Que queres dizer?
O que toda a gente sabe: os amores dos irmãos Médicis não duram muito. Além disso, Marco Vespucci começa a segregar uma certa acidez. Um marido ciumento é embaraçoso. Devias saber isso, tu: o vosso palácio é vizinho do dos Vespucci. Em vez de esperares, farias melhor se olhasses em redor: Luca Tornabuoni é mais belo do que Giuliano e está louco por ti. Aliás... fale-se no diabo...
O jovem em questão acabava de sair de uma rua em companhia de vários companheiros. De imediato, as duas jovens foram rodeadas por um bando alegre e tagarela, que as separou das respectivas escoltas e as levou triunfalmente até ao local do torneio. Luca Tornabuoni ousou, a coberto do tumulto, segurar a mão de Fiora na sua, depois de ter pousado nela um beijo furtivo:
- Os vossos olhos terão hoje para mim um olhar mais doce do que habitualmente? - pediu ele em francês. Ela sorriu-lhe e pensou que, com efeito, ele era muito belo e alto, o que a obrigava a levantar um pouco a cabeça, se bem que ela fosse também alta, com um perfil de medalha, com espessos cabelos negros e encaracolados e olhos sombrios, que brilhavam ao olhar para ela.
- Porquê hoje? - perguntou ela, traquinas.
- Porque hoje é dia de festa, porque está um dia bonito, porque vós estais mais bela do que nunca e porque...
Quem quer ser feliz apressa-se
Porque ninguém sabe o dia de amanhã...
O jovem terminou a sua frase trauteando aquela canção composta por Lourenço de Médicis, sua favorita e que se tornara o evangelho de toda a juventude de Florença. Mais baixo, ele acrescentou ardentemente:
- Deixai-me falar com o vosso pai, Fiora! Aceitai tornar-vos minha mulher!
- Mesmo que eu aceitasse, o meu pai não diria que sim. Acha que ainda sou muito nova...
- Nesse caso, dai-me, ao menos, uma esperança, um penhor. Eu vou combater por vós...
Luca era um dos que iam medir-se com Gíuliano de Médicis na justa dessa tarde. Tocada, apesar de tudo, por aquela súplica apaixonada, ela estendeu-lhe o seu lenço, que ele meteu de imediato no interior do seu gibão:
- Obrigado, minha doce dama - exclamou ele alegremente. Agora, é preciso que eu saia vitorioso, para vos honrar...
- De qualquer maneira - observou Chiara - não é Fiora que te vai coroar, admitindo que ganhes. Ela não é a rainha da justa.
- Por que esse... admitindo? Duvidas da minha coragem?
- Nem da tua coragem nem do teu valor, belo cavaleiro, mas não seria nada conveniente que Giuliano perdesse, porque a sua dama é a rainha.
Logo a seguir o jovem deixou-as. Estavam a chegar à praça Santa Croce, à entrada da qual se erguiam tendas de seda multícoloridas para os combatentes. Pajens vestidos de vermelho e dourado e palafreneiros cuidavam dos cavalos soberbamente ajaezados segundo as cores dos seus donos... Eram todos cavalos de grande valor, provenientes das célebres cavalariças do marquês de Mântua, ou árabes, fornecidos por Veneza. Apenas Giuliano de Médícis montaria um admirável corcel alazão, recentemente oferecido com uma égua da mesma cor pelo rei de França ao seu irmão Lourenço. Luís XI, do qual se dizia que a sua core era a menos faustosa da Europa, era um conhecedor da matéria e sabia mostrar-se magnânimo quando se tratava dos seus aliados, ou amigos. Aquele cavalo era a prova viva.
Diante da fachada de tijolos cor-de-rosa, muito simples, da igreja da Santa Croce, uma grande tribuna, coberta por panos púrpura e ouro fora erguida para o senhor de Florença e seus convidados. O trono da rainha do torneio ocupava o centro. De cada lado, face a face, altos balcões de madeira haviam sido erguidos ao longo das casas. As damas e as meninas da cidade tomavam lugar neles com os seus mais belos adornos, acompanhadas dos seus maridos, pais ou amantes. Compunham, assim, uma dupla grinalda colorida e cintilante, digna de uma corte real e o povo, que se amontoava por trás das barreiras cobertas de seda, com as suas roupas de cores alegres, não destoava do quadro. As fitas e os estandartes esvoaçavam por toda a parte, agitados por um vento ligeiro. Tudo aquilo ressoava, estremecia e Florença, naquele belo dia, era só seda, ouro e prata, como uma imensa tapeçaria animada pela vontade de um qualquer mágico todo-poderoso.
Justamente, o dito mágico ia fazer a sua aparição. Anunciado pelo som triunfal de longas trombetas de prata, das quais pendia, num quadrado de tecido branco, a flor-de-lis vermelha de Florença e precedido pelos porta-estandartes que faziam voltear e lançavam ao ar as suas bandeiras variegadas, um brilhante cortejo acabava de aparecer. À cabeça, vestido de veludo verde-escuro orlado de zibelina, um largo colar de ouro cinzelado no pescoço e uma fortuna em pérolas e rubis no chapéu, caminhava Lourenço de Médícis, o rei sem coroa daquela estranha república, o senhor de 27 anos, ao qual a cidade dera o seu coração, se bem que fosse tão feio quanto o seu irmão era belo. Mas que fealdade formidável. O Magnífico tinha, sobre o seu corpo magro e vigoroso,! um rosto quase simiesco, no qual o reflexo de um génio triunfal e uma
1 Foi o primeiro aspecto da igreja A fachada foi refeita mais tarde
inteligência excepcional substituíam a beleza. Os cabelos negros e espessos, o nariz longo e pontiagudo, os traços fortemente desenhados e uma grande boca de lábios finos nada podiam contra o fascínio que se apoderava de todos aqueles que o conheciam e a atracção que exercia, com aquele aspecto enigmático e sombrio, nas mulheres.
O poder político fora entregue aos dois irmãos por morte do pai de ambos, Piero o Gotoso, mas essa igualdade era apenas aparente. O único chefe era aquele homem excepcional, nos largos ombros do qual repousava uma das maiores fortunas da Europa, a responsabilidade do poder e as ramificações complicadas de uma política que não se limitava apenas às relações com os outros Estados italianos, mas também com as grandes potências, como a França, a Inglaterra, a Alemanha, Castela e Aragão. Banqueiro dos reis que contavam com ele, o Magnífico estreitara com a França os laços de amizade tecidos pelo seu pai, ao qual o rei Luís XI concedera a graça insigne de poder gravar a flor-de-lis numa das sete bolas que compunham as suas armas.
Lourenço tinha chegado ao topo do poder, sabedor, no entanto, de todas as suas fraquezas. Estendera as fronteiras de Florença, conquistara Sarzana, sufocara as revoltas de Volteira e de Prato, vencera a facção dos Pitti e exilara-os, casara com uma princesa romena e o povo estava-lhe reconhecido por tudo isso. Despojara o Conselho da República das grandes famílias nobres, como os Guicciardini, os Ridolfi, os Nicolini e os Pazzi, substituindo-os por gente de condição baixa, mas essas famílias, cujas fortunas eram ainda respeitáveis, roíam o freio e conservavam uma clientela que podia sempre fazer barulho e armar assassinos. Assim, Lourenço, sob uma aparência jovial e despreocupada, escondia prudência, desconfiança e estava sempre em guarda, porque, apesar de suceder a seu pai e este ao seu próprio pai, Cosimo o Velho, sabia que o seu poder vinha do povo e não do direito divino. Entretanto, reinava, qual rei sem coroa, ao mesmo tempo que o seu jovem irmão, Giuliano, se contentava alegremente e sem procurar obter vantagens, com o papel amável de Príncipe Encantado, papel esse que interpretava às mil maravilhas. Florença amava-o pela sua beleza, elegância e até pelas suas loucuras, porque dava dela uma imagem sedutora...
Respondendo com um sorriso e um gesto da mão aos vivas frenéticos com que a multidão saudava a sua chegada, o Magnífico avançou para a grande tribuna, levando pela mão aquela que ia ser a rainha do torneio, a tal Simonetta Vespucci, a quem aclamavam quase tanto como ao seu guia e que Fiora detestava com todo o ardor ciumento dos seus 17 anos. Ainda por cima porque era obrigada a admitir, mesmo que isso lhe arrancasse o coração, que aquela rival inconsciente era absolutamente encantadora.
Alta e fina, de corpo tão ágil e encantador como a própria graça pescoço frágil e flexível, nariz pequeno levemente arrebitado e grandes olhos castanhos, doces como os de uma corça, Simonetta levantava altivamente a sua pequena e perfeita cabeça, tornada mais pesada por um cacho de cabelos de ouro-ruivo, composto de tranças brilhantes seguras por alfinetes de pérolas e intercaladas por um fino cordão de ouro entrançado, que terminava sobre a fronte numa brochetta, uma engraçada jóia de ouro e pérolas que se parecia com uma minúscula pluma.
Outras pérolas ainda ela amava as pérolas até à loucura enchiam o seu traje com uma brancura brilhante, bordado com finas folhas de ouro e avivado com pele imaculada de arminho. Estava tão bela quão triste estava o coração de Fiora: nunca poderia conseguir aquela perfeição! Simonetta era única, inolvidável...
Reconheço que ela é bela disse Chiara num tom descontente o que não impede que esse culto fixo que lhe dedicam, não apenas Giuliano, de quem ela é, seguramente, amante, mas também Lourenço, que não cessa de lhe fazer versos, sem contar com todos os imbecis, como Botticelli, ou Pollaiuolo, que se arrastam a seus pés, seja algo chocante. Ela é casada, que diabo! E podes dizer-me onde se encontra a esta hora Marco Vespucci?
Porque Simonetta era casada. Nascida em Porto-Venere, um nome predestinado o porto de Vénus! numa rica família de armadores genoveses, os Cattanei, casara seis anos antes e aos 16 anos com Marco Vespucci, o filho mais velho de uma nobre família florentina, cujo palácio era vizinho do dos Beltrami. Desde a sua primeira aparição em público, por ocasião das festas do casamento de Lourenço de Médícis com a princesa romena Clarissa Orsini, que subjugava, não somente os dois irmãos, mas também toda a cidade, maravilhada com aquela a quem chamavam com fervor a Estrela de Génova...
Já o procurei suspirou Fiora mas não o vejo...
Porque não está aqui. Assim como Madonna Clarissa. Ela permanece dignamente em casa enquanto o marido e o cunhado dão festas para celebrarem a sua Estrela. Não te iludas! O embaixador de Veneza não passa de um pretexto... E, por amor de Deus, pára de fazer essa cara! Devias levantar a cabeça tão alto como Simonetta. Quando compreenderás que tens o direito de estar orgulhosa de ti mesma?
instantaneamente, os olhos de Fiora encheram-se de faíscas:
- Sinto-me orgulhosa pelo que o meu pai fez de mim e pelo meu nome. Não é suficiente?
- Não, é tempo de compreenderes que já não és uma miúda, mas antes uma jovem... muito sedutora!
Fiora desatou a rir:
- O meu pai e Léonarde dizem a mesma coisa. Ainda acabo por acreditar nos três.
- E farias bem. Outros se encarregarão, aliás, de te convencer, desde que admitas que te podem cortejar por ti e não pela fortuna do teu pai. Aliás, pergunto a mim própria onde foste buscar essas ideias?
- Oh! isso vem de longe. Devia ter sete ou oito anos quando um dia donnaHieronyma...
- A tua prima?
- Do meu pai, sim. Ela estava a passear com uma amiga no jardim onde eu estava a brincar e parou. Pegou numa mecha dos meus cabelos e disse: «Esta pequena é realmente muito feia! Uma verdadeira filha do Egipto! Se não fosse o dote que há-de vir a ter, nenhum rapaz a quereria.»
- E tu acreditaste nela? Verdade seja dita que ela morreu pela boca: o filho dela é um monstro.
- Por favor, não falemos mais disso! Não é o local nem o momento.
A grande tribuna enchia-se. A rainha tomou lugar no seu trono, ao seu lado sentou-se o Magnífico e no outro o embaixador de Veneza, Bernardo Bembo. Francesco juntou-se às duas jovens, em companhia do tio de Chiara, no balcão lateral mais próximo da tribuna.
- Então, jovens damas? - perguntou ele com bom humor espero que estejais satisfeitas com os vossos lugares? Daqui, nada vos escapa do que se passa na justa nem na tribuna da rainha.
Era, com efeito, interessante e as duas amigas divertiram-se por um momento a enumerar todos aqueles que nela tomavam lugar. Os priores da Senhoria primeiro, com os seus gorros forrados e dalmáticas de veludo púrpura, acompanhados pelo magistrado municipal Peirucci.
1 Oficial de Justiça, na Idade Média, das cidades republicanas italianas.
Depois, alguns dos homens mais nobres ou mais ricos da cidade. Estava ali o séquito habitual do senhor: o filósofo-médico Marsile Ficino, que lhe ensinara a doutrina platoniana, o poeta helenista Angelo Poliziano que era o companheiro mais chegado do Magnífico, encarregado por ele de educar o seu filho, as três irmãs Médicis, Bianca, Maria e Nannina, o velho sábio Paolo Toscanelli, o astrónomo que tinha imaginado uma nova técnica para os gnomons e até tinha instalado um na igreja de Santa Maria del Fiore, a catedral de mármore branco, vermelho e verde, o admirável Duomo, pelo qual os florentinos se sentiam tão orgulhosos e com razão. Toscanelli era, além disso, conservador da Biblioteca médica e Fiora conhecia-o bem por ter recebido dele lições de astronomia, assim como tinha recebido de outros mestres cursos de grego, latim, matemática, canto, dança, metrificação e todas as outras coisas pouco habituais noutros lugares, que faziam das filhas das grandes casas, em Itália, verdadeiras eruditas. Junto do velho mestre, o seu aluno favorito, Amerigo Vespucci, o jovem cunhado de Simonetta, roía as unhas com um ar vago e não olhava para nada nem para ninguém, mas o seu gosto pelas viagens pelas estrelas era demasiado conhecido para que alguém se preocupasse.
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