Uma vigorosa cotovelada pôs fim à exploração de Fiora.
Olha! sussurrou Chiara sobreexcitada: Quem é aquele ali?...
Quem?
Não estás a ver aquele homem que se está a sentar ao lado de Monsenhor Lourenço? Um estrangeiro, certamente, porque nunca o vi.
Com um amável gesto de convite, o Magnífico fez sentar à sua esquerda um desconhecido de alta estatura, que podia ter entre 25 e 30 anos e cuja atitude anunciava ao mesmo tempo o senhor e o guerreiro. Sobre uns largos ombros exibia uma cabeça arrogante, na qual os curtos cabelos castanhos deviam estar mais habituados ao elmo do que ao chapéu de veludo negro, ornamentado com uma grande medalha de ouro. O rosto de maxilares poderosos, de grande nariz desdenhoso e lábios finos, que uma ruga trocista erguia de um lado, era demasiado assimétrico para pretender ser puramente grego, mas, quando sorria, aquela boca dura mostrava uns dentes brilhantes, e ao abrigo das pestanas direitas os olhos cor de avelã cintilavam de inteligência e ironia. O grande manto que o desconhecido usava negligentemente atirado
Precursores do quadrante solar
para cima dos ombros punha a descoberto um gibão de veludo negro, sobre o qual sobressaía um grande colar de ouro, do qual pendia uma curiosa jóia representando um carneiro dobrado em dois.
- Pai - pediu Fiora - sabes dizer-nos...
- ... quem é aquele interessante estrangeiro? - completou Beltrami, dirigindo um sorriso trocista às duas curiosas. - Chama-se Philippe de Selongey, cavaleiro da ordem do Tosão de Ouro e enviado extraordinário do muito poderoso duque Carlos de Borgonha, a quem chamam frequentemente o Grande Duque do Ocidente e mais frequentemente ainda, mas em voz mais baixa, o Temerário, por causa da sua coragem indomável e do seu orgulho desmedido, que o empurram, por vezes, para caminhos bem perigosos! Chegou apenas esta manhã e daí as armas do seu senhor não aparecerem ao lado das nossas e das de Veneza. E agora esquecei-o porque vai começar o torneio...
De novo se ouviram as trombetas, de novo os estandartes voltearam nas mãos hábeis dos seus portadores e o fabuloso cortejo dos cavaleiros que iam defrontar-se desfilou sob as aclamações da multidão. Não traziam os habituais arreios de guerra, antes armas douradas, escudos redondos e elmos fantásticos, ornamentados com quimeras, dragões, elmos à maneira grega, como se imagina que usaria Alexandre o Grande, ornamentados com folhas de louro, ou cinzelagens complicadas. Cascatas de plumas de cores diferentes caíam das cimeiras... As meias couraças eram à moda antiga.
Sob a sua, que era de prata e ouro, Giuliano trazia uma túnica de veludo vermelha e branca constelada de pérolas e sobre o seu escudo de ouro a Gorgona cinzelada arvorava na fronte o Libro, o maior dos diamantes dos Médícis. O jovem brilhava de juventude e alegria. Trazia, apoiado na coxa, um grande estandarte, de significado tão obscuro que escapava à maioria dos espectadores, mas que custara muito trabalho a Sandro Botticelli.
Era um pendão em tafetá de Alexandria, franjado a ouro a toda a volta, que no topo tinha um sol e no meio a figura de Palias, de borzeguins azuis e túnica dourada sobre um vestido branco, que se parecia bastante com Simonetta. Aquela figura pousava os pés em cima de umas chamas que queimavam os ramos de uma oliveira, enquanto que no alto outros ramos estavam intactos. Tinha na cabeça um elmo polido, à moda antiga e os cabelos entrançados voavam ao vento. Na sua mão direita tinha uma lança e na esquerda o escudo de Medusa. Junto dela havia uma pradaria cheia de flores e um tronco de oliveira, ao qual o deus do amor estava atado com cornos de ouro. A seus pés, Eros tinha um arco, uma aljava e flechas quebradas. Por fim, num dos ramos da oliveira, algumas palavras estavam escritas em francês, em letras douradas: -La sanspar (eille)». A dita Palas olhava fixamente o Sol.
Aquele monumento provocou um grande efeito, mas, do seu lugar Fiora percebeu que o embaixador veneziano perguntava ao seu vizinho, um certo Augurelli de Rimini, o que significava aquilo. O outro limitou-se a encolher os ombros num gesto de ignorância. A explicação veio quando Poliziano do alto da tribuna, começou a leitura de um longo poema de sua autoria, que era suposto cantar um sonho de Giuliano, isso enquanto os cavaleiros evoluíam graciosamente, «para mostrarem a sua habilidade e a beleza das suas montadas:
Parece-lhe ver a sua dama, cruel,
de rosto severo e arrogante,
atar Cupido à coluneta verde do ditoso arbusto de Minerva,
de armadura sobre o vestido branco e protegendo o casto seio com a Gorgone
e parece-lhe que ela lhe arranca as penas das asas
e quebra o arco e as setas do infeliz.
Mas, no seu sonho, Giuliano promete a Palas transportar as suas cores na liça e assim termina o poema que foi muito aplaudido, talvez com algum alívio. Pela sua parte, Fiora, para se distrair, observava o estrangeiro que tanto a tinha intrigado, mas tinha de desviar o olhar com frequência, porque, a maior parte das vezes, os seus olhos e os do borgonhês encontravam-se, o que lhe provocava uma bizarra impressão de constrangimento, misturada com um prazer secreto.
O espectáculo das justas acabou por atrair a atenção de todos, mas aquilo foi mais um bailado bem ensaiado do que um verdadeiro combate. Os golpes eram corteses e o jovem Médicis venceu sem grande dificuldade quase todos os seus adversários. Apenas dois lhe deram trabalho.
O primeiro foi Luca Tornabuoni, na cimeira do qual estava atado o pequeno lenço branco e dourado de Fiora e que se atirou com vontade ao mais jovem dos Médicis. Mas não conseguiu. Tal como os outros, caiu do cavalo e Fiora sentiu-se um pouco irritada: não tinha dado o seu penhor àquele imbecil para ele o arrastar pela poeira...
O segundo não era esperado. Quando Giuliano ia ser proclamado vencedor, um cavaleiro, cuja armadura normal contrastava com os brilhantes equipamentos dos outros, apresentou-se e foi bater com a lança no escudo de Giuliano. Um homem novo, feio, atarracado, de cabelos negros e pele morena. Ao vê-lo, Lourenço franziu as sobrancelhas.
- Chegas muito tarde, Francesco Pazzi. Por que não deste a conhecer mais cedo o teu desejo de tomar parte na giostra
- Porque não me apetece disfarçar-me. Apresento-me na minha hora, a menos que este torneio não seja aberto a todos?
- Por que não haveria de o ser? E se desejas medir-te com o meu irmão...
- Com ele ou com outro qualquer, não tem importância! O que eu quero é receber a coroa e beijar a mão e os lábios da bela Simonetta. A menos que os favores sejam exclusivamente reservados ao teu irmão?
- Se os queres, vem buscá-los - rugiu Giuliano, furioso. - Mas não os terás com facilidade...
- É o que vamos ver!
O combate travado entre ambos não tinha nada de cortês. Pazzi batia-se com irritação e Giuliano com raiva, provocando uma troca de golpes que atraiu os aplausos do público. Pela sua parte, Fiora ficou satisfeita com aquela luta sem concessões, que apagou, por fim, o meio sorriso irónico de Philippe de Selongey. Até ali, aquele estrangeiro parecera considerar a soberba giostra uma brincadeira de crianças.
Por fim, Pazzi mordeu o pó e retirou-se sob os apupos da multidão, aos quais Fiora se associou de boa vontade. O vencido era o cunhado de Hieronyma, sua prima detestada e ela acabara por detestar, também, os Pazzi em geral. Além disso, estes escondiam com dificuldade a sua animosidade para com os Médícis e dizia-se que Francesco tentara, certo dia, obter à força os favores de Simonetta. Vê-lo vencido era bom e Fiora quase esqueceu alguma pena que sentiu quando chegou o momento que todos esperavam, o clímax do espectáculo, que era a coroação do vencedor pela rainha do torneio.
Giuliano ajoelhou-se diante de Simonetta, que lhe colocou na cabeça uma coroa de violetas, antes de lhe dar um beijo um pouco mais longo, talvez, do que o exigiam as circunstâncias. Ao ver aquilo, a multidão ovacionou-o, os homens gritaram, as mulheres choraram de comoção, os gorros voaram pelo ar e o entusiasmo atingiu o cúmulo quando um jovem saltou da tribuna e se foi colocar junto do trono da rainha. Era um rapaz magro, de rosto ossudo e cabelos louros indisciplinados, que pareciam de palha. Os seus olhos claros, mas severos, poderiam pertencer a um monge, ou a um profeta.
- Minha irmã - disse ele calmamente - não te parece que o teu lugar é em casa, junto do teu marido e não aqui, onde ele não está?
- Meu Deus! - sussurrou Fiora encantada - eis o nosso Amerigo, que desce das suas estrelas...
- para se ocupar da de Génova - acrescentou Chiara, para quem o menor incidente era motivo de encanto. - Será que nem tudo vai bem entre os Vespucci, para que o iluminado da família se intrometa?
Mas já o Magnífico interpelava o perturbador:
- Retira-te, Amerigo Vespucci! Simonetta reina em Florença pela sua beleza e os seus deviam estar orgulhosos. Se Marco, o seu esposo, não a quis acompanhar, lamentamos, mas não podemos fazer nada.
- Ele sabe que não seria bem-vindo! Retiro-me porque mo ordenas, mas quis que soubesses que a família não aprova...
Um homem aproximou-se, puxou-o pela manga e Fiora reconheceu o seu pintor. Sandro Botticelli e o jovem Vespucci eram amigos, sendo a casa de um e o palácio do outro vizinhos no bairro de Ognissanti. Entretanto, Fiora e Chiara preparavam-se para tomar o partido de Amerigo. O pai de uma e o tio de outra fizeram-nas acalmarem-se.
- Devias saber que esta gente perde a cabeça quando se lhes toca no ídolo - disse Albizzi descontente. - Quanto aos Médicis, sabes muito bem que são rancorosos e eu não quero ser exilado como o meu pai.
Francesco, esse, limitou-se a sorrir para a sua filha e a obrigá-la a sentar-se, porque o espectáculo ainda não tinha terminado. A jovem sentou-se e, maquinalmente, olhou para o enviado borgonhês, mas virou a cabeça de imediato, corada até à raiz dos cabelos: não apenas o insolente se permitira sorrir-lhe, como, com a ponta dos dedos, lhe enviara um beijo...
Ao mesmo tempo que os cavaleiros mais ou menos magoados e sujos regressavam às tendas que os esperavam, em boa ordem, o Magnífico mandava comparecer perante o trono de Simonetta, para o felicitar, o homem que montara o faustoso espectáculo, desenhara os fatos e pintara o cenário: Andréa di Cioni, chamado Verrochio. Esse homem era, então, o pintor e escultor mais célebre de Florença e os alunos enchiam o seu atelier, de onde saíra Botticelli.
O artista apareceu sob os aplausos da multidão e, não fora as suas roupas elegantes, poder-se-ia tomá-lo, sem dificuldade, por um camponês, com a sua estatura baixa e entroncada, a grande cabeça redonda coberta de cabelos negros e frisados. Junto dele caminhava o seu aluno preferido, que o ajudara na preparação da festa e esse, grande, delgado e louro, atraía os olhares de todos, porque tinha a beleza impassível de uma estátua grega. Era Hermes, de regresso à terra. E enquanto Verrochio agradecia, confundido, o deus grego recebia as felicitações do senhor com uma saudação, um sorriso e nenhuma palavra.
- Meu tio - declarou Chiara - se aquele jovem é pintor, devias pedir-lhe para me pintar o retrato. Gostava de posar para ele...
- Menina tola! Pede isso ao teu marido, quando tiveres um. Aliás, nem sequer sei o nome dele...
- Se o problema é esse - disse Beltrami - posso informar-te. É o filho de um notário das redondezas, com o qual tive, recentemente, um assunto a tratar. Chama-se Leonardo... Leonardo da Vinci e Verrochio estima-o muito. É um rapaz estranho, mas de muito talento...
- Leonardo? Não gosto muito desse nome. Faz-me lembrar a tua governanta - disse Chiara com um sorriso trocista.
Fiora encolheu os ombros.
- É apenas um nome! Ainda por cima porque aquele jovem é demasiado belo para evocar dame Léonarde...
A noite aproximava-se rapidamente. De repente, como por artes da varinha de um mágico, a praça iluminou-se com a chama de centenas de archotes. As trombetas lançaram para o céu sombrio o seu apelo triunfal e o cortejo da rainha voltou a formar-se. Lourenço ofereceu a sua mão a Simonetta para a ajudar a descer do trono. À luz trémula dos archotes, a jovem brilhava como uma estrela...
- Meus amigos - lançou o Magnífico com a sua voz rouca - as damas reclamam, agora, o nosso serviço. Vamos dançar!
Logo a seguir, os convidados abandonaram os seus lugares. Fiora viu, então, que o estrangeiro continuava a contemplá-la.
CAPÍTULO II
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