Cinco anos depois da chegada de Léonarde, a velha governanta de Francesco, Nanina, adormecera no seio do Senhor e a borgonhesa fora chamada a substitui-la. Desde então exercia, sem a partilhar, a sua autoridade sobre as diversas casas do negociante, para plena satisfação de ambos. Apenas Marino Betti, o antigo recoveiro, transformado em intendente de uma propriedade, escapava à sua autoridade para seu alívio, adivinhando nele, senão um inimigo, pelo menos um adversário. Com efeito, juntamente com o seu patrão e a governanta, Marino era o único a conhecer a origem de Fiora, coisa que ele nunca admitira com sinceridade. Assim, Beltrami julgara por bem atar-lhe a língua por meio de um juramento solene prestado diante do primeiro altar da Virgem encontrado na estrada, acrescentando-lhe algumas vantagens financeiras muito convincentes.

Quanto a Jeanette, a jovem ama-de-leite, a sua frescura loura conquistara um fazendeiro de Mugello. Tornara-se alegremente na signora Crespi e passara a dispensar o seu leite apenas às crianças que todos os anos, pontualmente, dava ao marido.

Evidentemente, as pessoas de Florença tinham sabido, não sem surpresa, a súbita paternidade de um dos celibatários mais ricos da cidade, mas, herdeiras do pensamento e filosofia gregos, não se apegavam muito à severa moral cristã e a bastardia não era considerada um defeito redibitório, sobretudo se era acompanhada pela beleza. A criança revelou-se rapidamente encantadora e os numerosos amigos do seu suposto pai acolheram-na unanimemente de braços abertos. As mulheres tinham-se mostrado mais difíceis, sobretudo aquelas que tinham filhas para casar, mas muitas esperavam levar Beltrami ao altar, proclamando que era indispensável que a pequenita tivesse uma mãe.

Francesco fizera orelhas moucas, sem que, por isso, as mais tenazes perdessem a esperança. Mas havia um pequeno clube de opositoras irredutíveis, cuja chefe de fila oculta era a prima direita de Francesco, Hieronyma, que tinha contraído matrimónio com a nobreza ao casar com um Pazzi. As suas razões eram transparentes, porque, enquanto Beltrami não se casasse e não tivesse filhos, ela e o seu filho Pietro eram os seus únicos herdeiros e a herança, na ocorrência, não era daquelas a que se renuncia com facilidade.

Beltrami não se deixava enganar pelos seus encantos aparentes e os seus estados de alma não o deixavam muito preocupado. À medida que os anos iam passando, ela foi-se persuadindo que a pequena Fiora era realmente filha dele. O amor que numa terrível manhã de Inverno ele votara espontaneamente a uma jovem desconhecida cuja beleza o deslumbrara, transferira-o para aquela criança, encontrando uma alegria profunda ao vê-la crescer e desabrochar no ninho que lhe oferecera. Fiora era suficiente para a sua felicidade, enquanto esperava o dia em que Deus, fazendo-o passar para o outro lado do espelho, o faria reencontrar a bela mulher dos seus amores...

Léonarde pousou o tabuleiro sobre o leito, segurou Fiora por um braço e puxou-a para trás, fechando, com a mão livre, a janela composta de pequenos vidros redondos, acoplados uns aos outros por meio de lamelas de chumbo.

Ides, enfim, ser razoável? resmungou ela.

Não me apetece ser razoável protestou a jovem, torcendo-se como um verme para escapar à mão da governanta. Aliás, isso quer dizer exactamente o quê, ser razoável?

Quer dizer que vos deveis comportar como uma jovem dama digna desse nome disse Léonarde, habituada há muito ao character insubordinado daquela que, no seu foro interior, considerava como sua filha. Quer dizer que deveis comer o que vos trouxe.

Não quero. Não tenho fome.

Ora, fazei de conta! E depois, deixai que vos vistam! O vosso pai

mandou chamar-vos. Não tencionais apresentar-vos a ele em camisa?

Como por milagre, a rebelde acalmou-se. Amava Francesco com um amor profundo, alegre e confiante. A ideia de lhe causar qualquer dor mesmo ligeira, provocava-lhe grandes acessos de cólera e Léonarde sabia-o muito bem. Docilmente, Fiora comeu uma fatia de pão e bebeu um pouco de leite, enquanto Khatoun, a um sinal da governanta, apanhava um dos vestidos desdenhados, preparando-se para vestir a sua patroa. Um instante mais tarde Fiora aparecia vestida com uma túnica de cetim branco e com o vestido propriamente dito, feito de um belo veludo cor de folhas de Outono, que apertava por baixo dos seios para deixar ver o cetim da túnica. As pesadas pregas, que rematavam numa curta cauda, eram cingidas bem alto, mesmo sob o peito, por uma fita dourada que rodeava os ombros e apertava as mangas estreitas, tão longas que cobriam a parte de cima da mão.

Enquanto Khatoun dava um laço nas mangas, cujas aberturas deixavam passar no pescoço e nos ombros o tecido de cetim branco ligeiramente tufado, Léonarde, armada com uma escova, esforçava-se por pôr em ordem a abundante cabeleira de um negro profundo, que caía em desordem pelas costas da jovem.

Estou horrível! declarou ela em tom dramático.

É o que eu digo todos os dias quando entro aqui troçou Léonarde. Como é que messer Francesco, que é um homem de bom gosto, pode suportar a presença de uma rapariga tão feia sem ficar cego?... Não digais asneiras!

Fiora era sincera. Educada numa cidade onde as mulheres só sonhavam em ser louras e se davam a trabalhos infinitos para clarear os cabelos por meio de enormes quantidades de unguentos e intermináveis banhos de sol com as cabeleiras metidas em chapéus de cartão sem fundo, era incapaz de dar o devido valor a uma cabeleira flexível e brilhante, sem dúvida, mas demasiado escura.

- O meu pai ama-me murmurou ela com lágrimas nos olhos.

Mas não olha para mim tal qual eu sou. Eu sei que ninguém me amará nunca, com esta trunfa. Sobretudo...

Bruscamente, calou-se e corou por quase ter deixado escapar o segredo do seu coração. Não sabia que Léonarde já há muito sabia desse segredo. Esta, não querendo aumentar o desgosto da criança, fez de conta que não tinha ouvido.

É melhor não fazer esperar messer Francesco disse ela docemente. Acabamos o penteado mais tarde. Em seguida, aflorando com um dedo a face da garota, acrescentou com muita ternura: Se não acreditais no vosso espelho, acreditai na velha Léonarde... e nesses rapazes todos que vos fazem a corte: sois mais bonita do que pensais e eu sei que, mais tarde, sereis muito bela. E agora, toca a andar!

Fiora não respondeu. Não estava convencida. Evidentemente, não se achava horrível: seria preciso ser cega; evidentemente, não faltavam os pretendentes em redor da filha do muito rico e poderoso messer Beltrami, mas justamente porque o seu pai possuía uma das maiores fortunas da cidade, ela não conseguia acreditar na sua sinceridade e teria dado alegremente toda a sua fortuna para possuir os cabelos dourado-avermelhados de Simonetta...

Na soleira da porta a jovem perguntou:

Onde está o meu pai?

No studiolo.1

Fiora saiu e viu-se na grande galeria de colunas que, no primeiro andar do palácio, dava a volta ao cortile o pátio interior ornamentado com duas estátuas antigas e laranjeiras plantadas em grandes vasos de majólica verdes e azuis. Apesar de se estar em pleno Inverno, o tempo estava suave e ensolarado, porque a estação fria, na Toscânia, caracterizava-se mais pela chuva do que por grandes frios e a neve era rara. Fiora, que não gostava de viver fechada e que passava a maior parte do seu tempo livre no jardim, respirou aquele ar leve, que trazia com ele os odores do pão quente e das especiarias finas por cima de um fundo musical longínquo. O dia era o vigésimo oitavo de Janeiro, dia de festa, porque Lourenço de Médicis queria celebrar com fausto o acordo que acabava de assinar, contra o Turco, com a Sereníssima República de Veneza. Haveria torneios, banquetes e danças...

O caminho que Fiora tinha de percorrer não era longo: os apartamentos de Francesco eram no mesmo andar dos da sua filha, mas

1 Meio biblioteca, meio gabinete de estudo e de curiosidades, o studiolo era a sala predilecta dos italianos ricos


do outro lado do pátio. Com Khatoun, que nunca a abandonava, trotando sempre nos seus calcanhares, Fiora dirigiu-se rapidamente para eles.

Khatoun era tártara e tinha a mesma idade da sua jovem patroa. Era uma criatura pequena, miúda e graciosa, que, com o seu rosto triangular, olhos rasgados e nariz pequeno e achatado, se parecia com um gato. Desses felinos tinha a vivacidade e as naturais brincadeiras e meiguice. Adorava a casa Beltrami, Fiora e a vida doce que levava junto dela. O facto de ter nascido escrava não a atormentava minimamente, pela excelente razão de que ninguém teria a ideia de lho fazer sentir. Fiora não o teria permitido.

Tal como em toda a Itália, em Florença os escravos eram numerosos, sobretudo os do sexo feminino e a opulência de uma casa avaliava-se, não só pelo seu número e qualidades, mas também pelo exotismo da sua aparência. Alguns eram raros e eram disputados, como o casal de dançarinos mouros e a anã negra que a duquesa de Ferrare invejava furiosamente à duquesa de Milão, Bianca-Maria Sforza.

Os burgueses das cidades ricas como Florença, Milão, Veneza ou Génova, podiam oferecer a si próprios esse luxo caro, que fazia com que os escravos fossem muitas vezes tratados como familiares e não como vulgares criados. Os armadores venezianos, ou genoveses, importavam-nos dos mercados do Mar Negro, da Ásia Menor, da península balcânica, de Espanha, onde os Mouros possuíam ainda Granada, da Rússia ou da Tartária e o seu preço variava entre os cem e os 200 ducados de ouro. Naturalmente, se fossem cantores, dançarinos ou bordadeiras hábeis, músicos ou amas-de-leite, o preço subia com facilidade aos 500 ou 600 ducados. Quanto a Khatoun, não passava de um bebé de colo quando foi comprada em Trébizonda pelo capitão do Santa Madalena, emocionado com a beleza da mãe dela e trazida para Florença. Mas Djamal, a mãe, morreu alguns meses após a sua chegada e a pequenita Khatoun foi também, ao mesmo tempo que Fiora, criada por Léonarde e destinada a ser ao mesmo tempo companheira e criada de quarto da jovem, sendo a primeira condição mais importante do que a segunda...

Aquela história dos escravos tinha atormentado Léonarde aquando da sua chegada a Florença. As suas convicções cristãs insurgiram-se perante um tal estado de coisas, mas em breve descobriu que os escravos de Florença eram muitas vezes mais bem tratados, devido ao preço pago, do que certos assalariados, certos criados de quinta, ou certas raparigas de cozinha das casas do outro lado dos Alpes. Possuir escravos não perturbava minimamente os estranhos sentimentos religiosos dos florentinos, que, ao mesmo tempo que professavam uma devoção profunda por Cristo, a Virgem e os santos, enchendo as suas igrejas com frescos, retábulos e obras de arte admiráveis, demonstravam um gosto muito grande pela mitologia e filosofia gregas, com Platão ocupando com vantagem o primeiro lugar. A borgonhesa acabara por desculpar os seus novos concidadãos, em virtude do seu profundo amor pela beleza sob todas as suas formas e isso até nas classes mais baixas e da sua extraordinária alegria de viver...

Chegada diante da porta do seu pai, Fiora mandou Khatoun pôr ordem no seu quarto e depois, batendo levemente, entrou sem esperar autorização; no que teve razão, porque poderia ter tido de esperar muito tempo. Com a mão no queixo e o cotovelo apoiado no braço da sua cadeira, Francesco sonhava diante de um quadro pousado num cavalete de ébano virado para ele... O seu rosto irradiava uma tal felicidade que a jovem ficou espantada.

Pai! chamou ela docemente.

Francesco estremeceu como alguém que é acordado subitamente, mas sorriu de imediato com aquele sorriso que dava tanto encanto ao seu rosto fatigado. Com os anos, adquirira um pouco de peso e algumas rugas, ao mesmo tempo que os seus espessos cabelos negros começavam a ficar grisalhos, mas conservava uma grande vitalidade e uma espantosa capacidade de trabalho.

Anda ver! disse ele estendendo os braços para atrair a jovem: Sandro acaba de mo mandar e é uma maravilha...

Fiora aproximou-se apressadamente. Algumas semanas antes posara para um jovem pintor da vizinhança, que Lourenço de Médicis distinguira e que, até ao momento, quase só trabalhara para ele, mas Francesco Beltrami, cuja paixão pela pintura era conhecida, soubera conquistar a amizade daquele rapaz imaginativo e sonhador, extravagante e até, por vezes, versátil, que alimentava a sua obra com os seus sonhos e os dos poetas florentinos. Era filho de um curtidor do bairro de Ognissantí e chamava-se Sandro Filipepi; começava a ser conhecido sob o nome de Botticelli, que significa pipo e que lhe vinha de um irmão mais velho, de 28 anos, grande bebedor e que sempre se ocupara dele, ao ponto de as pessoas acreditarem que era seu pai, passando este por seu avô. Como o garoto era conhecido como o Sandro do Botticello, ficou Botticelli.