Ainda esse homem! suspirou ela. Como é possível ele ligar-se assim à causa dos Pazzi? Parece querer defendê-los contra tudo e contra todos... Se ele é na verdade o enviado secreto do Papa Sisto IV, fica tudo explicado, porque também é, certamente, o mandatário do seu favorito, Francesco Pazzi... Pensava que tinhas compreendido isso?

Sem dúvida! Mas ele é um desses padres fanáticos obcecados | pelo diabo e que vêem feiticeiros em toda a parte. Ora, a milícia, na | outra noite, deve ter encontrado Hieronyma no estado em que nós a deixámos: nua, estendida em cima de um altar satânico, marcada com o sangue do sacrifício e com o corpo do bebé degolado em cima do peito. Parece-me que isso deveria interessar frei Inácio em primeiro lugar? No entanto, Esteban viu-o a falar com Jacopo Pazzi como se fossem amigos!,|

Como se fossem amigos! aprovou Esteban como se fosse o eco. Tens razão, é estranho! disse Demétrios, que se virou para o seu criado: De facto, tu não desempenhaste completamente a tua ’ missão. Ouviste falar na dama Hieronyma, que a milícia deve ter atirado para a prisão?

O castelhano abanou a cabeça de cabelos hirsutos:

Não. Não ouvi dizer nada. Tinha acabado de chegar ao mercado quando soube que o corpo do seu filho acabava de ser retirado da água. Só se falava disso...

Estranho! A cidade devia estar em sobressalto. Quanto ao monge, era o suficiente para pedir a cabeça da família toda... e fala amigávelmente com o patriarca? É difícil de compreender!... Mas é preciso saber! Sela a mula, Esteban!

Onde vais? perguntou Fiora.

Ver o senhor Lourenço. Foi com ele que combinei a intervenção da milícia no monte Ceceri. Ele deve saber o que se passou a seguir!

Não vás! Qualquer coisa me diz que corres perigo pediu a jovem, angustiada. Estás a ver, sou eu que, hoje, estou com um pressentimento. Eles prenderam Pippa. Sabe Deus o que essa mulher vai dizer!

Ela não pode dizer nada. Só viu um mendigo...

Dotado de poderes pouco comuns. Tens a certeza que não subsiste qualquer recordação depois de se acordar do sono que tu provocas? O Mulherão é hábil, astuto; para salvar a vida, dirá seja o que for e acusará seja quem for...

Ou dirá que não sabe nada. Que o jovem Pazzi saiu de casa dela tal como entrou...

Talvez, mas uma coisa é certa: o velho Jacopo sabia tudo e por que razão o seu neto foi a casa de Pippa naquela noite. Fica aqui, peço-te! Esperemos um pouco! Lourenço, certamente, dar-te-á notícias...

A jovem tremia e a sua emoção atingiu Demétrios. Aliás, Esteban veio em seu socorro:

Ela tem razão, patrão. Não há pressa. Deixemos passar o dia e a noite. Amanhã, se quiseres, irei saber notícias assim que as portas se abrirem. Poderás dar-me uma carta para eu entregar ao senhor Lourenço... Não te reconheço, tu que nunca te deixas apanhar pela impaciência.

O médico encolheu os ombros e passou pelo rosto uma mão um pouco febril. Foi até ao saco de couro que fechara há pouco e apoiou-se nele como se procurasse nele a energia que lhe faltava. Em seguida, virando-se, olhou para Léonarde, que continuava junto da porta tão muda e imóvel como uma estátua:

E vós, dame Léonarde disse ele em francês qual é o vosso conselho?

Não sabia que a minha opinião tinha alguma importância aos vossos olhos, mas suponho que esperais um acontecimento qualquer desde esta manhã... um acontecimento que vos pode obrigar a partir. Se não, por que essa arca, esse saco, essas arrumações que ainda não cessastes de fazer?

Eu devia saber que nenhum pormenor deste género escapa ao olhar de uma boa governanta disse ele com um sorriso. É verdade: desde a noite passada que espero uma coisa qualquer sem saber dizer o quê. Sinto que se aproxima a hora de deixar esta casa. Nesse caso, que seja de livre vontade! Segui o conselho de Esteban! Umas horas a mais ou a menos não mudarão nada... Demétrios acenou com a cabeça e sem acrescentar mais nada, abandonou a sala. Fiora seguiu-o. Um atrás do outro e sem trocarem uma palavra, subiram ao alto da torre. A jovem procurava compreender por que razão, ainda há pouco, se opusera tão frontalmente à partida do grego, mas uma coisa era certa: naquele instante soubera, tão claramente como se uma voz secreta lho tivesse gritado, que, se Demétrios fosse a Florença, não voltaria a sair de lá vivo. E a ideia de perder aquele último amigo que, para a ajudar chegara ao ponto de matar, tornara-se-lhe insuportável. Aquele homem estranho e curioso, do qual ela tivera medo em tempos, tinha um lugar no seu coração, agora. Não era a profunda ternura sentida por seu pai nem o amor ardente que Philippe lhe inspirara e que ela suspeitava estar ainda vivo sob as cinzas, nem a afeição que votava à sua velha Léonarde e da qual Khatoun levara um pouco, nem a alegre amizade que a ligava a Chiara Albizzi, era antes um sentimento feito de reconhecimento, amizade e também de respeito um pouco receoso, parecido com aquele que votava antigamente aos mestres que lhe tinham aberto o espírito para a cultura ’ e para a beleza. Era, em resumo, uma coisa sólida e forte. Aliás, não estavam ambos ligados por aquele pacto que tinham concluído e pelo qual os seus sangues se tinham misturado?... Quando chegaram ao alto da torre, Fiora chegou-se a Demétrios, que se aproximara com um gesto familiar da velha seteira e pousou a sua mão na dele. |

Nós dois já não temos família disse ela docemente. (

Tu tens um marido... Não. Isso foi um sonho que eu tive e que se transformou numa coisa ridícula. Se o quero encontrar é para o fazer pagar o meu sofrimento e o seu desprezo. Ele levou-me tudo sem nada me dar, senão um nome que eu nunca usarei. Ao passo que tu salvaste-me e até, com | risco da tua própria segurança, assumiste a minha vingança. E como misturámos os nossos sangues, gostaria que visses em mim... uma filha. Uma filha! Eu podia ser teu avô, Fiora. Além disso, não sabemos | o que o futuro nos reserva...

Nem tu?

Nem eu! O véu do destino nem sempre se ergue e o curso das estrelas omite muitos pormenores. Talvez seja melhor não nos deixarmos apanhar na armadilha da afeição! Podemos vir a sofrer. Unimo-nos, os dois, para sermos companheiros de combate: tentemos ficar por aí, mas velarei por ti... como um avô. E não esquecerei nunca o que acabas de me oferecer: o meu primeiro instante de alegria depois da morte de Teodósio...

Por sua vez, o médico pegou na mão de Fiora, pousou nela um beijo ligeiro e depois tomou-lhe o braço:

É hora de comermos. Desçamos para evitar que Esteban suba cá acima para nos vir chamar.

Ao fim do dia voltaram ambos a subir à torre. Da cidade vinha um rumor juntamente com nuvens de poeira. Passava-se lá qualquer coisa que desencadeava a agitação popular, sempre à flor da pele entre os Florentinos. Não era um tumulto, porque a Vacca, o grande sino da Senhoria, que servia apenas para tocar a rebate, continuava mudo. Subitamente, fizeram-se ouvir toques de trombeta e Demétrios inclinou-se, pondo’ a mão em pala diante dos olhos:

Repara! O Sol ainda não se pôs e já estão a fechar as portas... Era verdade. Mesmo àquela distância podia ouvir-se o barulho das grades que caíam e o ranger da ponte levadiça que subia. O olhar agudo de Demétrios, ajudado pelo ar puro das colinas, conseguira aperceber aqueles movimentos. A cidade fechava-se mais cedo do que habitualmente. Parecia, até, que havia mais soldados nas muralhas...

Estará um inimigo em marcha contra nós? perguntou Fiora.

Se assim fosse, a Vacca teria tocado para chamar às armas. Não, é no interior que se passa qualquer coisa e querem evitar que a agitação se espalhe ao campo... Mas, repara! Há qualquer coisa que arde lá em baixo...

Com efeito, num ponto da cidade, perto do rio, uma espessa fumarada negra, atravessada por chamas vermelhas, subia...

Meu Deus! gemeu Fiora. É uma loucura acender uma fogueira numa cidade onde há tantas casas de madeira! E, dir-se-ia que é perto de nossa casa...

Demétrios não respondeu. Os dois ficaram ali um momento, vendo aquele fumo subir a sul e o Sol a mergulhar no mar. Os campos tornaram-se violetas e a calma da tarde permitiu distinguir melhor o alarido que reinava no interior da cidade fechada... Fascinados, o grego e a jovem não conseguiam desviar os olhares daquela espécie de caldeirão fervilhante, onde até os telhados, sob a poeira e à luz incerta, pareciam mover-se, como vagas. A voz ofegante de Esteban, que eles não tinham ouvido chegar, estalou de súbito:

Patrão! O senhor Lourenço acaba de chegar! Quer ver-te, a ti e a donna Fiora! Depressa!

Desceram os três à pressa, mal acreditando no que estava a acontecer. Mas Lourenço tinha mesmo chegado. Metido no traje verde de que tanto gostava, estava de pé perto da janela do gabinete de Demétrios na companhia do seu amigo Poliziano, que brincava com as suas luvas, encostado a um dos armários. A preocupação marcava-lhe o rosto magro, mas pareceu a Fiora maior do que da última vez que o vira, sob as abóbadas da Senhoria. Ao ouvi-los entrar, o Magnífico saiu da janela e virou-se para eles:

Tu aqui, Senhor? perguntou Demétrios inclinando-se, ao mesmo tempo que a sua companheira dobrava ligeiramente um joelho numa saudação rígida. Que grande honra.

Era necessário que viesse, porque o tempo urge. Há pouco saí da cidade pela Badia, onde decorre uma reunião da nossa Academia platónica, mas tendo dado ordem para que fechassem as portas logo a seguir. Elas só se voltarão a abrir à hora habitual, amanhã. É preciso que esta noite vos afasteis o mais possível daqueles que querem a vossa morte!

Podeis dizer-nos o que se passa, senhor? perguntou Fiora com a voz gelada. Sabemos que o corpo de Pietro Pazzi foi pescado do Arno e que Pippa foi presa, mas não vejo por que razão nos querem matar, a nós!

Porque essa mulher falou. Ela acusa-te de teres apunhalado o corcunda com a ajuda de um feiticeiro vestido de mendigo...

Eu? E como é que entrei em casa dela?

Ela diz que te conhece há muito tempo, que tu... ias a casa dela para te encontrares com homens e que, naturalmente, foi a casa dela que foste buscar refúgio quando fugiste do convento... Pietro era... um dos que ias encontrar lá, porque ele estava apaixonado por ti...

E que mais? exclamou a jovem. Nesta cidade, na tua cidade, pode-se dizer seja o que for? E acreditaram nela, claro?

Acredita-se sempre no que diz a populaça.

A sério? Nesse caso, diz-me como é que a populaça recebeu a notícia da prisão de Hieronyma? Como é possível que o seu sogro tenha pintado a manta na Senhoria?

O povo não soube nada dessa prisão.

Lourenço desviou os olhos daquele rosto jovem resplandecente de cólera e a sua voz rouca pareceu ensurdecer ainda mais quando disse:

Hieronyma fugiu da Stinche antes de a notícia se saber. Está em fuga e ninguém sabe por onde anda...

O quê? gritaram ao mesmo tempo Fiora e Demétrios, mas foi o grego que retomou a palavra:

Como foi isso possível?

Na milícia havia dois sujeitos dos Pazzi, que preveniram imediatamente o velho Jacopo. Ele foi com a sua gente e com o monge espanhol buscar a nora, que estava inconsciente, aliás. O que lhes permitiu dizer que ela fora vítima de uma terrível maquinação e de um sortilégio... A repescagem do corpo de Pietro e as declarações do Mulherão só serviram para deitar mais achas para a fogueira. Aquele frei Inácio pregou durante todo o dia, nas praças e nos mercados, para que te apanhem, Fiora, e a ti, Demétrios...

E tu? lançou Fiora que fazias tu enquanto tudo isso acontecia? Tu, o senhor de Florença, o todo-poderoso, o Magnífico? Que fazias tu enquanto assassinavam o teu amigo, o meu pai, que fazias tu enquanto me punham em Santa Lúcia, enquanto me arrancavam do conVento para me atirarem para o Mulherão, para ser entregue a um qualquer e, sobretudo, a esse miserável Pietro, que até já tinha começado a estrangular-me? Eu estaria morta sem Demétrios, porque tu não fizeste nada. Tu deixaste que me despojassem de tudo, deixaste...

Que pusessem fogo ao palácio Beltrami disse docemente o grego. É o palácio Beltrami que está a arder, não é?

Fiora virou-se e olhou para ele com horror:

É... a minha casa?

É, Fiora disse Lourenço é a tua casa. Quando compreenderás tu que nós vivemos numa república e que eu não tenho poder, apesar de fazer esta mesma república rica, feliz e poderosa?

Estou a ver. Preferes deixar um monge estrangeiro manipular a população enquanto discutes com os reis e os grandes deste mundo! Mas, sabias que esse homem, esse enviado oculto de um Papa que te odeia, ainda é mais teu inimigo do que meu? Eu sou um peão no xadrez dele, um pretexto, apenas.