Então? impacientou-se Philippe.

Ela não respondeu e desviou o olhar para não ver aqueles olhos que, agora, chamejavam ao mesmo tempo de cólera e desgosto.

Eu... eu não posso! Mas...

Não quero nenhum ”mas”! Adeus, Fiora!

Não!

Foi um grito dilacerante, mas Philippe não quis ouvi-lo. Com um gesto que atirava a jovem para as trevas do desespero, ele meteu a correr pela porta da colegial, que se fechou tão pesadamente como uma pedra tumular.

Só, Fiora deixou-se cair por terra, primeiro de joelhos e depois ao comprido, uma imagem desesperada do seu coração crucificado, como se quisesse integrar-se naquela pedra fria, naquele túmulo sobre o qual acabava de se destruir a sua vida.

Foi ali que, um pouco depois, Florent e Battista a encontraram...

CAPÍTULO XI

A CASA VAZIA

Fiora nunca imaginara que fosse possível tanto sofrimento. Inerte no seu leito enquanto as lágrimas não paravam de correr, ensopando-lhe os cabelos e a almofada, incapaz de dormir ou de se alimentar, apenas um pensamento lhe inflamava a cabeça e a destruía lentamente.- Philippe rejeitava-a para sempre. Preferia um convento miserável e o túmulo junto do qual tencionava viver o resto dos seus dias. O pecado demasiado doce cometido com Lourenço impunha à culpada uma penitência impiedosa, afastando para sempre o homem que amava.

Não imaginando por um só instante do fundo da sua humilhação que Philippe lutava, talvez, contra os demónios de um ciúme furioso, ela não quis ouvir as consolações dos seus amigos, recusando sair daquele quarto e, sobretudo, daquela cidade onde, pelo menos, ele estava, a dois passos da casa onde ela vivia uma agonia.

Depois de a tirarem da igreja quase inconsciente, Battista e Florent não sabiam que fazer, assim como Nicole Marqueiz, a quem, em poucas palavras, tinham posto ao corrente. Mal Fiora se refugiara no seu quarto, o jovem Colonna precipitara-se para o convento para contar a Selongey o que se passava e tentar comovê-lo, mas chocara com um verdadeiro muro.

Essa mulher está morta para mim lançou Philippe com uma violência que surpreendeu o jovem. Ela fez com que tudo entre nós se tornasse irreparável. Perdoei uma vez, não perdoo segunda.

Ela pensava que estáveis morto e, se bem compreendi, acabava de passar por duras provações...

Ela sabia que eu estava vivo quando se entregou a Campobasso. O facto de pensar que eu estava morto não é desculpa. Se eu aceitasse viver com ela, durante quanto tempo me seria fiel? A sua beleza atrai os homens e ela deixa-se atrair pelo amor deles.

Ela só vos ama a vós.

Talvez porque nunca me teve, verdadeiramente, à sua mercê. Que aconteceria quando sobreviesse a monotonia da vida quotidiana? Como se distrairia? Que homem teria eu de matar... a menos que não a matasse a ela? Não, Colonna, recuso-me a suportar isso! Não quero enlouquecer...

Não enlouqueceis aqui? Vós não fostes feito para a vida monástica... eu também não, aliás, e agora sei que estava enganado.

Vós escolhestes o único refúgio digno de um cavaleiro, mas agora tendes uma razão para viver. Eu vou continuar a minha guarda silenciosa junto do único senhor que jamais aceitei. Se não encontrar a paz, parto e vou, como foi minha intenção, durante algum tempo, procurar a morte combatendo os Turcos.

E... o vosso filho? Resignais-vos a nunca o conhecer? Subitamente, o olhar de Philippe brilhou, mas logo a seguir apagou-se:

Morro de desejo de o conhecer! grunhiu ele. Mas, se o conhecer, se lhe tocar, não terei coragem de me afastar. Teria, então, de o privar da própria mãe. Prefiro não correr esse risco... Ide-vos, Colonna! Ide ao encontro do vosso destino, deixai-me com a minha solidão...

Não me dais uma única palavra para lhe levar? murmurou Battista, magoado.

Dizei-lhe... que lhe confio o meu filho e que conto com ela para fazer dele um homem digno dos seus antepassados. Sei que ela tem um coração nobre e que é corajosa. Não é culpa sua se o seu corpo é fraco. Dizei-lhe, enfim, que rezarei por ela... por eles!

Foi tudo. Um instante depois, Philippe de Selongey transpunha a porta que ia dar ao claustro e desaparecia. Battista, desencorajado, regressou para junto de Fiora, mas não teve coragem de lhe entregar a mensagem austera e desoladora de que era portador. No dia seguinte, por sua vez, Florent, levado por uma cólera furiosa, correu ao priorado, decidido a fazer com que o obstinado ouvisse a voz da razão e a dizer-lhe o que pensava dele. Mas não foi recebido e regressou de mãos vazias. Georges Marqueiz, que tentou a experiência por amizade para com Fiora, também não teve mais sorte. Philippe parecia ter decidido emparedar-se por trás do silêncio.

Na manhã do quarto dia de reclusão de Fiora, dame Nicole, Battista e Florent decidiram de comum acordo que era preciso intervir. A jovem estava decidida a deixar-se morrer de fome.

Recuso-me declarou a mulher do almotacé a vê-la morrer em minha casa. Vinde comigo, os dois, e não vos zangueis se a minha linguagem vos parecer um pouco rude.

Armada com um tabuleiro de comida ligeira e um jarro de vinho, ela subiu as escadas que iam dar ao quarto da desesperada seguida pelos dois rapazes.

A despeito do fogo aceso na chaminé para lutar contra a humidade de um mês de Maio chuvoso, o quarto estava na obscuridade. Dame Nicole fez sinal a Florent para que abrisse as pesadas cortinas. A luz cinzenta e triste que entrou não era muito encorajadora, mas era a luz do dia e iluminou o leito onde Fiora estava estendida, tão inerte como se estivesse morta. Com sulcos profundos provocados pelas lágrimas incessantes, a jovem parecia mais velha e os dois rapazes sentiram apertar-se os seus corações.

Eu era capaz de estrangular aquele carrasco! grunhiu Florent. Quando penso que ela não bebe senão água há mais de quatro dias! É de dar com a cabeça nas paredes!

Matar messire Philippe não resolvia nada. Ela não ficava menos infeliz.

Entretanto, Nicole pousou o tabuleiro em cima do leito e começou a endireitar Fiora, colocando-lhe as almofadas atrás das costas.

Já chorastes o suficiente! decretou ela. Agora ides comer, mesmo que vos tenha de alimentar como a um bebé.

A voz que se ouviu pareceu surgida das profundezas do leito. Era uma voz fraca, mas obstinada:

Deixai-me, Nicole!... Eu não quero comer! Eu... nunca mais quero comer.

A sério? Nesse caso, escutai bem o que vos vou dizer! Vós quereis morrer, não é verdade? Simplesmente, eu recuso-me a ter, um destes dias, o vosso cadáver nos braços. Ide morrer onde quiserdes, mas em minha casa, não!

Apesar da sua fraqueza, Fiora esbugalhou uns olhos surpreendidos e dolorosos:

Que quereis dizer?

É evidente, parece-me? Eu recebi, há uns dias, uma amiga com todo o prazer. Ora, essa amiga manifesta, agora, a vontade de se deixar morrer sob o meu tecto e eu não posso aceitar. O orgulho que sinto na minha hospitalidade não vai ao ponto de permitir que decidam suicidar-se em minha casa. Existem muitas maneiras de morrer neste mundo, mas nenhuma delas em casa de Georges Marqueiz. Portanto, se quereis mesmo sacrificar-vos por causa de um homem obtuso, ide executar essa decisão para outro lado qualquer!

Quereis que eu me vá embora? Oh, Nicole!...

Escutai, Fiora, a escolha é simples: ou aceitais alimentar-vos e dou-vos o tempo necessário para que recupereis as vossas forças, ou nós damos-vos de comer à força, estes rapazes e eu, para que possais aguentar algumas léguas de viagem.

Como podeis ser tão cruel?

Cruel, eu? Mas, olhai para vós!

Nicole foi buscar um espelho, que colocou em frente do nariz de Fiora:

Olhai para o vosso rosto após quatro dias só a água! Qual é o homem que merece essa destruição voluntária? Estais a fazer um farrapo da mulher mais bonita que eu conheço. E se pensásseis um pouco no vosso filho? Ele já não tem pai e quereis agora tirar-lhe a mãe?

Um pai ser-lhe-ia bem mais útil do que eu!

Livrai-vos de pensar assim! Pela minha parte, acho que já chorastes de mais messire de Selongey. Se ele quer desculpar-se com a sua dignidade e continuar a chorar um príncipe cuja morte muitos consideram uma libertação, é com ele! Mas vós, vós sois jovem... e bela apesar de estardes a agir como uma imbecil e tendes a vida toda diante de vós. E se escutásseis aquilo que Battista tem para vos dizer?

Vós falastes com ele, Battista? Viste-lo?

Vi-o. Falei-lhe... mas não vos direi nada enquanto não tiverdes comido qualquer coisa consistente! declarou o pajem, firmemente decidido a seguir o caminho aberto por dame Nicole.

Quereis mesmo obrigar-me a viver?

Exactamente! E agora, comei! Falamos depois. Amparada por um Florent transbordando de piedade e que, não sabendo que fazer, preferira guardar silêncio, Fiora comeu algumas colheres de uma açorda açucarada com mel à qual Nicole juntara dois ovos batidos, bebeu alguns goles de um vinho de Nuits singularmente caloroso, rilhou uns damascos de conserva e deixou-se cair nas almofadas, sem forças. As suas faces tinham, agora, um pouco de cor:

Obedeci-vos suspirou ela. Falai agora, Battista. Fazendo os possíveis para suprimir o que não podia ser ouvido, o jovem entregou a mensagem de Philippe e concluiu:

Deveis obedecer-lhe, donna Fiora, mas, sobretudo, deveis pensar em vós e no vosso filho! Deus é testemunha de que tenho pelo vosso marido um respeito e uma admiração absolutos, mas ele é um homem de outra era e vós sois jovem. Deveis viver! Podem, ainda, florir tantos dias sob os vossos passos!

Fiora guardou silêncio por um momento, enquanto ouvia dentro de si o eco das sábias palavras do seu antigo pajem. Depois:

Que conselho me dais, nesse caso?

Primeiro, deveis regressar a casa. Por mais generosa que seja a hospitalidade de dame Nicole, nunca recuperareis em sua casa! Estais demasiado... perto dele. Parti! Quando estiverdes longe, tornareis a ser vós própria e isso é o que todos nós, que estamos convosco nesta aflição, desejamos.

Pela primeira vez, um sorriso débil distendeu os lábios brancos:

Já devíeis ir longe, Battista! Não foi para tratardes de mim que vos exortei a abandonar aquele priorado.

Eu sei, mas só vos abandonarei quando vos vir a caminho da vossa casa, em Touraine.

Com o olhar, a jovem abraçou os três rostos ansiosos que rodeavam o seu leito e procurou a mão de dame Nicole para a atrair a si:

Vós sois uns amigos terríveis! suspirou ela. Nunca agradecerei suficientemente aos céus por vos ter encontrado...

Dois dias mais tarde, depois de ter agradecido calorosamente aos Marqueiz a sua hospitalidade e amizade, Fiora e os seus dois amigos deixavam Nancy. Como os rapazes se tinham firmemente oposto a que a sua companheira efectuasse uma última visita à colegial de Saint-Georges, contornaram o mercado para, pela rue du Four Sacré, passarem pelo palácio ducal e pela comprida rue Neuve que terminava na porta de la Craffe. Corajosamente, Fiora impôs a si própria não virar a cabeça quando transpuseram o Fosso dos Cavalos, para o qual davam as paredes do priorado de Notre-Dame. Tinha de tentar esquecer Philippe apesar de saber que era impossível, mas achava que, com o tempo, a imagem tão querida e tão cruel consentiria, talvez, em esfumar-se.

Informados por Georges Marqueiz, que viajara muito, os três companheiros deveriam fazer caminho comum até Joinville, onde os seus destinos divergiriam. Battista, reequipado e provido de uma bolsa que deveria ser suficiente para o fazer chegar a Roma, viraria a sul e, por Chaumont, Langres, Dijon, Lyon e Vale do Ródano iria embarcar a Marselha. Fiora e Florent virariam para oeste e, por Troyes, Sens, Montargis e Orleães reencontrariam o grande caminho do Loire, que ambos conheciam tão bem.

Para não fatigar demasiado Fiora, mal refeita ainda do seu jejum voluntário, levaram dois dias a percorrer as vinte e quatro léguas que separavam a capital da Lorena das colinas de Joinville. As grandes chuvas tinham cessado e o tempo, se bem que ainda não radioso, estava quase agradável.

Ides encontrar o azul do mar e o Sol de Roma suspirou Fiora quando, aos pés do castelo dos príncipes de Vaudémont, se despediram, esperando que não fosse para sempre...

Há tanto tempo que estou fora disse o jovem. É natural que não os consiga suportar.

Nesse caso, lembrai-vos que tendes amigos em França e se, depois de casardes com Antónia, quiserdes viver num clima mais fresco... ou se precisardes de escapar aos esbirros do Papa, não hesiteis em ir ter connosco.