Como é que adivinhastes? perguntou Francesco.

Segui o processo. Oh! não por curiosidade malvada, mas por compaixão. Desejei tanto que, ao menos, lhes deixassem a vida. E vi muitas vezes messire Charruet junto deles. Daí ao bebé foi um passo.

Bruscamente, Léonarde, cuja voz tinha falhado, tirou um grande lenço da algibeira do avental e assoou-se vigorosamente.

Deixemo-los repousar em paz e vamos ao que interessa! Precisais de uma ama-de-leite, não é verdade, messire?

Com efeito. Senão, terei que arranjar uma cabra.

Creio que tenho o que procurais. Não muito longe daqui, uma pobre rapariga da minha terra foi violada por um soldado. Ela veio esconder a vergonha na cidade e eu tratei dela. O filho dela nasceu antes de ontem, mas morreu mal saiu do ventre da mãe.

Ela aceitaria amamentar a pequena? E partir para tão longe?

Por isso respondo eu. Mas com uma condição: eu vou com ela. A estupefacção fez arregalar os olhos dos dois homens:

Quereis abandonar esta casa onde vos apreciam, creio interpretou Beltrami sem sequer saber para onde ides e quem eu sou? Mas, perche... mas, porquê?

Espero ser apreciada para onde quer que vá disse Léonarde sem se embaraçar. Além disso, sei julgar um homem de bem. Uma outra razão: se levardes Jeanette, quero poder velar por ela, porque a pobre rapariga já sofreu bastante. Estou muito ligada a ela, mas... (e o tom da mulher mudou, fez-se grave, com uma curiosa nota de emoção.. mas talvez menos do que ao bebé que ainda há pouco me puseram nos braços e que dorme no meu quarto. Quando a vi senti-me extasiada, maravilhada. Foi como que um dom do céu, uma resposta à angústia inexplicável que eu senti quando a mãe dela entrou nesta cidade no meio dos arqueiros, acorrentada como uma criminosa.

Francesco olhou para Léonarde com uma curiosidade nova. Na verdade, aquela mulher parecia-lhe cada vez mais espantosa:

O incesto não é um crime aos vossos olhos, donna Léonarde?

Não mais do que aos vossos, aparentemente disse ela com audácia. Quanto a mim, só Deus pode julgar aquilo que não é, no fim de contas, senão um excesso de amor. Só Ele tem a balança para pesar os corações. O único que merecia a morte era Regnault du Hamel: por excesso de ódio! Mas eu não vim aqui para fazer um discurso acrescentou Léonarde, reencontrando a sua brusquidão habitual. Vou buscar Jeannette?

Fico-vos muito reconhecido. Mas, primeiro, ide buscar a criança... Ela está a dormir, já vo-lo disse. Não tem importância. E em caminho pedi a dome Bertille e a mestre Huguet que venham ao meu quarto... O jovem virou-se para o velho padre: De que precisais para celebrar um baptismo?

Quereis?... No fim de contas, por que não? Água pura, sal, uma toalha branca, um padrinho e uma madrinha...

Eu serei o padrinho e donna Léonarde a madrinha... se ela quiser. Mestre Huguet e a sua mulher serão as testemunhas...

Por trás dos vidros, os olhos azuis iluminaram-se.

Vou imediatamente. E depois, vou buscar Jeanette...

Alguns instantes mais tarde, a pequenita votada ainda há pouco à vergonha e à morte recebia o baptismo das mãos de Antoine Charruet

e os nomes de Fiora Maria, filha adoptiva de Francesco Maria Beltrami,

substituindo-se ao pai e mãe desconhecidos, sendo o padrinho o mesmo Beltrami e a madrinha Léonarde Mercet.

A testemunha abriu para a circunstância uma das suas melhores garrafas de vinho de Beaune e se se mostrou surpreendido com a partida próxima daquela parente da sua mulher, não mostrou uma dor excessiva. Dame Bertille, essa, verteu três lágrimas, mas pensou que, se a sua prima estava a enlouquecer, que fosse longe de um albergue cujo nome sempre fora irrepreensível. E se um e outro acharam estranho todo aquele rebuliço em torno de uma criança encontrada ao canto de uma rua, abstiveram-se de qualquer manifestação em virtude da regra intangível de

todo o bom comerciante, que diz que o cliente tem sempre razão. Sobretudo um cliente tão rico como aquele florentino...

No dia seguinte, de madrugada, uma liteira um pouco usada, mas ainda bastante apresentável que o senhor Huguet negociara ferozmente durante a noite com um seu parente cónego em Saint-Bénigne e que dame Bertille encheu de almofadas, transportava o bebé

Fiora, a sua madrinha e Jeanette, sua ama-de-leite, uma jovem Borgonhesa de rosto redondo, corpo redondo, seios redondos e olhos arregalados por passar subitamente de uma vida quase miserável para uma prosperidade inesperada. Duas mulas sólidas iam atreladas aos varais. I Francesco Beltrami e Marino, armados até aos dentes, escoltavam o veículo, cujas cortinas de couro castanho se fecharam mal saiu do pátio do albergue. Dirigiram-se para a porta de Ouche, enquanto os últimos criados do florentino, com o carregamento de tecidos finos, se dirigiam para a porta Guillaume, para lá da qual se estendia a estrada de Paris.

No momento em que a liteira atravessou a praça Morimont, Francesco desviou o olhar do cadafalso despojado do seu pano negro, mas onde se erguia ainda e sempre a cruz, a roda e a forca, evocatórias de suplícios. O aspecto daquela praça permaneceria para sempre gravada na sua memória tal qual a vira na véspera, servindo de pano de fundo fúnebre a um rosto resplandecente, um rosto inscrito no mais secreto do seu coração, traço a traço, pelo implacável cinzel do amor. E foi com uma espécie de serenidade que vislumbrou pela última vez o campo de estrume onde dormiam Marie e o seu irmão.

Efectivamente, antes de o dia despontar, Francesco fora bater à porta do carrasco. Àquele ancião severo entregara algum ouro para que, numa noite bem escura, fosse tirar os amantes malditos da sua ignóbil tumba e lhes concedesse o repouso na terra cristã que o padre Antoine Charruet lhe indicaria...

O Sol de Inverno nasceu, vermelho, grande, banhando a paisagem nevada com uma luz púrpura. De pé, um pouco para lá da ponte levadiça da porta de Ouche, o velho padre viu afastar-se pela estrada de Beaune o pequeno cortejo daquele homem generoso, que acabava de dar a todos uma tão grande lição de humanidade. Levantando subitamente o braço, traçou no ar frio o sinal da cruz e depois regressou à cidade. Quando tivesse cumprido com Arny Signart, o executor, o último desejo do florentino, regressaria a Brévailles para levar, em segredo, algum apaziguamento à profunda dor de uma mãe e, com isso, a sua alma simples rejubilava antecipadamente. Entrou na primeira igreja que encontrou e lançou-se numa acção de graças, para agradecer a Deus misericordioso o ter permitido que Francesco Beltrami entrasse em Dijon à mesma hora em que Marie de Brévailles caminhava para a morte. Pelo menos a criança, nascida em tão terríveis circunstâncias, escapara à crueldade dos homens e poderia ter a sorte de conhecer alguns anos de felicidade.

Nem por um instante o ancião teve vontade de ir ver o que acontecera a messire Regnault du Hamel. Esse estava nas mãos de Deus e a Penitência que lhe fora infligida pelo mercador florentino fora inteiramente merecida.

Com efeito, só no dia seguinte um camponês, que passava perto do velho hospício, ouviu uns gemidos e descobriu o conselheiro do chanceler meio morto de frio. A liteira que transportava a pequena Fiora, aninhada no regaço de uma Léonarde desabrochada pela primeira vez na vida, já tinha percorrido uma boa parte do caminho...

Primeira parte

POR UMA NOITE DE AMOR

Florença, 1475

CAPÍTULO I

A GIOSTRA

Este não! Nem este! E muito menos este: já me viram com ele 20 vezes. Oh! não! Este velho horror, não: fico com cem anos e com este pareço um bebé! Procura outros!...

De pé no meio do seu quarto, em camisa e de pés nus, de mãos nas ancas e a massa negra dos seus cabelos caindo-lhe livremente pelas costas, Fiora, de olhar tempestuoso, passava em revista os vestidos que Khatoun, a sua jovem escrava tártara, tirava um após outro, com gestos descuidados, das grandes arcas de cedro, pintadas e douradas, que serviam de guarda-roupa. Os cetins irisados, os veludos rosa, azuis, brancos, negros ou castanhos, as musselinas bordadas, os tafetás e os cedais sussurrantes, os samitos matizados, enfim, tudo o que a arte da seda florentina e os tecidos orientais podiam oferecer, tanto à garridice, como ao adorno de uma bela mulher, enchiam o quarto. Saíam das cassoni, descreviam no ar uma curva graciosa e vinham, depois, cair aos pés de Fiora para formarem sobre o azul de um grande tapete persa um maciço colorido e cintilante, que aumentava de volume a cada instante sem conseguir alegrar a sua jovem proprietária.

Chegou o momento em que Khatoun, quase desaparecendo nas profundezas da arca, saiu com um último véu e, deixando-se cair numa almofada, disse languidamente com um suspiro magoado:

É tudo, patroa. Já não há mais nada. Fiora abriu uns grandes olhos incrédulos.

Tens a certeza?

- Vê tu mesma, se não me acreditas. Nesse caso, isto é tudo o que eu possuo?

E parece-me que já é muito. Certamente há princesas que não têm tanto... |

Simonetta Vespucci tem mais do que eu. Ela sai sempre com uma toilette nova. É verdade que toda a Florença só tem olhos para ela e que não cessam de lhe oferecer presentes... Sentindo umas lágrimas de cólera subirem-lhe aos olhos, Fiora girou nos calcanhares e foi, com um ar acabrunhado, apoiar-se à graciosa janela de colunas, de onde se podia ver o curso tranquilo do Arno, brilhant^ sob o sol claro de Janeiro. Sem virar a cabeça, ordenou: Arruma esses trastes todos! Não vou sair. -Não queres ir ao torneio? gemeu Khatoun, desiludida porque acompanhava Fiora a toda a parte onde ela ia e queria ver a festa guerreira. |

Nem ao torneio nem a parte nenhuma. Fico aqui. Espero que, pelo menos, vos digneis vestir-vos? Que Maneiras são essas, exibindo-vos em camisa à janela? Procurais apanhar frio, ou quereis que os marinheiros do rio vos vejam? Dame Léonarde acabava de entrar, trazendo num tabuleiro leite quente e fatias de pão com mel. Os 17 anos passados sobre a dramática partida de Dijon não tinham mudado muito a prima de Bertille Huguet. Estava apenas um pouco menos angulosa e graças à existência generosa e confortável que havia no palácio Beltrami, adquirira umas formas mais macias e uns traços do rosto menos pronunciados. No entanto, a sua voz conservava a mesma entoação inflexível de comando, mesmo e sobretudo quando se dirigia a Fiora, a quem adorava, mas a quem não deixava passar nada.

No seguimento de uma viagem por mar, no decurso da qual acreditara ter entregado a alma ao Criador, a borgonhesa descobrira Florença, estendida ao sol no seu quadro de doces colinas, com um espanto que: nunca mais a abandonara. A cidade da Flor-de-lis Vermelha transbordava de cor e vida e Léonarde adoptara-a tão espontaneamente como se pusera ao serviço de Francesco Beltrami, cujo calor e generosidade a tinham conquistado. Amara a elegância severa do palácio que o negociante habitava nas margens do Arno e depois fora de surpresa em surpresa. Assim, aprendera que as escalas de valores usadas na Borgonha e em França não eram as mesmas na grande cidade mercantil, onde o que se chamava Artes maiores: Calimala, ala, a Seda e a Banca estavam na mó de cima. A nobreza, tão preponderante noutros sítios, não o era ali, salvo se conseguisse fazer-se admitir no «privilégio» do comércio. Florença era uma república, ou, pelo menos, pretendia sê-lo, se bem que aceitasse obedecer a uma rainha sem coroa, uma dinastia de banqueiros poderosamente ricos, mas sem a mínima gota de sangue aristocrático: os Médicis. E Léonarde descobrira com prazer que o seu novo patrão pertencia à fina flor da cidade, da qual tinha todas as hipóteses de vir a ser, um dia, um dos priores, ou até o magistrado municipal, quando atingisse os 45 anos.

Na casa Beltrami, a recém-chegada fora adoptada com a mesma facilidade com que aprendera a língua toscana, com uma rapidez incrível. Fizera da façanha de falar duas línguas um ponto de honra - e até três, se se contar com o latim da Igreja - parecendo-lhe um símbolo de dignidade e intelectualidade extremamente lisonjeiro. Mas, com Fiora, de quem unicamente se ocupara nos primeiros tempos, falava apenas em francês, aliás com o acordo de Beltrami, para que a criança conservasse, pelo menos nesse aspecto, as suas raízes. O que lhe permitira nunca a tratar pelo tu habitual florentino, porque, para ela, a pequenita, para todos Fiora Beltrami, filha «natural de Francesco Beltrami e de uma nobre dama que morrera do parto», não deixava de ser filha de Jean e Marie de Brévailles, quer dizer, um puro produto da nobreza borgonhesa. Fiora assimilara as duas línguas com igual facilidade e até lhes acrescentara o latim e o grego.