E isso não é... um crime?

Do alto da sua estatura, o grego olhou para a jovem cujos admiráveis olhos cinzentos se erguiam para ele carregados de incerteza, mesmo de medo. Nunca estivera tão bela. Simplesmente vestida de fina tela branca bordada com pequenas flores por causa do calor e com os cabelos erguidos, fazendo uma grande trança que deslizava ao longo do ombro, era a própria imagem da Primavera. O seu rosto, cuja palidez um pouco rosada ela protegia com a ajuda de um guarda-sol de seda, tinha a delicadeza de uma camélia e o seu longo pescoço uma graça infinita. Através do repouso, dos cuidados e da paixão atenta de Lourenço, o corpo esbelto e nervoso parecia ter-se polido, adoçado, e exalava aquela sensualidade involuntária que, juntamente com uma beleza excepcional, é própria daquelas raras mulheres capazes de mudar a face de um reino. E Demétrios pensou que o Magnífico, com quem tantas belas criaturas sonhavam, teria, talvez, alguma dificuldade em esquecê-la. Mais tarde, aliás, teria essa confirmação no decurso das suas numerosas conversas com Lourenço.

Possuir Fiora é possuir toda a beleza do mundo. Os antigos Gregos teriam feito dela uma estátua divina, mas é preciso tê-la tido nos braços para perceber o brilho doce que ela atinge no amor e nenhuma mulher me deu o que recebi dela...

O silêncio do seu amigo inquietou a jovem:

Então? Não respondes? Não é um crime contra a natureza expulsar uma criança do nosso corpo?

Sim. É um crime, mas aquele que, por ciúme, te matasse, cometeria um ainda maior... e destroçar-me-ia o coração. Portanto, guarda para ti o que o teu marido não precisa de saber.

De regresso ao terraço delimitado pelos muros da villa, Demétrios e Fiora encontraram Carlo muito ocupado a instalar umas colmeias com a ajuda do jardineiro. O jovem gostava de abelhas e interessava-se desde sempre pela sua vida e criação. Gostava de repetir que as de Trespiano davam um mel sem rival em toda a Toscânia. Vestido com um bibe de tela, de socos, com as mangas arregaçadas, os cabelos em desordem e o rosto corado, terminava a quarta colmeia destinada às abelhas e parecia totalmente feliz.

Nenhuma força humana teria conseguido convencê-lo a tomar parte no pequeno-almoço que Fiora oferecera aos amigos Commynes e Mortimer:

A mim, chega-me o que o escocês pensa de mim dissera ele a Fiora à guisa de desculpa. Não quero que o embaixador me veja junto de ti. Sentir-me-ia... muito infeliz.

Porquê? O nosso casamento é nulo, já o sabeis, mas nós continuamos unidos por uma verdadeira afeição. Eu nunca tive um irmão, Carlo, tendes de aceitar esse papel!

Que fiz eu, meu Deus, para merecer tanta alegria? Nenhuma mulher terá tido um irmão tão ternamente dedicado. Mas não me peçais para comparecer a essa refeição.

Ao ver aproximarem-se os passeantes, ele afastou com o braço as mechas húmidas de cabelo que se lhe colavam à testa e fez-lhes um sinal jovial. Desde que reencontrara a vida campestre, Carlo parecia menos enfezado e o seu longo rosto pálido retomava, pouco a pouco, as cores da saúde.

Tu não podes levá-lo para França, pois não? murmurou o grego.

No entanto, seria a melhor solução. Não esqueças que as pessoas pensam que ele está morto...

Ninguém virá aqui procurá-lo enquanto Lourenço e eu formos vivos. Lá em baixo, estaria como um peixe fora de água. Só a natureza deste sítio lhe pode dar as alegrias simples de que ele necessita. Além disso, ele possui uma grande sede de cultura e eu creio ser capaz de saciar, em parte, essa sede.

Por outras palavras, entre ele e eu, escolheste-o a ele? concluiu Fiora, sorrindo. Fico cheia de ciúmes.

Se assim fosse, sentir-me-ia imensamente lisonjeado. Mas, a sério, é melhor que nós, ele, Esteban e eu, fiquemos aqui. Mesmo por ti, porque, vê lá tu, ninguém pode dizer nem mesmo tu o que te espera em França. Talvez a felicidade, o que eu desejo de todo o meu coração, mas também outras provações, porque os tempos que vivemos são sem piedade. É bom que saibas que tens aqui a tua casa e os seus guardiães: uma espécie de família sempre pronta a acolher-te... E agora vamos ver como vai o trabalho de Carlo!

Subitamente, vindo da cidade tão tranquila no instante precedente, ouviu-se o som frenético da Vacca, o grande sino das horas difíceis, de imediato imitado pelos campanários de todas as igrejas. Depois, ouviu-se aquela espécie de rugido abafado pela distância que Fiora e Demétrios nunca esqueceriam por o terem ouvido uma certa noite em que Florença se revoltara para conseguir a sua condenação à morte. A despeito do Sol doce e da graça da imensa paisagem estendida a seus pés, não puderam evitar, ambos, um arrepio. Passava-se qualquer coisa de grave, mas o quê?

Esquecendo Carlo, que, aliás, já não pensava neles, precipitaram-se para a velha torre, vestígio das antigas fortificações etruscas, no topo da qual o médico grego tinha instalado os instrumentos que lhe permitiam observar o céu. Mas, desta vez, foi para a cidade que ele dirigiu o seu grande óculo e, sobretudo, para as portas do sul para ver se, por acaso, não se aproximaria um exército de Florença, mas não viu nada de inquietante.

Teremos de esperar pelo regresso de Esteban suspirou Demétrios. Ele trar-nos-á notícias frescas.

Com efeito, o castelhano acompanhara os Franceses quando eles tinham regressado ao palácio dos Médicis, com o pretexto enganador de renovar a provisão de velas. Na realidade, queria ir ter com uma bela roupeira do bairro Santo Spirito que ele protegera durante os motins, num momento em que ela quase fora esmagada contra uma parede. Depois disso, os seus passos conduziam-no frequentemente a casa dessa encantadora Costenza, à qual parecia dedicar-se. O que preocupava um pouco Demétrios, persuadido de que o comércio de roupa branca não passava da hábil fachada de um outro, velho como o mundo e muito mais lucrativo.

Assim, os habitantes da villa Beltrami não ficaram surpreendidos por Esteban não ter regressado quando as trombetas soaram para o fecho das portas. Era evidente que preferira passar a noite em casa da amiga e Demétrios, encolhendo os ombros com aborrecimento, contentou-se em formular o desejo de que aquela escapadela não custasse demasiado cara ao seu fiel servidor.

E nós não saberemos nada senão amanhã lamentou Fiora. A paragem do toque do sino não a deixara tranquila, porque o rugido surdo continuava a ouvir-se vindo do vale, mais distinto até, agora que o som dos sinos não o cobria.

Fiora enganava-se. Por volta da meia-noite, quando todos se dispunham a recolher aos seus quartos, o galope de um cavalo abalou os ecos da noite antes de se deter diante da porta da villa. Fiora e Demétrios esperavam-no porque a jovem já sabia que o visitante não era outro senão Lourenço.

Quando ele se aproximou, Fiora, branca e luminosa sob o halo da sua lâmpada, reviu-o tal como na noite do assassínio de Giuliano: o gibão negro aberto até à cintura, os cabelos desgrenhados pelo vento da corrida, a fronte perlada de suor e cada um dos traços do rosto marcado pela poeira. Mas a expressão não era a mesma. Lourenço não ia em busca de refúgio, não esperava encontrar um momento de esquecimento entre dois braços macios. O seu ar era o de um homem determinado, que acaba, de tomar uma resolução.

Venho dizer-te adeus disse ele simplesmente. Já? Mas eu só parto dentro de alguns dias!

Eu sei, sou eu que me vou embora. E talvez seja prudente partir antes de ti.

Mas porquê? Não há pressa e Commynes...

Commynes parte amanhã para Roma. Eu acompanho-o.

Em algumas frases breves, Lourenço contou o que se passara e por que razão Florença se inflamara. Um arauto pontifício, ao cair da noite, trouxera a declaração de guerra de Sisto IV, acompanhada de uma carta endereçada aos priores, na qual o Papa declarava não ter qualquer agravo contra a Senhoria nem contra a cidade, unicamente contra Lourenço de Médicis, assassino e sacrílego. Se Florença expulsasse o tirano indigno, não seria atacada! A cidade recuperaria os favores do Santo Padre que, de futuro, lhe dedicaria uma afeição muito particular.

Então, propus entregar-me concluiu o Magnífico a fim de poupar a esta cidade, que me é muito querida, os horrores de uma guerra. Os priores recusaram a minha proposta, mas eu pedi-lhes que reflectissem até amanhã de manhã, que consultassem os seus bairros, as suas famílias e os mestres das diferentes artes.

Parece-me que já te responderam! disse Demétrios. Nós ouvimos o toque dos sinos e também o rumor...

Essa foi, com efeito, a sua primeira reacção e eu senti-me muito feliz. Entretanto, muitas coisas podem acontecer durante a noite, quando as trevas trazem consigo o silêncio... e o medo.

Tu não podes entregar-te! exclamou Fiora, indignada. Tu, nas mãos daquele Papa iníquo, que ousou mandar assassinar o teu irmão em plena missa do dia de Páscoa? Ele mata-te sem hesitar... e Commynes não poderá fazer nada.

Longe de mim colocá-lo numa posição falsa. A sua missão já é suficientemente difícil.

E tu achas que a tua morte será suficiente para acalmar o furor de Sisto? Ele próprio não fará nada, talvez, mas enviará o seu querido sobrinho e Riario depois de arrancar a Florença todo o seu ouro, depois de lhe tirar todo o seu sangue se ela não se rojar aos seus pés. É isso o que tu queres para a tua cidade? Achas que aquele miserável poupará os teus filhos, a tua mulher, a tua mãe e todos os teus parentes? És louco, Lourenço!

Não, Fiora. É a única coisa que posso fazer. Eu disse o que a minha consciência me ditou. Agora, cabe a Florença responder e decidir a sua sorte.

Aceitar a autoridade de Riario ou bater-se por ti? disse Demétrios. A mim parece-me que, se tivesse alguma influência, não hesitaria um só instante. Não precisaria de noite nenhuma...

Mas eles precisam! murmurou Fiora. Que descaramento!

Não, porque o que está em jogo é muito grave. Se eu não me entregar, a cidade sofrerá a interdição.

E depois? Se a Senhoria rejeitar o Papa, como ele merece, que lhe importam as suas decisões? Commynes não te informou sobre os projectos do Rei de França?

O concílio? Sim, eu sei... mas é preciso tempo para reunir um concílio. Aguentar-nos-emos até lá?

Não há ouro suficiente para contratar condottieri? Florença não tem armas, não tem muralhas, não tem outra força senão a dos seus comerciantes? Ela bater-se-á, ou deixará de ser Florença!

O ardor apaixonado de Fiora fez sorrir Lourenço que, num gesto de ternura, a puxou para si:

Tu falas como a minha mãe disse ele, pousando-lhe na fronte um beijo suave mas...

E como todas as mulheres da cidade, espero?

Quem sabe? Mas tu, tu és bem uma das nossas e isso torna ainda mais penosa a ideia da nossa separação... É difícil dizer-te adeus, Fiora...

Por um momento, permaneceram ambos face a face, presos apenas pelo olhar.

Também é difícil dizer-te adeus, Lourenço... Se bem que nunca se deve dizer adeus...

O barulho suave dos pés de Demétrios, recuando na direcção da casa, não quebrou o sortilégio que os mantinha cativos, nem o barulho surdo da porta ao fechar-se. O grego levara consigo a lâmpada de óleo e o casal ficou só na escuridão da noite, no meio de um mundo adormecido que os envolvia com os seus sussurros, a sua brisa doce e os seus aromas. Fiora estendeu a mão e tocou no ombro de Lourenço:

Só há uma maneira de nos separarmos, se queremos suavizar a amargura que sentimos sussurrou ela. É unírmo-nos uma última vez...

Ela sentiu-o estremecer, mas ele deu um passo à retaguarda:

Eu não te vim pedir caridade grunhiu ele. Tu já não és uma mulher livre...

Eu sei...

Algures, no norte, está um homem que te ama... e que tu amas.

Eu sei.

Se te entregares a mim, agora, serás culpada de adultério, tal como eu.

Também sei isso, mas, tal como na primeira noite, ofereço-me a ti porque quero. Se calhar, nunca mais te vejo, Lourenço, por isso esta noite só pode ser tua. Se o desejas, evidentemente...

Ainda perguntas?

Lourenço pegou-lhe na mão, virou-a para lhe beijar a palma e depois, sem a largar, conduziu Fiora através do jardim até à gruta dos seus amores. A luz que vinha das estrelas e que dava ao céu um tom azul-leitoso iluminou o seu caminho através do dédalo das alamedas e curtas escadarias que ligavam os terraços. Diante da soleira do seu refúgio detiveram-se e, num único movimento, abraçaram-se sob um enorme tufo de jasmim que fazia cair sobre eles o seu perfume e as suas pequenas flores brancas.

O céu está tão belo, esta noite! murmurou Lourenço contra a boca de Fiora. Só o quero a ele por cima de nós...