Um clarão brilhou, pela primeira vez, nos olhos frios de Selongey e a sua voz dura suavizou-se:
Na prisão, em Dijon, na véspera daquela que devia ser a minha execução, soube que esperavas um filho, mas ignorava que fosse um rapaz. Fico muito feliz... mas, no sítio onde está, não precisa de mim. Não me devias ter falado dele, não sinto qualquer prazer em ser o pai de um futuro mercador florentino.
Um futuro mercador florentino? Mas, onde pensas tu que ele está?
Em Florença, claro. Para onde o levaste o ano passado.
Eu? Eu levei o meu pequeno Philippe para a Toscânia? Sobre esse túmulo que tu pareces venerar, juro que o nosso filho está neste momento na casa de la Rabaudière, perto de Tours, onde a minha velha Léonarde, a minha antiga escrava Khatoun e um casal muito nosso amigo velam por ele.
O sorriso irónico de outrora esticou para a direita a boca desdenhosa de Philippe:
Em Tours! Pouca diferença faz! Enganas-te, Fiora, quando dizes que monsenhor Carlos está entre nós. Aquele que está verdadeiramente entre nós é o Rei de França. Sabes perfeitamente que nunca aceitarei servi-lo, mas educas o teu filho na corte dele.
Eu educo o meu filho em minha casa, na casa que me foi dada...
... como agradecimento pelos teus bons e leais serviços na cama de Campobasso!
Meu Deus! Nunca esquecerás essa história horrível?
Avançando um passo na direcção do túmulo, Fiora deixou-se cair de joelhos perto da lâmpada de bronze:
O Rei transferiu para mim a estima que tinha pelo meu pai. Ele deu-me aquela casa porque sabia que eu não tinha mais nada.
Tinhas Selongey. Era lá que devias estar quando nasceu o meu filho. Mas tu não querias viver longe da agitação e da vida brilhante a que estavas acostumada...
Se eu tivesse aceitado seguir-te, talvez fosse, a esta hora, uma errante miserável. Esqueces que foste condenado à morte porque só sonhavas em recomeçar a guerra, em te dedicares ao serviço da tua bem-amada duquesa Maria. Eu não contava, podias arrumar-me em Selongey como se fosse bagagem incómoda... Dito isto, estou profundamente arrependida por ter provocado entre nós esta ruptura. Porque... Deus é testemunha e vós também, monsenhor, que dormis sob esta grande laje... porque te amo, nunca amei ninguém senão tu, Philippe. Há meses que te procuro!
Há meses? E por que não anos? Creio que, como boa florentina, exageras um pouco. Não me procuravas em Setembro último, quando estavas em Florença, junto do Médicis, o teu amante, para onde levaste o meu filho e todo o teu pessoal.
A indignação e o estupor fizeram com que Fiora se levantasse.
Eu estava em Florença em Setembro último? Mas, quem é que te disse uma coisa dessas?
Um homem que encontrei a dois passos da tua casa... a que chamam a Casa das Pervincas. É isso?
Tu foste... a minha casa em Setembro? É impossível.
A sério? Então, ouve. Quando fugi do castelo de Pierre-Scize, onde o teu Rei me fechou...
Graças à cumplicidade da filha do carcereiro, eu sei...
Dir-se-ia que sabes muitas coisas?
Mais do que pensas. O que eu quero saber é o que fizeste quando saíste do convento de Val-de-Bénédiction, onde foste tratado e onde me disseram que tinhas perdido a memória.
Tu foste lá?
Escoltada por Douglas Mortimer. Deves lembrar-te dele. O dom abade disse-nos o pouco que sabia de ti... salvo que lhe mentiste. Tu nunca perdeste a memória, pois não?
Não, mas nem todos os monges são dignos de confiança e era a única conduta possível para um prisioneiro evadido de uma prisão real. Que sabes tu mais?
Que por ocasião da festa das ladainhas te aproveitaste da passagem de alguns peregrinos a caminho de Compostela para abandonar o convento.
A jovem calou-se. O olhar de Philippe, passando sobre ela, fixou-se em algo que ela não via. Ela seguiu a direcção e viu um grupo de homens, de gorro na mão, que se dirigiam ao túmulo.
Vem! murmurou Philippe. Afastemo-nos! O resto da igreja está vazia a esta hora...
Respondendo com um sinal de cabeça à saudação respeitosa dos fiéis, ele precedeu a jovem no deambulatório e depois esperou que ela se lhe juntasse. Então, começaram a caminhar muito lentamente, lado-a-lado e Philippe contou como se juntara aos errantes de Deus que iam a caminho da longínqua Galiza.
Fui com eles até Toulouse. Era a minha única hipótese de sobrevivência, porque não tinha um vintém e vivi da caridade graças a eles. Pensei em acompanhá-los até ao fim, mas qualquer coisa mais forte me prendia a esta terra onde pensava que vivias. Tinha sofrido tanto que até esqueci o ódio que sentia por Luís XI. O que eu queria era encontrar-te...
Philippe!
Cala-te! Deixa-me acabar! Em Toulouse, fiz de conta que tinha um problema numa perna e deixei seguir os meus companheiros. Fiquei no hospital de Saint-Jacques, ganhando o meu sustento em troca de pequenos serviços. Esperei pela passagem de outros peregrinos de regresso ao norte, de preferência a Tours. Quando eles apareceram, regressei com eles e foi assim que cheguei, finalmente, ao... covil do Aranhiço Universal! grunhiu ele num tom rancoroso que arrepiou Fiora.
O hábito que usas não te incita ao perdão das injúrias e à caridade? reprovou-o ela docemente.
Sem dúvida!... Mas não sei bem se a graça de Deus me tocou verdadeiramente disse ele com um sorriso amargo. No entanto, aproximei-me dos arqueiros de guarda. Queria falar àquele escocês de que tu falaste há pouco e do qual guardava uma recordação de companheiro valente, mas disseram-me que estava ausente. Foi então que se aproximou de mim um homem e me perguntou o que eu queria. Eu disse-lhe e ele propôs-me mostrar-me a tua casa... mas, em caminho, acrescentou que tu já não estavas lá, que a tinhas deixado vários meses antes, sem esperança, para regressar a Florença com o teu filho e os teus servidores. E como eu tivesse ficado espantado por tu quereres regressar a uma cidade que te tinha tratado tão mal, ele desatou a rir: ”Não há nada que uma mulher tão bela como aquela donna Fiora não consiga obter de um homem e Lourenço de Médícis é todo-poderoso. Há muito tempo que é amante dela...”Meu Deus! murmurou Fiora, espantada. Mas, quem te disse uma coisa dessas?
Um homem que, aparentemente, te conhece bem, um conselheiro do Rei e também seu barbeiro, parece... O que não me espanta num sire tão triste como aquele!
Olivier lê Daim! Aquele miserável, que me odeia e que nos tentou matar, a mim e a Léonarde, ousou dizer-te isso? E tu acreditaste nele?
Quase o estrangulei, mas ele jurou por todos os santos do Paraíso que dizia a verdade e como acrescentou que a casa em questão lhe pertencia doravante e que, se eu o desejasse, me ofereceria hospitalidade, deixei-o e fugi a correr. Se tivesse ficado, creio que teria acabado por matá-lo e por pegar fogo àquela maldita casa...
Por que não o fizeste? Terias evitado a ambos muitos sofrimentos. Se te tivesses aproximado de la Rabaudière, terias visto as janelas abertas e Léonarde no jardim com o nosso filho... Juro-te que estava lá! Aliás, se não acreditas em mim, vem comigo: o servidor que me acompanha poderá responder às tuas perguntas sem que eu abra a boca! Vem, suplico-te!
Não... Não me rebaixarei a interrogar um servidor. Prefiro acreditar em ti!
Fiora olhou com desespero para aquele rosto fechado, para aquele perfil imóvel que se destacava com a nitidez de um medalhão nos azuis e púrpuras de um vitral. O seu coração batia com toda a força, a jovem sentia que, em vez de o aproximar dela, cada palavra que trocavam cavava um pouco mais o fosso que os separava. Para dar a si própria tempo para reflectir, Fiora murmurou em voz surda:
Que fizeste depois?
Peguei no meu bordão e pus-me de novo a caminho. Já não tinha vontade de viver. O rio tentava-me, estava mesmo ali, mas um cavaleiro, mesmo reduzido à miséria, não tem o direito de se matar. Podia servir e lembrei-me, então, de um parente da minha mãe cujo castelo se situava perto de Vendôme. Se ainda fosse vivo, talvez me desse aquilo de que tinha tanta necessidade: um cavalo, uma espada e os meios de atingir a Flandres, para retomar o combate pela duquesa Maria...
Suponho que o teu desejo foi satisfeito disse Fiora porque Mme. de Schulembourg viu-te no Natal em Bruges. Eu estive com ela e ela contou-me o que se passou. Penso que amavas Madame Maria há muito tempo...
Foi a vez de Philippe se espantar.
Eu? Eu amo a duquesa há muito tempo? Ah, é verdade acrescentou ele com um sorriso desdenhoso eu estava de joelhos perante ela quando aquele alemão rústico, com quem ela casou entrou, mas não me estava a declarar.
A sério?
Pela minha honra! Suplicava-lhe que retomasse o combate pela nossa Borgonha invadida pela gente do Rei. Suplicava-lhe que me confiasse um grupo de soldados sólido e armas. Desse modo, teria sublevado a região de Selongey e, sem dúvida, as outras ter-se-iam seguido...
Enquanto explicava o seu sonho, a luz invadia de novo os seus olhos, a luz que o amor da sua mulher já não lhe suscitava. Uma constatação que, acordando nela o ciúme, suscitou a cólera de Fiora:
Uma loucura! Nunca o terias conseguido. Os irmãos de Vaudrey, que defendiam o Franco-Condado há tanto tempo, foram, finalmente, vencidos. Tu também o terias sido e dessa vez não terias escapado ao cadafalso.
E depois? grunhiu ele. Não imaginas a que ponto lamento não estar morto. De qualquer maneira, a duquesa não quis ouvir as minhas súplicas porque não pensa, não vê, não respira senão através do marido, aquele efeminado, aquele alemão a quem só interessam a Flandres e Artois.
Isso não tem lógica disse Fiora friamente. Se tivesses conseguido, ter-te-ias batido por aquele alemão. Seria a ele que terias entregado a Borgonha. O grande bastardo não suportou ver a águia negra a esmagar a flor-de-lis. Os teus grandes príncipes, até aquele que dorme aqui, eram Valois, assim como o Rei Luís, e até a mãe da tua duquesa Maria era francesa. Não conseguirás escrever a História à tua maneira, Philippe de Selongey. Agora tens de pensar no teu filho, que está a começar a vida! Como Philippe guardasse silêncio, Fiora, sentindo que tocara numa corda sensível, quis forçar a vantagem que conseguira:
Achas que o próprio irmão do Temerário e seu mais fiel capitão, que homens como Philippe de Crèvecoeur, como os Croy e tantos outros se aliavam ao Rei Luís se não vissem nele um soberano digno de ser servido? Eu não te peço tanto, mas regressa para junto de nós, Philippe! Eu não te obrigarei a viver em Touraine. Iremos para Selongey e viveremos lá os dias que nos restam!
Tinham dado a volta à colegial e tinham regressado ao túmulo, junto do qual não havia ninguém. Maquinalmente, Philippe reacendeu um círio que se tinha apagado...
Eu sinto-me bem perto dele, Fiora! Quando saí de Bruges, agoniado com aquele casal preocupado com a vida familiar e que só pensava na caça e em festas, quis vir rezar a este túmulo para pedir a monsenhor Carlos que me indicasse o caminho. Tinha sede de grandeza, de sacrifício. E vi Battista com o hábito de noviço. Compreendi que era essa a resposta que esperava. Fiquei...
Tu não me amas! Nunca me amaste! exclamou Fiora com as lágrimas a correrem-lhe de novo pelas faces. Se me amasses...
Então, pela primeira vez após longos minutos, ele olhou para ela e Fiora, meio estrangulada de emoção, compreendeu que se enganava, que o amor não morrera. Lentamente, Philippe estendeu sobre a laje a sua grande mão nervosa:
Sobre o túmulo daquele que aqui dorme e pela fidelidade que lhe tinha te juro que nunca amei ninguém senão tu!
Então vem comigo, suplico-te! Regressa comigo! Eu ia para Selongey. Vamos juntos e depois mandamos buscar o nosso filho! Eu não volto a la Rabaudière, mas vem comigo, suplico-te! Não nos condenes a ambos! Ainda podemos ser felizes...
Achas?
Tenho a certeza, meu amor...
Seguiu-se, entre os dois, um daqueles silêncios mais eloquentes do que quaisquer palavras, porque saram as feridas e fazem nascer a esperança. Fiora não ousava mexer-se, esperando um gesto, um sorriso do seu marido.
Então, é a tua vez de jurar ordenou Philippe. Vais jurar sobre este mesmo túmulo e perante Deus que nunca foste amante de Lourenço de Médicis!
Aquelas palavras atingiram de tal maneira a jovem que ela vacilou, ao mesmo tempo que o sangue lhe fugia do coração. A luz que acabava de se acender, apagara-se. A esperança desvanecia-se... A tentação de um juramento falso nem sequer lhe passou pela cabeça: ela sabia que o segredo do nascimento de Lorenza podia escapar-lhe e que até os rumores vindos da longínqua Florença podiam chegar, um dia, aos ouvidos do marido.
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