Subitamente passou-se uma coisa tão odiosa que Fiora, sob a mão de Demétrios, mordeu os lábios até sangrarem. Das primeiras filas da assistência acabava de sair uma mulher com um êxtase imbecil no olhar. Nas mãos estendidas transportava um recém-nascido, que estendeu ao oficiante. Este pegou nele, pousou-o sobre o corpo de Hieronyma e, com um golpe rápido de faca, abriu-lhe a garganta. Ouviu-se apenas um pequeno grito, mas uma espécie de arrepio percorreu toda aquela gente. Fiora pensou que era de horror, mas só viu em todos aqueles rostos uma alegria estúpida, uma crueldade bestial, um prazer perturbador. O sangue trazia àquela monstruosidade o elemento que lhe faltava.

O padre recolheu-o no cálice. Molhou nele os lábios, marcou os seios de Hieronyma e passou-o a uma das suas acólitas, para que ela o fizesse circular pela primeira fila da assistência. Ao mesmo tempo, a outra rapariga trouxe um jarro cheio de um vinho no qual tinham misturado uma decocção que lhe duplicava a acção. Todos beberam e comeram uns bolos que foram distribuídos. Em seguida puseram-se a dançar ao som da flauta tocada pelo grande negro. Dançavam costas com costas, de mãos unidas e as cabeças viradas, de modo a juntarem as faces.

O ofício sacrílego estava a acabar. O oficiante, desembaraçando-se da sua casula sob a qual estava nu, deitou-se em cima de Hieronyma. Foi o sinal para uma inverosímil cena de deboche à luz vermelha dos braseiros que enfraqueciam. Os casais rolavam um pouco por toda a parte, ao acaso, sem distinção de idades ou de estatuto social, velhos com jovens, a grande dama com um criado de quinta. Fiora, que se sentia enlouquecer, fechou os olhos. Então, Demétrios largou-a:

Sobretudo, não te mexas! sussurrou ele. Deixo-te com Esteban. Eu já venho ter convosco...

Onde vais?

Como resposta ele pousou-lhe um dedo na boca e desapareceu na sombra sem sequer fazer mexer um ramo. Já não se ouvia, nem o canto, nem a flauta; apenas suspiros, gemidos e sons de tecido rasgado. Fiora nem sequer ousou virar os olhos para Esteban, do qual ouvia, perto de si, a respiração entrecortada. E, subitamente, ouviu-se um grande grito:

A milícia! Salve-se quem puder!

Foi o pânico. Cada um, esquecendo o seu companheiro, ou companheira de momento, só pensou em fugir. O padre maldito arrancou-se de Hieronyma e desapareceu na noite, ao mesmo tempo que o seu acólito e as duas raparigas levavam o diabo de madeira pintada. Fiora viu Hieronyma, que tirara a máscara que a sufocava, tentar levantar-se, mas uma silhueta alta e negra apareceu na sua frente com um braço estendido e três dedos apontados para os seus olhos transtornados...

Ela tentou, em vão, lutar contra o poder invisível daquele homem e voltou a cair sobre o altar, inanimada...

Demétrios inclinou-se, agarrou no pequeno corpo do bebé sacrificado que tinha sido atirado por terra, pousou-o sobre o da mulher já suja do seu sangue e afastou-se a correr. A luminosidade de numerosos archotes e o eco de passos ferrados fazia-se ouvir...

Um instante mais tarde, Demétrios juntava-se a Fiora e Esteban:

Vinde! ordenou ele. Depressa! Ainda temos tempo de fugir...

É mesmo a milícia que está a chegar? perguntou Fiora.

É. Mesmo à hora que eu indiquei. O senhor Lourenço seguiu bem as minhas explicações.

Quem deu o alerta?

Eu, claro. Não queria que todos estes infelizes, que procuram uma compensação para a sua miséria, fossem atirados para a prisão, para a tortura e para o fogo... A dama Hieronyma acabará a noite numa masmorra, enquanto espera que a entreguem ao carrasco...

Mas, como sabias que ela estaria aqui esta noite?

Eu disse-te que sabia sempre aquilo que preciso de saber... E agora apressemo-nos um pouco. Não convém nada que venham atrás de nós...

Uma hora mais tarde estavam de regresso ao castelo onde Léonarde, que mandara Samia deitar-se, os esperava. Ignorando ao certo o que era aquela expedição em que se tinham lançado, acolheu-os sem uma palavra, mas serviu-lhes logo vinho quente com canela, que cozia lentamente nas cinzas da chaminé. A governanta olhou para Fiora, cujo rosto pálido e expressão tensa lhe diziam que não tinha vivido momentos muito agradáveis, mas a jovem, agarrando com os dedos gelados a taça cheia do líquido fumegante, sorriu-lhe com tanta ternura que ela, vexada por não ter sido posta ao corrente, não aguentou mais:

Pareceis muito cansada, meu cordeirinho, mas há muito tempo que não vos via um sorriso assim. Sentis-vos feliz, esta noite?

Sinto... e pela primeira vez desde há muito tempo! A morte do meu pai foi vingada, minha querida Léonarde, assim como tudo o que sofri por culpa de Hieronyma. Amanhã conto-vos tudo. Por agora, morro de sono...

Sendo assim ser-vos-á feita justiça e podereis, então, regressar a casa?

Não sei... Talvez, porque agora os meus inimigos já não existem...

Continuam a existir disse Demétrios severamente, que aquecia as longas mãos pálidas nas chamas reanimadas. Mas é isso o que tu queres: voltar para casa, reencontrar a tua fortuna e não pensar em mais nada? Já te esqueceste que... Que concluímos um pacto? Esqueci-o tanto que agora quero reencontrar o homem que me abandonou no dia seguinte ao do nosso casamento e vingar-me daqueles que levaram os meus pais ao cadafalso. Mas confesso que gostaria, por algum tempo, de reencontrar a paz da minha casa, rever a minha amiga Chiara, poder, como antigamente, passear pelas ruas de Florença sem ouvir gritos de morte ou levar com pedras, ir pôr flores na tumba daquele que será sempre o meu pai, deixar acalmar este furor que vive em mim há«tantos dias, ser uma florentina como as outras e adquirir a certeza de que no regresso das viagens que vou empreender me sentirei em minha casa... Isso é pedir muito?

Demétrios desviou os olhos daquele olhar que implorava uma resposta e saiu da cozinha. Ouviram os seus passos na escadaria da torre, para o topo da qual ele gostava de se retirar para observar as estrelas e prestar atenção à sua linguagem. Mas naquele fim de noite, porque a alvorada iria em breve aparecer, o médico desviou o olhar do céu para olhar para a cidade adormecida. Sabia que Florença já não queria saber de Fiora Beltrami, mas não tinha coragem de lho dizer...

CAPÍTULO XI

«ANTES DE EU ALCANÇAR A MARGEM DESEJADA...»

O rumor, partido do rio onde os marinheiros se afadigavam, correu pelas ruas e praças, atingiu primeiro a milícia que tinham chamado de imediato, o Bargello e a Senhoria e depois o resto da cidade, como se fosse um tição lançado para uma meda de palha: um pescador tirara do Arno o corpo de Pietro Pazzi, apunhalado entre as duas espáduas...

Esteban, que tinha ido às compras ao Mercato Vecchio como sempre fazia três vezes por semana, ouviu-o enquanto comprava queijo, voltou a ouvi-lo na vendedeira de criação e ficou com as orelhas cheias quando chegou ao balcão do talhante, mas com variantes, porque a festa do «diz-se» estava lançada. Cada um pretendia saber mais do que o seu vizinho e as versões mais fantásticas começavam a circular...

Esteban não gostava de tagarelice. Em Castela tinha causado a morte da sua mãe, acusada por um vizinho de lhe ter envenenado a água do poço e de ter feito um feitiço ao seu filho. Apesar de ser uma boa cristã, a anciã fora parar à fogueira e o seu filho, desesperado, dera tudo o que tinha em dinheiro ao carrasco para que ele a estrangulasse antes de as chamas a atingirem. Em seguida matara o vizinho, o filho e lançara fogo à sua quinta. Demétrios Lascaris, que acabava de chegar ao país, levara-o consigo pouco antes de o prenderem, salvando-lhe assim a vida e ganhando para sempre a sua dedicação e reconhecimento...

Não, Esteban não gostava de bisbilhotices. Odiava-as quase tanto como os padres, que a meias com o alcaide da sua terra tinham condenado a sua mãe, porque o acusador era rico e ela pobre... A sua vida ao serviço do médico grego, filósofo, astrólogo e mágico convinha-lhe às mil maravilhas, porque, para além de pequenas tarefas domésticas quotidianas, tinha uma certa liberdade: nunca Demétrios lhe reprovara o seu gosto pelo vinho e pelas mulheres e ele amava ambas as coisas quase tanto como o combate, as armas e a guerra, que eram a sua vida desde os 12 anos de idade...

Decidido a obter informações tão claras quanto possível, o castelhano confiou a sua mula já carregada ao albergue da Croce di Malta onde o conheciam e dirigiu-se ao palácio da Senhoria e seu complemento, a loggia del Priori, onde era quase sempre certo encontrar três ou quatro notáveis a conversar. Aquilo permitiu-lhe ver chegar o velho Jacopo Pazzi, que ocupava então a sua casa florentina e que entrou de rompante, carregando como um touro furioso, no velho palácio. Saiu de lá um momento mais tarde escoltado pelo Bargello e por um esquadrão de guardas. Um arrepio percorreu, então a praça: o patriarca fora preso? Mas durou apenas um instante. A tropa dirigiu-se para a Ponte Vecchio. Esteban seguiu a pequena multidão que se formara instantaneamente, o que lhe permitiu assistir à prisão do Mulherão e do seu irmão. Pippa resistiu de tal modo que foram necessários cinco homens para a segurar. Levaram-na finalmente para a Stinche, a prisão da cidade, vociferando e berrando imprecações e injúrias, às quais os assistentes se apressaram a responder, porque, apesar de ignorarem o que se passava, os Florentinos não perdiam uma ocasião para se fazerem ouvir e manifestar. Quando alguém era levado para a prisão, ouvia-se sempre gritar «À morte!» ao acaso, com boas hipóteses de errar apenas uma em duas vezes.

Bastante mais frio, Esteban achou que já tinha visto o suficiente e que já era tempo de ir prevenir o seu patrão do que se passava, tanto mais que o cortejo de Pippa, ao voltar a transpor a ponte, tinha mais uma unidade: frei Inácio, que se juntara ao velho Pazzi, regulando o seu passo pelo do velho e falando-lhe com loquacidade. Ora, o castelhano detestara instintivamente o seu compatriota, que achava falso, cruel e pérfido, e não se enganava muito. A aproximação entre aqueles dois homens pareceu-lhe extremamente inquietante...

Servindo-se dos cotovelos para afastar a multidão, o castelhano foi buscar a sua mula, ao carregamento da qual acrescentou uma pequena bilha de azeite, foi beber a sua taça de vinho habitual para não despertar a curiosidade e deixou a cidade rapidamente, não sem reparar no ajuntamento que já se formava defronte do palácio dos Médicis fazendo um barulho terrível, porque toda a gente falava ao mesmo tempo e com grandes gestos.

Ao regressar a Fiesole encontrou Demétrios no seu gabinete, ocupado a embalar cuidadosamente alguns livros em pedaços de tecido e a guardá-los numa pequena arca pousada em cima de um escabelo. A um canto da mesa, sobre uma pele de gamo, estavam alinhados, brilhantes de uma limpeza recente e numa ordem perfeita, os instrumentos de cirurgia: lancetas, escalpelos, trépanos, agulhas direitas ou curvas, pinças e outros, que tinham seguido o médico desde Bizâncio e que ele tinha conseguido conservar apesar das vicissitudes das suas longas peregrinações. O velho saco de couro, que os continha habitualmente, estava pousado ao lado e aberto.

Esteban abraçou com um olhar rápido aqueles preparativos:

Mestre disse ele vais partir?

É preciso estar sempre pronto para partir, meu rapaz. Mas, tu, diz-me porque regressaste mais depressa do que habitualmente? Vejo pela tua cara que tens qualquer coisa para me dizer.

É verdade e também é verdade que estou preocupado.

O castelhano não era homem de grandes narrativas. Em meia dúzia de frases contou o que tinha visto, espreitando no rosto do grego o efeito das suas palavras. Mas Demétrios, que acabara de encher a arca, contentou-se em fechá-la e dizer:

Ah!

Em seguida, aproximando-se dos seus instrumentos, enxugou-os cuidadosamente um a seguir ao outro e depois enrolou-os na pele de gamo, que introduziu no saco. Esteban observou-o em silêncio, percebendo que o médico reflectia. Ao cabo de um momento, Demétrios ergueu para ele os olhos:

Vai chamar donna Fiora! Ela está no jardim a dar de comer aos pombos...

Fiora entrou um momento mais tarde, uma silhueta delgada de negro e branco, asseada e convencional. A evadida do convento num hábito branco e sandálias de corda, a jovem grega de túnica púrpura e o pajem de gibão verde tinham desaparecido para dar lugar àquela jovem de luto, de cabelos sensatamente entrançados e Demétrios surpreendeu-se a si próprio ao lamentá-lo, mas os grandes olhos cinzentos continuavam os mesmos e o grego sabia que eles podiam reflectir todas as tempestades do céu e que aquela aparência elegante e serena escondia as chamas de um coração ardente e de um carácter orgulhoso e corajoso. Como se viesse em visita, Léonarde acompanhara-a e mantinha-se perto da porta com as mãos cruzadas no regaço, como convinha à acompanhante de uma dama nobre. Demétrios teve a tentação de lhe pedir para os deixar a sós, mas pensou que, agindo assim, aproximava-se das convenções sociais que tanto o irritavam. Por outro lado, Léonarde já tinha embarcado no mesmo barco batido pelos ventos e incessantemente ameaçado da sua aluna. Era inútil esconder-lhe fosse o que fosse, tanto mais que seria posta ao corrente logo depois, i O castelhano entrara atrás dela... Esteban acaba de regressar com notícias que eu acho inquietantes disse Demétrios. Deves ouvi-las. Ela ouviu-as e não pareceu ficar muito perturbada. Apenas a menção ao monge espanhol a fez franzir as sobrancelhas.