De braço dado, as duas jovens amigas saíram da igreja com Colomba nos seus calcanhares. Fiora procurou Esteban com os olhos, que fora fazer umas compras no bairro e que deveria regressar para a esperar. Não o vendo, pensou, com um pouco de aborrecimento, que devia ter ficado numa das suas amadas tabernas. Não devia estar longe, porque as duas mulas continuavam presas no telheiro onde ele as tinha abrigado. Fiora não queria ir à procura dele, mas era preciso dar-lhe a saber que ia para casa dos Albizzi em vez de regressar a Fiesole.
A chuva cessara, mas as nuvens que sobrevoavam a rua estreita prometiam outro aguaceiro e seria uma pena não aproveitar aquela aberta:
Talvez possamos dizer uma palavra aos rapazes que trabalham aqui? segredou Colomba, apontando para uma casa situada em frente do adro da igreja e onde se viam, por uma janela aberta, as cabeças dos empregados inclinadas sobre os grandes registos. Era o palácio em forma de torre, sede da Arte della Lana a arte da lã cujo prior, messer Buonaccòrsi, era amigo dos Albizzi.
As duas jovens iam, em consequência, subir os degraus que iam dar à porta encimada pelas armas da corporação, quando viram chegar Esteban. O servo vinha dos entrepostos de tinturaria, que eram junto d’Or San Michele. Uma ruela, pouco mais larga do que uma passagem estreita separava ambos, escavada ao meio por um ribeiro por onde corriam os restos dos banhos de cor das meadas de lã penduradas de travessas e dentro de uma espécie de jaulas providas de tecto. O ribeiro era de uma cor violeta, encarnada ou azul-escura, segundo os girassóis, a ruiva-dos-tintureiros ou o pastel-dos-tintureiros utilizados pelos operários. Naquele dia era de um vermelho-profundo de rubi quando o castelhano o atravessou de um salto para se reunir às duas damas.
Perdoai-me! disse ele e o seu rosto perturbado estava branco como a cal. Fiz-vos esperar e sinto-me desolado.
Que se passa, Esteban? perguntou Fiora. Sentis-vos mal?
Não... não, mas acabo de ver uma coisa tão terrível que voltei atrás para ver melhor. Ouvis estes gritos?
Com efeito, chegavam por cima dos telhados, e ao longo das ruas, clamores, indistintos mas ferozes: ódio e uma alegria selvagem, transformados em risos dementes. As três mulheres persignaram-se.
Dir-se-ia que o tumulto vem da Senhoria! disse Chiara. Terão encontrado mais gente para enforcar?
Não. Encontraram melhor do que isso!
E Esteban contou como um bando de homens e de mulheres, chegado do campo na sua maior parte, acabava de violar, na igreja da Santa Croce, o túmulo de Jacopo Pazzi, tirando de lá o corpo do ancião que se dizia ter blasfemado, antes de ser enforcado, e ter vendido a alma ao diabo. Aquela gente considerava um sacrilégio terem confiado à terra cristã os despojos de um apoiante de Satanás e atribuía a isso as violentas intempéries que tinham desabado sobre a região de Florença.
Que vão eles fazer? murmurou Fiora com repugnância.
Não sei. Para já, arrastam aqueles despojos horríveis e malcheirosos pelas ruas e vão levá-los perante os priores. Por isso, se me perdoais que vos apresse, penso que é melhor regressar a casa.
Ide sem mim! Eu fico para passar alguns dias em casa de dona Chiara, no palácio Albizzi. Dizei a Demétrios que não se preocupe e, se não vos importardes de voltar aqui amanhã, dizei também a Samia que me prepare alguma roupa.
O sorriso de Esteban foi um sinal de aprovação para a sua escapadela:
Far-vos-á bem estar algum tempo com outras mulheres declarou ele. Mas, no entanto, vou escoltar-vos até ao palácio Albizzi. Ficarei mais tranquilo.
Oh! Vede! exclamou Colomba, apontando um dedo trémulo de excitação para o céu. O Sol! O Sol regressa!
Com efeito, as nuvens acabavam de se afastar, como que rasgadas por um brusco golpe de vento e um raio luminoso acendeu rutilâncias no fundo do ribeiro dos tintureiros. Na Senhoria ouviu-se um imenso grito de triunfo, saudando aquela aparição inesperada.
Eles vão receber este raio como um sinal dos céus e como um encorajamento grunhiu o castelhano. Até que decidam desenterrar outros, vai um passo...
Quando, a caminho da casa de Chiara, chegaram ao Borgo degli Albizzi, cujo mais belo ornamento fora o palácio Pazzi, Fiora não pôde evitar um movimento de piedade. O magnífico edifício, começado nos meados do século por Brunelleschi e terminado por Giuliano da Maiano, sofrera cruelmente a ira popular. As janelas tinham perdido as vidraças. Por cima da porta esventrada tinham martelado as armas da família e subsistiam, por toda a parte, vestígios do incêndio que devastara o interior. No grande pátio quadrado os destroços amontoavam-se, restos sem interesse de objectos antes preciosos, destruídos por falta de conhecimento. Não passava de uma concha vazia, as viúvas e as crianças tinham fugido, em busca de refúgio, para o campo ou para uma caridosa casa qualquer.
Não te comovas! disse Chiara, que seguira o pensamento da sua amiga. Esta gente destruiu o teu próprio palácio, hoje bem mais arruinado do que este. Além disso, as mulheres deles não serão perseguidas, como tu. Com excepção... pelo menos assim espero, da infernal Hieronyma, que as pessoas dizem ter regressado.
Essa está morta disse Fiora. Apunhalada em casa de Marino Betti por um dos meus amigos quando tentava estrangular-me.
Olha, não sabia! exclamou Colomba, que continuava a ser a comadre mais bem informada de Florença. Por que é que não se fala disso nos mercados?
Porque monsenhor Lourenço assim o quis respondeu Fiora. De acordo com as suas ordens, Savaglio e mais alguns dos seus homens fizeram desabar a casa sobre o seu cadáver, que não terá qualquer outra sepultura. Permanecerá pregado ao chão pelo punhal que a atravessou e que o seu possuidor recusou retirar. Parece que foi colocado um letreiro sobre os escombros.
E que diz ele, esse letreiro? perguntou Colomba, extremamente interessada.
”Aqui foi aplicada a justiça de Florença. Passante, afasta-te!”
É quase demasiado belo para aquela criatura abominável observou Chiara. Em seguida, à guisa de oração fúnebre, concluiu com satisfação: De qualquer maneira, é bom que esteja morta.
Mais do que imaginas! disse a sua amiga.
Ver-se de novo em casa dos Albizzi, naquele quadro familiar onde só conhecera bons momentos, deu a Fiora a impressão deliciosa de que o tempo parara e que o passado regressara. Nada mudara, os objectos continuavam no mesmo sítio e o odor da cera virgem e da resina de pinheiro era o mesmo que respirara em tempos. As compotas, obra de arte de Colomba, que lhe ofereceram à entrada, continuavam deliciosas. Até o tio de Chiara, o velho serLodovico, continuava o mesmo, não envelhecera. De regresso para a refeição da noite, beijou Fiora como se a tivesse visto na véspera, felicitou-a pelo seu bom aspecto e desapareceu no seu studiolo com a pressa de um homem cujo tempo é precioso. Era um naturalista apaixonado, que considerava tempo perdido aquele que não consagrava à botânica, aos minerais e às diferentes famílias de borboletas. Bom e simples, ingénuo como uma criança, nunca se esquecia, antes de se atirar ao trabalho, de rezar a Deus para que lhe desse forças e inteligência. Lourenço gostava muito dele, do mesmo modo que o seu pai e o seu avô, e era em grande parte graças a ele que os outros membros do clã Albizzi, em tempos exilados, tinham podido regressar a Florença.
Também incrivelmente distraído, os acontecimentos exteriores passavam por ele sem deixar vestígios. Assim, durante o jantar, durante qual Colomba serviu pombos recheados com ervas finas, uma das suas glórias, mostrou-se extremamente surpreendido por ter encontrado, no seu caminho, ao sair de casa do seu amigo sábio Toscanelli, o cadáver do velho Pazzi, arrastado por um bando de homens e mulheres.
Foi-me difícil reconhecê-lo, o cadáver está em muito mau estado. Aliás, não percebi bem o que estava ali o cadáver do Pazzi a fazer, porque nem sequer sabia que ele tinha morrido.
Meu querido tio disse Chiara, rindo-se que cataclismo seria necessário para te arrancar aos teus estudos e interessar-te pela vida da cidade? Depois da morte do irmão, Lourenço de Médicis e a Senhoria decidiram exterminar os Pazzi. Já te esqueceste que o palácio deles ardeu há quinze dias?
E verdade! Já me lembro, na ocasião pensei que tinha sido uma das nossas chaminés que se tinha incendiado. Em todo o caso, aquele bravo Petrucci desatou a berrar, dizendo que era preciso parar aquele passeio repugnante porque o Sol tinha regressado e então não compreendi mais nada. O que é que o Sol tem a ver com aquilo tudo? O Sol não brilha todos os dias em Florença?
Há mais de um mês que não brilhava, mas parece que não deste por isso? Aquela pobre gente pensava que a chuva incessante era provocada pelo facto de terem enterrado Pazzi, cúmplice de Satanás, numa igreja. Espero, de qualquer modo, que o enterrem noutro lado qualquer!
Ah bom! Ah!... Muito bem! Enterrá-lo? Sim, creio que Petrucci disse qualquer coisa acerca disso. Vão enterrar o velho bandido perto das muralhas, para os lados da porta San Ambrogio, parece. Colomba! Dá-me mais meio pombo...
Terminada a refeição, foi em busca de um grande gato preto e branco que dormitava em frente da chaminé, meteu-o debaixo do braço e regressou ao seu gabinete de trabalho após ter desejado uma boa noite às duas raparigas.
Estas partilharam o leito de Chiara, tal como noutros tempos. Tinham sempre que dizer uma à outra e naquela noite, claro, mais do que nunca. Desse modo se passou uma boa parte da noite. Uma bela noite, tranquila, a primeira desde há muitas semanas e o luar, velado por uma ligeira névoa de reflexos nacarados, iluminava o quarto com uma luz ligeiramente misteriosa. Uma acácia branca metia um ramo pela janela de Chiara, deixando cair no tapete as suas frágeis flores de perfume delicado. Naquela atmosfera plena da doçura de outros tempos, Fiora abandonou o seu coração à amiga como nunca antes, mesmo a Demétrios. Chiara, sendo mulher, podia compreender os arrebatamentos secretos de outra mulher como nenhum homem.
Tal como o médico, Chiara encorajou a sua amiga a manter secreto o seu infeliz casamento com Carlo Pazzi.
Nós vamos ter guerra e Roma vai estar, em breve, muito mais longe de Florença do que está na realidade. Tens todas as hipóteses de nunca mais ver esse pobre rapaz.
Não deixo de estar menos casada e ele comportou-se como um amigo. E sei que se sente infeliz longe da sua querida casa de Trespiano. Se, ao menos, eu conseguisse que lha devolvessem!
Compreendo a tua preocupação, mas espera ainda um pouco. Lourenço parece um esfolado vivo depois do crime. Tu adoças-lhe as noites, sem dúvida, mas deves desconfiar das suas reacções. Por outro lado, como pensas organizar o teu futuro? Não podes continuar nessa situação falsa provocada pela... pela paixão dele!
Queres dizer capricho e eu creio que essa é a palavra certa. Quem era a amante de Lourenço antes de eu regressar? Porque estou certa de que ele tinha uma?
Tinha. Bartolommea del Nasi. Uma bela rapariga, não muito astuta, mas a família é-o o suficiente por ela. Eles podem achar desagradável o facto de a tua presença ter feito secar a sua fonte de rendimento. Arriscas-te a ficar em perigo.
Não me parece que queiram ficar com um crime na consciência. Mais tarde ou mais cedo, afastar-me-ei de Lourenço. Simplesmente, não o quero ferir.
Sê franca! Nem renunciar ao que encontras junto dele?
É verdade. Gostaria que esta situação se prolongasse mais um pouco. Aliás, pelo que diz, também ele deseja que isto dure muito tempo; propôs-me mandar alguém a Plessis para trazer o meu filho e Léonarde, mas eu ainda não me resolvi a aceitar. Não sei porquê, porque seria no interesse da criança. Educado aqui, receberia, naturalmente, toda a educação necessária para continuar os negócios do meu pai.
Não estás a falar a sério?
Estou. Desde que nasceu que desejo fazer dele um homem igual ao meu pai: corajoso, letrado, humano, generoso e aberto à beleza. Parece-te inverosímil?
É a minha vez de ser franca: sim.
Mas porquê?
Não fui eu que casei com messire de Selongey! Esqueces-te que o teu filho também é dele, que tem um grande nome no seu país, mesmo que pertença a um homem que pagou com o cadafalso a sua fidelidade a uma causa perdida. Não podes fazer dele um burguês florentino...
Não vejo que isso o possa diminuir?
É possível que não, mas ele verá, um dia. Quando for grande fará perguntas às quais terás de responder. E então, quem te diz que ele não preferirá uma vida miserável, uma vida de proscrito de acordo com a escolha do pai, à vida faustosa que tu sonhas para ele, mas na qual não se reconhecerá? Tu foste desenraizada e sabes o que isso custa. Não faças com que o teu filho sofra o mesmo! Educa-o no amor e na recordação do teu marido...
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