E isso é incompatível com a vida de alta personagem da nossa cidade?

Talvez não, na condição de que não sejas então, e há muito tempo, a amante de Lourenço. Eu sei acrescentou Chiara, sorrindo que parece que te estou a votar a uma austeridade para a qual não foste feita, mas creio que, se tivesse um filho, dedicar-me-ia a ele com alegria...

Sem responder, Fiora passou um braço pelo pescoço da amiga, beijou-a e deixou o seu rosto encostado ao dela, sem se dar conta de que as lágrimas lhe corriam pelas faces.

Não chores disse Chiara. Estou certa que ainda tens belos dias pela frente... E agora, se dormíssemos? A alvorada está a chegar.

Não foi o dia que as acordou, antes um verdadeiro uivo lançado por Colomba. Num abrir e fechar de olhos, viram-se de pés nus e em camisa nos degraus de mármore da escadaria, correndo na direcção da grande porta do palácio, aberta, na entrada da qual estava Colomba desmaiada. Uma criada dava-lhe pancadinhas nas faces sem convicção, ao mesmo tempo que, no exterior, um criado erguia o punho e lançava injúrias. Um jovem elegante juntara a sua voz à do servo e de Lodovico Albizzi que, em roupão e com o gato debaixo do braço, batia com os pés no chão e lançava gritos inarticulados.

Ao juntarem-se-lhes, as duas jovens viram um bando de rapazes que se afastava dançando e arrastando uma coisa qualquer na ponta de uma corda.

O que é que se passa, meu tio? perguntou Chiara, inquieta ao ver o ancião vermelho de furor.

Ah, é o velho diabo do Jacopo Pazzi! Continuam a arrastá-lo pelas ruas! Nunca vi um morto mexer-se tanto...

Fiora soube o que se passara pela boca de Colomba, enquanto a obrigava a beber umas gotas de aguardente. Enquanto velava pela preparação da primeira refeição, a governanta de Chiara ouvira, na rua, um bando de rapazes a cantar. Um instante depois, a aldraba da porta era vigorosamente agitada. Colomba fora abrir e fora então que lançara o grito que acordara uma parte da casa: preso na corrente da campainha, balouçava um cadáver meio decomposto, ao mesmo tempo que, em redor, os rapazes riam e gritavam:

Bate à porta, ser Jacopo! Bate à porta! Abri a messer Jacopo di Pazzi!

A chegada intempestiva do elegante jovem a cavalo pô-los em fuga. Apressaram-se a retirar o seu trofeu odioso e levaram-no, arrastando-o, mas o odor pavoroso parecia ter ficado colado às pedras da soleira e Fiora, por sua vez, sentiu-se empalidecer:

Não poderemos levar donna Colomba para dentro? perguntou ela, ao mesmo tempo que Chiara se esforçava por fazer com que o seu tio entrasse também, obstinado em continuar a gesticular e em chamar a Milícia.

Evidentemente exclamou o jovem, que puxou o criado por um dos braços. É para já!

Fiora afastou-se e os dois, entre eles, transportaram Colomba, cujas pernas trémulas pareciam incapazes, para o interior da casa. Mas, ao erguê-la, o seu olhar encontrou o da jovem e não conseguiu suster a doente:

Madona Santíssima! És tu?... Tinham-me dito que tinhas regressado, mas não acreditei.

Porquê? Pensavas que tinha morrido? Seria, evidentemente, mais cómodo para a tua tranquilidade de espírito.

O olhar irónico de Fiora media, com mais divertimento do que rancor, o seu antigo apaixonado. Luca Tornabuoni continuava tão belo como nos tempos em que lutava ardentemente pela mão de Fiora; talvez estivesse, ainda, mais belo, porque, em três anos, perdera aquele aspecto um pouco frágil da juventude e, ao mesmo tempo, o seu lado ternurento. No entanto, Fiora sabia da cobardia que se escondia por trás daquele rosto cujo perfil era digno de ser esculpido em bronze. No dia da catástrofe em que mergulhara a sua vida, Luca apressara-se a desaparecer no meio da multidão sem tentar socorrer aquela de quem, entretanto, se dizia tão apaixonado.

Então, que esperais? exclamou Albizzi, que se decidira a entrar. Um pouco de nervo, que diabo! Ainda deixais cair a pobre mulher. E vós, as raparigas, que estais aí a fazer? acrescentou ele na direcção da sobrinha e de Fiora. Talvez seja distraído, mas não ao ponto de não reparar que estais ambas em camisa! Em camisa! E na rua! Toca a andar! Para dentro!

De mãos dadas, as duas jovens voltaram a subir a escadaria a correr e a rir, ao mesmo tempo que Luca gritava:

Dá-me autorização para te vir ver, Fiora! Tenho de te falar! Diz-me que posso vir!

Inclinando-se no corrimão, a interpelada lançou:

Eu não estou em minha casa. Além disso, não me apetece ver-te!

Aquela declaração definitiva não impediu Luca de regressar durante o dia, mas Fiora recusou recebê-lo, assim como no dia seguinte. A jovem procurou compreender por que razão aquele rapaz, em tempos seu cavaleiro ardente e cujas homenagens ela aceitava porque era belo e decorativo, mas sem lhe retribuir os sentimentos, desejava tanto aproximar-se de novo. Ainda por cima porque, segundo Chiara, era casado e pai de uma criança.

Se começo a ter relações com todos os homens casados da cidade, a minha reputação desaparece num instante confiou ela a Chiara. Além disso, não tenho vontade nenhuma de lhe falar.

O bom tempo regressara e instalava-se para satisfação geral, se bem que as pessoas sérias se recusassem a ver uma relação entre os caprichos do céu e os despojos mortais de Jacopo Pazzi. Que, aliás, abandonara Florença definitivamente pela via do rio, para onde o magistrado de justiça o mandara atirar do alto da ponte Rubaconte.

Nesse dia, as duas amigas, que saíam de boa vontade para as ruas de uma Florença enfim tranquilizada, decidiram subir a San Miniato. O tempo dos espinheiros-alvar e das violetas já tinha passado, mas Fiora e Chiara tinham a mesma predilecção por aquele local encantador de onde se desfrutava, sobre Florença, a mais bela vista da região. As chuvadas recentes não tinham causado grandes estragos em redor da velha igreja e do velho palácio dos bispos. Ciprestes orgulhosos enegreciam o alto da colina, qual barreira erguida contra o assalto da vegetação que três dias de sol tinham tornado exuberante.

Do alto do pequeno terraço da igreja as duas jovens contemplaram por um momento a cidade estendida a seus pés e irisada de uma pequena bruma anunciadora de calor. O perfume das ervas, da erva-cidreira, da hortelã e do funcho subia vindo das hortas situadas mais abaixo. O ar era de uma doçura delicada e no grande céu azul as andorinhas passavam como delgadas flechas negras.

Sentada na erva por baixo de um pinheiro e mascando uma das suas agulhas, Fiora sentia-se entorpecida sob o prazer daquele instante, em que voltava a encontrar a cidade que amava, onde podia, sem ideias preconcebidas, deixar-se invadir pela sua graça e beleza. Nem Chiara, nem ela, sentiam a necessidade de falar, certas da harmonia tranquila por onde vogavam os seus espíritos. Instalada um pouco mais longe, Colomba dormia encostada a uma árvore, o nariz encostado ao grande regaço.

Fiora estava quase a imitar a governanta quando uma sombra se interpôs entre ela e a paisagem. A jovem teve um sobressalto ao reconhecer Luca Tornabuoni, que acabava de pôr um joelho em terra para estar à sua altura. De imediato irritada, a sua reacção foi instantânea:

Vai-te! Já te disse que não te queria ver mais!

Um instante, Fiora! É só um instante! Eu sei que tu me queres mal.

Quero-te mal? Eu já me tinha esquecido da tua existência. Não foi boa ideia fazeres-ma recordar!

Não sejas tão dura! Eu sei que me portei mal contigo, mas tenho sofrido tanto desde então...

Sofrido? Tu sabes lá o que isso quer dizer! Basta olhar para ti para ver como tens sofrido estes últimos anos: tens um aspecto soberbo, aparentas uma bela prosperidade e disseram-me que tens uma esposa jovem e um filho! Na verdade, tudo isso é de chorar.

Deixa-me, ao menos, defender a minha causa! Chiara, peço-te, deixa-me uns momentos a sós com ela.

Mas esta, em vez de se afastar, estendeu-se sobre a erva:

Por minha fé, não! Estou aqui muito bem. De qualquer maneira, ela não te quer ouvir. Ela não gosta de poltrões.

Eu não sou um poltrão e sabei-lo muito bem, as duas! Eu bato-me galhardamente nos torneios.

Isso está ao alcance de qualquer imbecil, desde que tenha músculos, armas e um cavalo bem treinado disse Fiora em tom cortante. A coragem não é isso.

Que devia fazer, então? Afrontar sozinho uma multidão encolerizada? Aquilo foi terrível...

Achas que eu não sei? Que devias ter feito? Correr para mim, estender essa mão, de que eu necessitava tanto, em meu socorro. Ficar a meu lado. Mas fugiste como um coelho perseguido. Se não fosse Lourenço...

Que fez ele de extraordinário, o meu primo? Podia salvar-te e não o fez disse Luca com amargura.

Fez mais do que imaginas e se hoje estou viva, a ele o devo.

E tu pagas-lhe regiamente, pelo que dizem? Tornaste-te amante dele. É verdade, de facto, mas não vejo que isso te diga respeito?

Mas, eu amo-te! Nunca deixei de te amar e estou arrependido. Queria ir em teu socorro, mas o meu pai fechou-me e...

E tu achaste mais confortável continuar fechado. Após o que te apressaste a oferecer os teus votos a outra. Ou o meu amigo Demétrios sonhou ao ver-te na companhia de uma bela ruiva? Acabemos com isto, Luca! Eu ouvia-te com prazer, antigamente, mas não te amava. Nunca te amei. Como queres tu, agora, que me interesse por ti?

A jovem levantara-se para se afastar dele. Ele estendeu as mãos suplicantes para a reter, mas a seda do seu vestido negro deslizou-lhe por entre os dedos. Chiara levantou-se, também ela, e colocou-se entre os dois, naturalmente. Pousou uma mão apaziguadora pelo ombro do jovem:

Esquece-a, Luca! Tu apaixonaste-te outra vez quando a viste, mas pareces uma criança que reclama um brinquedo durante muito tempo desdenhado só porque o dão a um irmão, e que tem uma birra para o recuperar. Não se força o coração de uma mulher...

Ah sim? E ela amava Lourenço, naquele tempo? No entanto, agora é dele!

Eu não sou de ninguém... senão de uma recordação! exclamou Fiora quase a perder a paciência. Talvez, com efeito, eu devesse qualquer coisa ao teu primo, mas a ti não devo nada! Portanto, deixa de me importunar e vai-te embora! Regressa para junto dos teus! Eu não quero voltar a ver-te ou a ouvir-te.

Uma brusca cólera corou o belo rosto de Luca e incendiou-lhe os olhos negros:

Nunca te verás livre de mim, Fiora! E por São Lucas, meu patrono, saberei levar-te aonde quero!

O teu santo patrono era médico. Pede-lhe que te cure, porque estás em vias de perder o espírito. Seria a coisa mais sensata!

Metendo o braço no de Chiara, a jovem encaminhou-se para junto de Colomba que, devido às vozes exaltadas, já há muito estava acordada e seguia a cena com as feições esfomeadas de um amador apaixonado por romances. Compreendendo que não ganhava nada em insistir, Luca Tornabuoni dirigiu-se para o seu cavalo, que estava preso a um dos anéis de bronze do palácio episcopal. O gesto que dirigiu ao grupo formado pelas três mulheres tanto podia significar um adeus como uma ameaça.

Podes dizer-me o que lhe deu? perguntou Fiora, encolhendo os ombros.

Vá-se lá saber! Talvez seja sincero quando diz que nunca te esqueceu, se bem que Cecília, a mulher dele, seja encantadora. Sobretudo, acredito que a sua atitude actual se explica de três maneiras: viu-te de novo, sabe que Lourenço é teu amante... e aborrece-se, como acontece quando se é rico, pouco culto e não se sabe o que fazer do tempo de que se dispõe. No entanto, tem cuidado: o amor de uma criança estragada pode tornar-se uma fonte de sarilhos. Sobretudo se decidires instalar-te aqui.

Veremos! Posso sempre regressar a França.

De regresso ao palácio Albizzi, Fiora encontrou um bilhete que lhe tinha sido enviado à hora do meio-dia. Continha apenas algumas palavras e ela corou um pouco ao lê-las, sem poder conter um sorriso:

”Só penso em ti! Vem! A estátua é muito menos bela do que tu. Ou estás amanhã à noite nos meus braços, ou vou-te buscar. L.

A jovem dobrou o bilhete e meteu-o no corpete com um gesto um pouco nervoso de mais. Chiara desatou a rir:

Ele reclama-te?

Sim.

E... tu não tens vontade nenhuma de o fazer esperar?

Não...

Entendido! Amanhã acompanhar-te-emos até às muralhas, Colomba e eu, e dar-te-ei dois criados para te acompanharem o resto do caminho.

Por que não vens, tu, passar uns dias comigo a Fiesole?

Talvez mais tarde... Lourenço não gostaria nada da minha presença e a mim não me apetece nada desagradar-lhe.

No dia seguinte, na via Calzaiuoli, Fiora, Chiara e Colomba, que tinham ido comprar tecidos ligeiros a pensar nos calores do Verão, saíam de uma loja e encaminhavam-se para as suas mulas guardadas por dois criados quando a rua se encheu de uma multidão aos berros e gesticulando, armada de paus, de facas e objectos diversos, que gritava ”Morte aos Pazzi. Justiça!... Liberdade!... À morte o Pazzi e a rapariga amarela!”