Que sabes tu? Sei mais do que tu... E rapidamente, a jovem contou o que se passara na sala capitular de Santa Lúcia. Deixa o monge acabar a sua obra! acrescentou ela com desprezo e em breve o sobrinho de Sisto IV será o senhor de Florença, um senhor que, esse, saberá impor a sua vontade! À medida que ela falava, o rosto simiesco se bem que sedutor de ’ | Lourenço ia ficando esverdeado, como se o seu traje de veludo tivesse, subitamente, desbotado para a sua pele.

O monge dorme em San Marco. Esta noite mesmo será preso e conduzido sob escolta à fronteira de Florença. Agradeço-te por me teres dado a prova do que eu já suspeitava. Demétrios pode confirmá-lo...

Sem dúvida! disse este com ironia mas nós continuamos sujeitos à vingança pública... ao passo que a dama Pazzi corre pela estrada fora.

Prometo-te que a mandarei procurar, mas é verdade que não posso fazer nada por vós, senão dizer-vos que partais e que arranjeis um lugar seguro...

Eu hei-de procurá-la sozinha lançou Fiora furiosamente. Não te preocupes comigo, já que nem sequer foste capaz de vingar o meu pai, assassinado e vilipendiado...

Marino Betti está morto. E fui eu que mandei Savaglio matá-lo.

De noite e em casa dele, não em pleno dia e na praça pública! O que faz com que, aos olhos de todos, o meu pai continue a ser um miserável, um mentiroso e por que não um traidor?

Por que não, com efeito? perguntou Lourenço, cuja cólera subia. Tenho todas as razões para suspeitar que ele traiu a república, favorecendo com o seu ouro as armas do duque da Borgonha. Os Fugger reclamaram o reembolso de uma letra de cem mil florins, pagáveis ao tesouro da Borgonha através da conta de messer Philippe de Selongey. Que tens a dizer a isto?

Nada... a não ser uma pergunta: a soma foi paga?

Ao banco Fugger? Certamente que não. O teu pai morreu e os seus bens estão sob o controlo...

Sob o teu controlo! E sem qualquer direito!

Era a única maneira de evitar que caíssem nas mãos dos Pazzi, porque a tua adopção está cheia de equívocos! Quanto aos Fugger, tanto pior! Eles que se arranjem com o duque da Borgonha...

E assim disse Fiora lentamente o meu pai passa, não só por miserável e mentiroso, mas também por desonesto, ele, cuja palavra nunca foi posta em dúvida? Esse dinheiro era o meu dote!

O teu dote?

- Sim. Na noite que precedeu a sua partida, aqui mesmo, na capela do convento vizinho, casei com o enviado da Borgonha. Ele sabia a verdade acerca do meu nascimento e exigiu o casamento, porque tu te tinhas recusado a ajudar o senhor dele. Eu sou a condessa de Selongey.

Provas! Tu tens provas disso? exclamou Lourenço, cujo rosto, depois de empalidecer, estava a ficar púrpura. Fiora ia responder que não sabia onde estavam as provas quando uma outra voz se fez ouvir:

Ei-las aqui, senhor! disse tranquilamente Léonarde, que avançou com um rolo na mão, de onde pendia uma fita verde. Encontrarás aí a certidão de adopção de donna Fiora, o seu contrato de casamento assinado e selado pelo seu marido, a cópia da carta de câmbio e até um atestado com a assinatura e o selo do padre António, o prior do convento. Ser Francesco Beltrami, na véspera da sua morte e porque se sabia vigiado por inimigos, entregou-me tudo isso...

O Magnífico pegou no rolo e estendeu-o a Poliziano, que perdeu de imediato a sua imobilidade de estátua e, com passo pesado, foi sentar-se na cadeira alta de braços de Demétrios.

Lê! disse ele apenas.

O poeta desfez o laço da fita, percorreu os documentos com um olhar habituado e voltou a enrolá-los de novo:

Está tudo em ordem, senhor!

Existe outra prova disse Léonarde. E, tirando do corpete o anel de ouro com as armas dos Selongey, mostrou-o a Lourenço e depois, com um tudo nada de solenidade, meteu-o no dedo de Fiora, que fechou a mão sobre ele sem poder evitar um arrepio.

Portanto murmurou Lourenço tu és a mulher de um dos homens mais importantes da Borgonha? O Magnífico deu uma pequena risada sem alegria e acrescentou: Nesse caso, por que razão o teu marido não veio, quando ainda era tempo, reclamar-te diante dos que te acusavam? Por que não exigiu ele uma reparação pelas armas da ofensa involuntária feita ao seu nome?

Porque a esta hora disse Fiora com amargura eu sou, certamente, uma viúva. Messire de Selongey estava decidido a morrer para se punir por ter, ao casar comigo, desonrado o seu nome... Ele vendeu-se para ajudar o Temerário!

Lourenço levantou-se, deu alguns passos para reencontrar um pouco de calma e depois, parando diante de Fiora, cujas lágrimas caíam em silêncio pelo rosto imóvel:

Pobre criança! disse ele com infinita doçura. Conseguirás tu, um dia, voltar a acreditar na lealdade e no amor de um homem?

Incapaz de articular uma palavra e sentindo-se de súbito infinitamente cansada, ela abanou a cabeça, negativamente.

Em todo o caso continuou Lourenço se o teu marido morreu, foi há muito pouco tempo. No dia em que o teu palácio foi pilhado ele estava lá!

De repente, o sangue subiu às faces de Fiora:

É impossível! disse ela com voz fraca...

Não disse Poliziano é verdade. Eu vi-o e a princípio hesitei em reconhecê-lo, porque estava vestido como um homem qualquer de baixa condição. Estava na multidão; olhava. E vi que falava a alguém. Sem dúvida perguntava o que queria aquilo dizer. Como não sabia o que o atraía ali, hesitei por um momento em abordá-lo. Quando me decidi, a multidão impediu-me de me aproximar e ele desapareceu sem que lhe pudesse seguir o rasto...

Eu pensei que ele tinha vindo espiar continuou Lourenço. Mandei vasculhar os albergues e as tabernas, mas ninguém o tinha visto, ninguém pôde dizer o que lhe tinha acontecido...

Fiora, de olhos brilhantes, escutava aquelas palavras como se estivesse a ouvir os anjos a cantar:

Ele voltou! suspirou ela. Ele voltou, quando tinha jurado não me voltar a ver...

Perdoa-me o que te vou dizer, Fiora disse Lourenço mas tens a certeza que ele andava à tua procura?

E de quem havia de ser?

Do teu pai!... A cidade de Neuss continua a resistir ao borgonhês e antes de ontem, primeiro de Maio, a trégua assinada há três anos entre a França e a Borgonha, e prorrogada por duas vezes, chegou ao fim... definitivamente!

Ousas insinuar que ele vinha em busca de mais dinheiro?

Que outra coisa havia de ser? Ele deve ter sabido o que te aconteceu, se perguntou às pessoas que estavam na rua... e, no entanto, voltou a partir, sem sequer te procurar...

Ao ver Fiora oscilar nas pernas como uma grande flor sacudida pelo vento, Demétrios interveio e, oferecendo à jovem o apoio do seu braço:

Não podemos, ao menos, conceder-lhe o benefício da dúvida? reprovou ele. É mesmo necessário que ela parta desesperada? Recordo-te respeitosamente que, ao chegar aqui, tu insististe que era urgente que nós fugíssemos desta cidade. É grave, parece-me e já que nos expulsam...

Eu não vos expulso disse Lourenço, aborrecido tento, antes, salvar-vos, porque, apesar de não acreditardes, sois-me muito queridos, um e outro. E a prova está aqui!

O Magnífico tirou do traje uma carta selada com as suas armas, que estendeu a Demétrios:

Esta carta é para o rei Luís de França, a quem te envio. Ele acolherá o hábil médico que tu és, porque ele sofre, sem se poder curar... de umas hemorróidas bem incomodativas. Além disso, digo-lhe que tu és meu amigo.

Agradeço-te. E... ela? perguntou Demétrios apontando com a cabeça para Fiora, que Léonarde estava a ajudar a sentar.

Pensei que pudesses conduzi-la a Paris, onde ela... onde Beltrami tinha um primo, que lhe geria o balcão local. Ali não lhe faltaria nada, pois Donati, que gere actualmente os negócios do seu pai, velaria por ela. Mas o que acabo de saber muda muitas coisas. Arranja-me com que escrever, enquanto vos preparais para a partida...

No que me diz respeito, está tudo pronto disse Demétrios.

Nós também! disse Léonarde.

O médico tinha disposto em cima da mesa o necessário para escrever e Lourenço já pegava na pena quando Fiora o deteve:

Que vais fazer?

Recomendar-te ao rei Luís, para que...

... a mulher de Philippe de Selongey possa servir-lhe de refém? Tu próprio acabas de dizer que não conto nada para o homem a quem fui unida.

Não disse Lourenço gravemente. Para lhe dizer que lhe envio a filha... infeliz de Francesco Beltrami, o amigo que perdi. O seu nome é conhecido na corte de França.

Ele ia começar a escrever, mas ela agarrou na folha de papel ainda virgem e rasgou-a:

Deixa nas minhas mãos o meu destino! Enquanto não for reconhecida inocente de tudo o que me imputaram e os meus direitos restaurados aos olhos de todos... e por ti, não quero saber das tuas recomendações.

Fiora, suplico-te.- deixa passar o tempo!

O tempo? Em que poema é que Petrarca diz: «Antes de eu alcançar a margem desejada, o loureiro perderá as folhas verdes...»? Tu nunca ousarás ir contra a vontade do povo, Lourenço... mas toma cuidado, que um dia ele pode deixar-se atrair por um novo ídolo! E toma cuidado com o Papa!

Direita e orgulhosa, a cabeça erguida como se caminhasse para a glória em vez de dar os primeiros passos numa direcção cujo destino final ignorava, Fiora virou as costas ao Magnífico, ao homem em quem estava encarnada toda a graça e esplendor da sua juventude... e saiu da sala.

Um quarto de hora mais tarde, entretanto, vestida com o gibão verde que lhe fora dado por Chiara, pousava o pé no estribo que Lourenço lhe segurava. Era o seu próprio cavalo que ele lhe dava, tal como Demétrios e Léonarde recebiam os cavalos que tinham trazido Poliziano e Savaglio. Os três homens regressariam a Badia a pé. Esteban tinha a sua montada habitual e a mula, que o servia a ele e ao seu patrão indistintamente, levava as poucas bagagens.

Demétrios, antes de o deixar, olhou para o pequeno castelo que lhe oferecera a sua primeira paragem tranquila e doce, após tantos anos de vagabundagem. Ia ser fechado a menos que a multidão furiosa lhe pegasse fogo no dia seguinte! e a bela Samia regressaria a Badia ou ao palácio da Via Larga. O grego sabia que, apesar de tudo, deixava algumas amizades: Poliziano abraçara-o chorando e o próprio Lourenço o apertara nos braços... murmurando-lhe que havia ouro nas sacolas do seu cavalo, assim como nas da montada de Fiora... Mas o médico não estava triste: pensava na sua vingança, que ia, por fim, ser possível graças àquela bela mulher que o céu... ou o diabo fizera sua companheira e talvez sua cúmplice...

Além disso, estava demasiado habituado às partidas frequentes para que uma tal coisa lhe fosse penosa.

Sem o querer confessar, Léonarde sentia-se feliz. Reencontrara a sua pequenina e ia rever a sua terra natal, aquela Borgonha que a beleza de Florença nunca conseguira fazê-la esquecer. Pelo menos, era um país realmente cristão, onde não se cantava a missa depois de se louvarem divindades pagãs!

Esteban não pensava em nada. Iria para onde fosse o homem ao qual se ligara, mas, ao mesmo tempo, estava contente por partir. Amava de mais a aventura e a zaragata para se satisfazer com os prazeres do mercado e com uma vida tranquila no seio de uma natureza agradável. Era verdade que as coisas se tinham tornado mais apaixonantes com a entrada nessa vida daquela que ele chamava para si próprio «a madona dos olhos cinzentos», mas ainda bem que iam para outros horizontes... Horizontes onde havia guerra.

Fiora escutava a noite. O vento levantara-se, trazendo com ele os ruídos da cidade que não acalmaria tão cedo. Conseguia ver as luzes instáveis e os fumos leves que, apertados na cintura da muralha, evocavam a cratera de um vulcão que desperta... Era a sua morte que pediam lá em baixo e ela bem podia perder qualquer esperança de regresso. No entanto, a despeito do que sofrera, as raízes do seu coração permaneceriam mergulhadas na cidadela da Flor-de-lis Vermelha. A voz de Lourenço, que segurava ainda as rédeas do cavalo, chegou-lhe como que num sonho...

Não me dizes adeus, Fiora? Mesmo que me detestes, quero que saibas que nada será como dantes. Tu levas um pouco da beleza desta cidade...

Adeus, senhor Lourenço! Se amas a beleza da tua cidade, vela por Simonetta Vespucci... não vás perdê-la também... disse ela, lembrando-se da profecia de Demétrios.

Que importa Simonetta! Não é a mim que ela ama... e tu, agora, parece-me que poderia ter-te amado...

O Magnífico entregou-lhe as rédeas e ela pegou nelas com mão firme. Na obscuridade, ela viu brilhar os olhos escuros de Lourenço e, subitamente, obedecendo a um impulso, inclinou-se e, por um curto instante, pousou os lábios nos do Magnífico.