sem saber bem porquê.

No entanto, não há qualquer mistério nessa abominação disse Demétrios. O assassino de ser Francesco temia pela tranquilidade das suas noites...

Mas ninguém sabe quem é? perguntou Léonarde, ao mesmo tempo que Fiora erguia para o grego um olhar cheio de censura.

Pensava que a faca te diria qualquer coisa? Tinhas prometido encontrar o assassino do meu pai.

E encontrei. Ou antes, Esteban é que o encontrou para mim. Se ainda não to disse foi porque queria que tu tivesses aqui alguns dias de repouso, de que tanto precisas...

Eu já repousei o suficiente! Quem é?

Quem queres tu que seja? Marino Betti, claro. Matou o teu pai por ordem da dama Pazzi.

E o médico contou como Esteban tinha, na taberna do rio, adquirido a certeza da culpa do intendente. De imediato, Fiora tomou uma decisão.

Dai-me esse hábito de monge, querida Léonarde ordenou ela

e tu, Demétrios, dá-me uma arma e um cavalo! A nossa propriedade só fica a uma légua daqui e eu não quero que esse miserável, que tanto receia os fantasmas, veja uma nova aurora!

Calma! disse Demétrios apoiando a mão no ombro da jovem.

Para uma coisa dessas é preciso um pouco de preparação. O homem é mais forte do que tu. Também queres morrer esta noite? Montughi fica muito perto da cidade. Se houve assim tanta algazarra, Marino deve ter sido informado. E como tem medo, está de sobreaviso. Talvez até esteja escondido!

Bem, é preciso encontrá-lo. Senão ele, pelo menos a sua cúmplice, que ainda é mais criminosa do que ele. Eu quero lá ir!

E vais. Tu, eu e Esteban, mas só na próxima noite. Léonarde tomou Fiora nos braços, mas não sem alguma dificuldade, porque a jovem estava hirta como uma prancha:

É a sabedoria que fala pela voz dele. Escutai-o, meu anjo e concedei-me esta noite em que nos encontrámos. Tudo foi feito pelo vosso pobre pai por ordem de monsenhor Lourenço. O corpo, novamente benzido e incensado, foi metido de novo na tumba. Uns guardas patrulham em redor da igreja profanada, que o bispo virá purificar amanhã. A cólera é grande entre os da Calimala, da qual é santuário. Estou certa que se monsenhor Lourenço soubesse quem matou o nosso bom patrão...

Ele sabe cortou Demétrios. Eu disse-lhe ontem...

O médico aproximou-se de Fiora, que, nos braços de Léonarde, continuava rígida como uma estátua. Parecia nada ver e nada ouvir, mergulhada no horror do que acabava de ouvir numa espécie de transe. Inclinou-se para ela e, mergulhando o seu olhar no da jovem, segurou-lhe a cabeça com as mãos e começou a massajar-lhe a testa e as fontes com os polegares, ao mesmo tempo que murmurava umas palavras que ninguém compreendeu. Depois, docemente, acrescentou:

Volta a ti, Fiora! Volta para nós! Deixa o teu corpo descontrair-se e acalmar-se! Acalma também essa chama que te queima! Amanhã, levar-te-ei até ao teu inimigo e ele pagará pelos seus crimes... Amanhã, Fiora, amanhã...

Um longo arrepio percorreu o corpo da jovem e a vida regressou ao seu olhar:

Amanhã... murmurou ela.

Em seguida, sem transição, abrigou-se nos braços de Léonarde,! sacudida por soluços e chorando como uma fonte. Deixa-a chorar disse Demétrios as lágrimas vão levar para longe a ameaça que acaba de pairar sobre ela. Qual ameaça? perguntou Léonarde em voz baixa. A loucura! Ela tem sofrido muito... Já era tempo de isto parar., No dia seguinte, caída a noite, três cavaleiros deixaram o castelo calçados com botas ferradas e armados. Demétrios abandonara os seus trajes compridos por uns calções justos e um gibão negro. Quanto a Fiora, descobrira com surpresa, por entre os vestidos que a sua amiga Chiara lhe enviara, um fato de rapaz de um verde-alegre, sobre o qual estava espetado, com um alfinete, um pedaço de papel com as simples palavras: «Podes vir a precisar! Gosto muito de ti...». E ao vesti-lo, nessa noite, agradecera, de todo o seu coração, à previdente, louca e sincera] amiga...Fiora ia à cabeça porque conhecia de cor o caminho que, através das colinas e do vale de Mugnone, que atravessaram perto da Badia, ia, numa distância de quatro léguas aproximadamente, da aldeia de Fiesole à propriedade dirigida por Marino. A noite de Abril estava bela e doce. Todas as estrelas estavam presentes e envolviam os campos com um manto de veludo azul salpicado de uma quantidade enorme de pequenos diamantes. Cheirava a lilás e a pinheiro, a terra ainda húmida de uma breve chuva que caíra ao fim do dia. Por vezes, segundo os caprichos do caminho, a jovem avistava as muralhas de Florença onde ardiam as lanternas das sentinelas, os campanários e as cúpulas, que pareciam difundir luz própria. A cidade aproximava-se à medida que avançavam, mas depois de uma curva do caminho deixaram de a ver. A alguma distância do lugarejo de la Pietra, onde toda a gente dormia, Fiora meteu a sua montada por um caminho que mergulhava por | entre duas moitas de arbustos e seguiu-o durante alguns minutos, até que se desenharam na noite as silhuetas negras das grandes construções da propriedade, precedidas por um imenso pinheiro cuja larga copa espalhava uma mancha cor de tinta no céu. A jovem apontou para elas com a sua chibata:

Chegámos sussurrou ela. Deve estar tudo a dormir. Não se vê luz nenhuma.

De qualquer maneira, deixemos os cavalos aqui disse Esteban que comandava a expedição, já que estava mais habituado aos golpes de mão do que o seu patrão. Este aprovou silenciosamente.

Os três cavaleiros puseram pé em terra, ataram as montadas a uma árvore e avançaram fazendo o menor barulho possível. O caminho arenoso facilitava-lhes, aliás, a tarefa:

Não há cães? perguntou Demétrios.

Há respondeu Fiora mas estão no pátio da propriedade e, aliás, conhecem-me...

Eu, se fosse a ti, não me fiava. Trazes roupa a que eles não estão habituados. Quanto a nós, não nos conhecem de todo... Mas, descansa, tenho o que é preciso.

De qualquer maneira é estranho continuou a jovem um instante mais tarde. Por pouco barulho que façamos, eles deveriam ouvir-nos. Ora, nem sequer ladram... E, olhai! O portão está aberto!

Com efeito, o portão duplo que vedava o acesso à propriedade estava escancarado, deixando ver um grande pátio vazio e ao fundo uma casa baixa, cuja porta estava também aberta e que não dava qualquer sinal de vida.

Mas, dir-se-ia que não está ninguém? sussurrou Fiora. Onde estão os cães e...

Subitamente, Esteban, que ia à cabeça, fez meia volta, regressou para junto de Fiora e colocou-se diante dela, os braços afastados para a impedir de avançar:

Leva-a para os cavalos, patrão! Acabo de ver uma coisa que não é para os olhos de uma jovem dama...

Seja o que for, quero ver protestou esta. Esqueces-te que estamos em casa do assassino do meu pai e que vim aqui para o matar com as minhas mãos.

Não terás esse trabalho: já foi feito! Eu bem me parecia que este odor não era natural, mesmo numa quinta.

Com efeito, desde há uns instantes que uns eflúvios insípidos e enjoativos expulsavam o perfume fresco dos campos. Esteban afastou-se contrariado e depois estendeu o braço para o grande pinheiro que dava sombra à entrada da propriedade. De um dos seus ramos pendia um fruto abominável: o corpo esventrado de Marino Betti. O odor era o do sangue e o da morte.

Ao invés do que Esteban temera, Fiora olhou sem fraquejar o horrível cadáver. O seu carrasco abrira-o do externo ao baixo ventre e de uma anca à outra. As entranhas pendiam. Além disso, tinham-lhe cortado o punho direito... Demétrios tirou da algibeira uma pederneira e uma espécie de pavio, raspou aquela para acender este e ordenou a Esteban:

Leva-a daqui! Já viu o suficiente. Eu quero examinar umas coisas.. Contrariamente ao que os dois homens esperavam, Fiora deixou-se levar sem resistência. Perante aquele acto de justiça bárbara, a jovem experimentara uma manifestação repentina de alegria selvagem, se bem que incompleta: a mão que assassinara o seu pai fora cortada, mas a cabeça ficara. Todavia, sentira uma espécie de alívio bem natural. Nunca tendo morto ninguém até à data, desconfiava de si própria e temera, durante o caminho todo, fraquejar no momento de ferir. Graças a Deus, Marino encontrara o seu castigo sem que ela tivesse de sujar as mãos, mas talvez a Providência não fizesse sempre o seu trabalho! No futuro, não poderia ceder à sua natural sensibilidade feminina.

Então? perguntou ela quando Demétrios se lhe juntou limpando os dedos a um lenço. Que descobriste?

O homem foi torturado disse ele. Queimaram-lhe os pés. E levaram-lhe o coração.

Como não tenho nada a ver com isto, pergunto-me quem o poderá ter feito! disse Esteban. Dir-se-ia trabalho de talhante, ou de cirurgião, de tal modo os cortes são precisos...

Ou de um homem qualquer habituado a manejar armas! cortou Fiora. Para que é preciso procurar tantos pormenores? Fez-se justiça Divina, é tudo!

Tu não és curiosa observou Demétrios. Eu inclinar-me-ia mais para a justiça de Lourenço de Médicis. Uma justiça discreta mas à sua maneira, quando não pode fazer as coisas de outro modo. O seu capitão, Savaglio, não tem hesitações nem piedade quando se trata de um serviço para o seu senhor. E, como muito bem disseste, Fiora, ele maneja as armas com virtuosismo. Sim, pode muito bem ter sido ele... se não fosse o coração arrancado!

Ele não arrancou o do meu pai? É justo, parece-me?

Talvez... mas, neste caso, não havia qualquer razão para o levar e eu não vi vestígios dele. É verdade que Marino deve ter sido morto a noite passada e que os cães devem ter passado por aqui... Ninguém nos poderá informar. Não há vivalma nesta quinta. O terror fez fugir toda a gente...

O médico pensava em voz alta, sem se preocupar com os companheiros:

Sim... é isso, sem dúvida prosseguiu ele. A menos que Savaglio, se foi ele, tenha querido levar ao seu senhor uma prova da execução! Também é possível, claro... no entanto, não acredito.

Porquê? perguntou Fiora sem paciência para aquelas cogitações sem sentido para ela...

Porque hoje é dia 28 de Abril...

E depois?

Depois de amanhã será dia 30.

É evidente. E depois?

É o seguinte: a noite entre o último dia de Abril e o primeiro dia de Maio é uma grande noite para os feiticeiros de todos os países. Na Alemanha, nas montanhas do Harz onde se realiza a grande reunião, chamam-lhe Walpurgisnacht, a noite de Walpurgis. Depois de amanhã, os feiticeiros de Norcia encontrar-se-ão todos... assim como os de Fontelucente!

Continuo a não ver a relação entre isso e o que acabamos de ver! Sem responder, Demétrios dirigiu-se ao seu cavalo, fê-lo virar-se

e içou-se para a sela. Depois, esperou que os outros fizessem o mesmo.

Sempre fui curioso por natureza disse ele tranquilamente. E qualquer coisa me diz que será interessante saber o que vai acontecer nessa noite...

A madrugada não vinha longe quando regressaram ao castelo. Léonarde, que partilhava a cama com Colomba e não pudera conciliar o sono, esperava debruçada da janela. Mas apenas os seus olhos interrogaram a jovem quando esta entrou no quarto tirando o capuz à moda francesa que lhe escondia os cabelos e atirando-o para cima de uma arca. Desde que a sua «pequenina» a deixara, anunciando a sua intenção de matar Marino Betti, a pobre mulher deixara de viver... Fiora teve para ela um meio sorriso:

Quando lá chegámos ele já estava morto disse ela. Eu não fui perdida nem achada...

Deus seja louvado! Eu não suportava a ideia de que vós, meu anjo, pudésseis...

Léonarde! Léonarde! Peço-vos... tendes de compreender que já nada é como era e nunca mais será. Agora já sabeis o que aconteceu depois de nos afastarmos uma da outra. Eu já não sou a Fiora inocente que vós embalastes e vistes crescer. Agora sou outra... outra que, a bem dizer, ainda não conheço muito bem e que talvez um dia destes vos cause um desgosto.

Nunca! Nunca, façais o que fizerdes! Vós sois a pequenina do meu coração e nada nem ninguém... nem sequer vós mesma, poderá mudar seja o que for. Pensai apenas que a vingança, se bem que tenha sempre alguma coisa de exaltante, deixa sempre um gosto amargo e Deus..

Não me faleis de Deus! Não me faleis d’Ele nunca mais! exclamou Fiora. Não cessa de deixar cair em cima de mim cada vez mais golpes e sem eu ter cometido qualquer mal. Trata-me como uma inimiga, uma rejeitada! Que crimes são estes, que abominações são estas, que não cessam de me cair em cima? A vontade de Deus? Pensava que Ele era bom e misericordioso...