Porque Florença merece ser destruída. Ousar enforcar o arcebispo de Pisa, ousar reter como refém o nosso cardeal-legado de Perúsia...
Monsenhor de Médicis não reteve o cardeal Riario como refém: pelo contrário, ofereceu-lhe o asilo do seu palácio para lhe evitar o destino do arcebispo Salviati. Florença é uma cidade piedosa e fiel a Vossa Santidade, mas não pode aceitar que em plena missa de Páscoa, no instante sagrado da Elevação, lhe assassinem os príncipes. O Rei de França não apreciou nada o... direi o incidente de Santa Maria del Fiore. E não é o único na Europa.
Nós não temos questão nenhuma com ele!
A sério? Que Vossa Santidade reflicta! O Rei não alimenta qualquer intenção hostil para com o papado. Mais, encarregou-me de oferecer a sua ajuda para combater o Turco, uma ajuda a não desprezar. Mas se Vossa Santidade se obstina em querer destruir Florença... ou a oferecê-la pela violência ao Seu sobrinho, o conde Girolamo Riario, essa ajuda irá para Florença. Que Vossa Santidade queira, por outro lado, recordar-se dos direitos familiares que a França conserva sobre o reino de Nápoles, usurpado por Afonso de Aragão. Se o Rei decidisse lembrar-se desse pequeno Estado e desejasse reconquistá-lo, Roma poderia ver-se numa posição enganadora. Por fim, suplico a Vossa Santidade que tome em consideração as suas... finanças.
As nossas finanças? Que significa isso?
Que neste mesmo dia de hoje o Rei, meu senhor, deverá ter publicado uma ordem interditando as gentes da Igreja de se deslocarem a Roma... ou de enviar para cá seja que dinheiro for, sob pena de pesadas multas.
Que dizeis?
A surpresa de Vossa Santidade espanta-me. Ela não deve ignorar que o Rei, que achou por bem abolir a Pragmática Sanção de Burges, está a pensar, muito seriamente, restabelecê-la. Essa ordem é apenas o começo.
E vós ousais vir dizer-Nos isso, cara a cara?
A quem mais poderia dizê-lo? Santo Padre, o meu Rei, o Rei ”Mui cristão”, não usurpou esse título a ninguém. Mais piedoso do que ele, mais devotado aos interesses de Deus e da sua mui Santa Mãe, não se pode encontrar. A sua preocupação está cheia de devoção filial e do desejo profundo de ver brilhar o trono de Pedro, tal como no tempo de Inocêncio, sobre todos aqueles que amam e servem a Cristo. A ameaça turca é real, urgente, e antes de responder por meio do anátema seria conveniente examiná-la com espírito frio e lúcido.
Como o do Rei de França?
Exactamente, porque Luís é soberano antes de ser homem, pai, ou o que quer que seja, e a glória de Deus é-lhe mais querida do que a sua.
Pensando não ter nada a acrescentar, o embaixador dobrou o joelho uma vez mais e, como o exigia o uso, que proibia que se virasse as costas ao Papa, começou a recuar na direcção da porta. Em vez de o acompanhar, o cardeal d’Estouteville tomou o seu lugar junto do trono sem parecer aperceber-se da tempestade próxima que se acumulava sob as augustas pálpebras:
Tendes mais alguma coisa a acrescentar? perguntou o pontífice.
Com efeito, e peço desculpa, mas Vossa Santidade é demasiado amiga da justiça e demasiado preocupada com o bem-estar dos Cristãos para que eu não a informe de um facto, mínimo, sem dúvida, mas ao qual eu A acho susceptível de dar um preço.
Que facto é esse?
Trata-se de... donna Fiora Beltrami, que Vossa Santidade, na maior das boas-fés, casou, há coisa de três meses, com o jovem Carlo del Pazzi.
O rosto sanguíneo de Sisto IV, mais uma vez, ficou da cor de um tijolo:
Isso é um assunto de que Nós não gostamos de falar e vós devíeis sabê-lo, Nosso irmão em Jesus Cristo. Essa mulher respondeu com a mais negra das ingratidões e com uma fuga vergonhosa às indulgências com que Nós a queríamos cumular, primeiro por piedade e depois porque ela Nos parecia digna da Nossa benevolência. Que temos mais a reprovar-lhe?
Nada, Muito Santo Padre, absolutamente nada... mas seria sensato dar a saber à Chancelaria do Estado que ela deverá anular o casamento e até... apagá-lo completamente dos seus registos.
Apagá-lo? E porquê? Um casamento que Nós mesmos celebrámos na nossa capela privada... e na vossa presença, cardeal? Se existia um impedimento a essa união, por que não a destes a saber então, como exige o ritual de uma cerimónia nupcial?
Estava na ignorância, Muito Santo Padre e Vossa Santidade teria rejeitado com horror a ideia de celebrar uma tal união se...
Se o quê? Parai de Nos fazerdes andar às voltas, por todos os santos do Paraíso!
Se soubesse que essa jovem não era viúva, como nós pensávamos... e como ela própria também pensava.
O quê?
Commynes encarregou-se de assestar o último golpe com um júbilo interior que necessitou, para não ser demasiado evidente, de todos os recursos da sua diplomacia:
Nada mais verdadeiro, Mui Santo Padre. O conde Philippe de Selongey, condenado à morte, subiu, com efeito, ao cadafalso de Dijon... mas voltou a descer são e salvo, porque as ordens do Rei eram para só lhe darem a conhecer a sua graça no instante supremo.
Seguiu-se um silêncio pesado, perturbado apenas pelos pios das aves que ocupavam, na sala vizinha, um grande viveiro dourado. O Papa lançou um profundo suspiro-.
E... ela? Onde está ela neste momento?
Segundo o que consegui saber, vai a caminho de França, Mui Santo Padre...
E Commynes, com uma última e profunda reverência, abandonou a sala do Papagaio.
Segunda parte
CAMINHOS SEM SAÍDA
CAPITULO IV
CONVERSAR À SOMBRA DE UMA CEREJEIRA
O fim do dia aproximava-se, algumas semanas mais tarde, quando Douglas Mortimer deixou Fiora e Khatoun à entrada do velho caminho sombreado de carvalhos veneráveis que ia dar à Casa das Pervincas.
Eis-vos chegada a bom porto! disse ele, saudando-a. E não precisais de testemunhas para encontrar os vossos...
Podíeis entrar para vos refrescardes? A etapa foi longa e o dia quente.
Encontrarei tudo isso em Plessis. Amanhã, com a vossa permissão, virei visitar-vos, saudar a dama Léonarde e ver se o vosso filho cresceu muito.
O coração de Fiora batia mais depressa do que o costume enquanto o passo do seu cavalo a levava pelo caminho por entre as ervas daninhas dos seus taludes. O seu filho, na sua memória, não era mais do que um pequeno embrulho esperneando nos seus braços, infinitamente doce e eis que se aproximava do seu primeiro ano de vida sem que a sua mãe soubesse nada dele. A jovem não recebera os seus primeiros sorrisos e, quando ele sofrera de um qualquer mal, não fora ela que se debruçara sobre o seu berço e perdera as noites junto dele. Muito certamente, vê-la-ia como uma estranha e, no momento de abordar esse universo, Fiora não podia deixar de sentir alguma apreensão.
Quando saíram da cobertura das árvores e a casa apareceu, rosa e branca no seu ninho de verdura, Khatoun bateu palmas, encantada com o espectáculo. O jardim era um autêntico ramo de flores e as pervincas, ao assalto do terraço, transbordavam do pequeno bosque e espalhavam-se como um tapete real. Ao fundo, o Loire brilhava, reflectindo os raios vermelhos do Sol sumptuoso que parecia encher de chamas os edifícios claros do priorado de Saint-Côme. O ar cheirava a flores, a pinheiro, a erva recentemente cortada e um pouco a lodo vindo do rio.
Como é belo! suspirou Khatoun. Mas... não está ninguém?
Uma voz, que se parecia alegremente com um rondo antigo, brotou das profundezas do jardim e aproximou-se. Por fim, um jovem desembocou de um arbusto de aristolóquias, transportando aos ombros uma criança que ria agarrada aos seus cabelos cor de palha. Uma das montadas das jovens relinchou, o que fez com que ele virasse a cabeça. O jovem estacou, enquanto os seus olhos azuis se esbugalhavam. Ao mesmo tempo, com um gesto maquinal, retirou a criança dos ombros e instalou-a no braço.
Então, Florent? perguntou Fiora, sorrindo. Já não me reconheceis?
A primeira surpresa passou e, subitamente, as pupilas do jovem iluminaram-se, ao mesmo tempo que um verdadeiro urro de alegria se escapava da sua garganta:
Dama Léonarde! Péronnelle! Étienne!... Depressa! Venham depressa! Venham todos! A nossa dama regressou!
E como ninguém, aparentemente, o ouvisse, atirou com a criança para os braços de Fiora e desatou a correr na direcção da casa gritando a plenos pulmões:
A nossa dama regressou! A nossa dama regressou! Aquela brusca mudança não foi do agrado do jovem Philippe,
que protestou energicamente. A sua pequena boca redonda abriu-se enormemente para um ”Uinn.. in., in...!” vigoroso, que terminou num dilúvio de lágrimas!
Meu Deus! gemeu Fiora meti-lhe medo! Desolada, a jovem não ousava apertá-lo contra si e cobrir de beijos os pequenos caracóis castanhos e sedosos que lhe cobriam a cabeça, como morria de desejo.
Mas não, ele não tem medo de ti disse Khatoun. Foi aquele rapaz imbecil que o agitou demasiado. Espera!
A jovem pôs-se a agitar as mãos e a fazer caretas, coisa que pareceu espantar a criança. Esta parou de chorar e depois, quase sem transição, desatou a rir.
Estás a ver? Acabou o desgosto, em breve vai compreender que és a sua mamã.
O pequeno olhava agora para aqueles dois rostos tão diferentes que lhe sorriam. Fiora aconchegou-o ternamente nos braços e começou a embalá-lo suavemente:
Meu bebé!... meu bebezinho! Como tu és belo!
Com os lábios, ela tentou apanhar em voo as duas mãozinhas que se agitavam diante do seu rosto, procurando apanhar um canto do véu branco ou uma mecha de cabelos. Finalmente, Philippe escolheu o nariz da mãe e puxou-o com decisão.
Mas, ele já é tão forte! exclamou ela, rindo e chorando ao mesmo tempo... Oh, Khatoun, como pude ficar tanto tempo longe dele?
A jovem tártara não teve tempo de dar uma resposta a uma pergunta que, aliás, não a pedia: qual bando de pardais, os habitantes da casa corriam ao seu encontro. As pernas de Léonarde não valiam as dos seus companheiros, mas ninguém se atrevia a ultrapassá-la naquela corrida de boas-vindas. Pelo contrário, Florent e Marcelline, a ama da criança, apoiavam-na e foi ela que, em primeiro lugar, caiu nos braços de Fiora, precipitadamente desembaraçada do seu filho por uma Khatoun que só esperava aquilo, encantada por conhecer, finalmente, o ”bebé Philippe”.
Durante uns momentos foi tudo abraços, saudações, apertos de mão, exclamações de alegria e desejos de boas-vindas. Léonarde que, qual cornetim numa batalha, chorava como uma fonte enquanto apertava contra o coração o ”seu cordeirinho”, abraçou Khatoun quase tão calorosamente, o que surpreendeu a rapariga, pouco habituada a tais demonstrações vindas daquela ”donna Léonarda” que ela sempre achara um pouco severa de mais.
Deus permitiu que vos reencontrásseis declarou Léonarde que o Seu nome seja abençoado e que esta casa, onde vais viver doravante, te seja doce! São os belos dias de antigamente que regressam contigo!
E voltou a abraçá-la para melhor mostrar a alegria que sentia por voltar a vê-la. Étienne Lê Puellier e a sua mulher Péronnelle, respectivamente intendente e cozinheira do pequeno domínio, tinham, também, lágrimas nos olhos por reverem uma jovem patroa por quem sentiam uma amizade próxima da afeição. Quanto ao jovem Florent, ex-aprendiz de banqueiro nos estabelecimentos de Agnolo Nardi, em Paris, e agora jardineiro e braço direito de Étienne, contemplava Fiora de mãos unidas e olhar maravilhado, sem procurar enxugar as abundantes lágrimas que lhe corriam pelo bibe de tela azul: os seus sentimentos por Fiora não eram segredo para ninguém e dar com ele em êxtase não tinha nada de surpreendente.
Apenas Marcelline, a ama, que não tivera tempo de conhecer a mãe do seu filho de leite, mostrou alguma moderação e declarou que se sentia feliz por a ”Senhora Condessa” estar de regresso, mas apressou-se a tirar o pequeno Philippe dos braços de Khatoun, esforçando-se por fulminá-la com o olhar. Ao ver os cantos dos lábios da sua antiga escrava curvarem-se de decepção, Fiora compreendeu que iria ter dificuldades por aquele lado e, para pôr toda a gente de acordo, exclamou:
Deixai-o um pouco comigo, Marcelline! Há meses que não o vejo...
É que ele é muito pesado, Senhora Condessa! E depois de uma viagem tão longa...
Ainda sou capaz de suportar esse fardo disse ela com bom humor. Há tanto tempo que sonho com isto!
E, segurando orgulhosamente o seu filho nos braços, pôs-se a caminho de casa, para onde já tinha desaparecido Péronnelle, gritando que ia preparar o melhor jantar da terra. Léonarde e Khatoun enquadravam Fiora, seguidos por Étienne e Florent com os cavalos pela brida, que conduziriam à cavalariça depois de os terem desembaraçado das bagagens e dos arreios. Marcelline resolveu juntar-se a Péronnelle para a ajudar nas tarefas da cozinha.
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