Podeis estar certa de que não me esqueço. Deixai-me abraçar-vos por Antónia e por mim! Deus vos abençoe, donna Fiora e vos conceda, por fim, a felicidade que mereceis!
Teria de se dar a muito trabalho. Creio que não fui feita para ser feliz. Mas tentarei...
De pé no cruzamento e segurando no seu cavalo pela brida, ela ficou a ver o jovem partir a galope ao longo do Marne, cuja água límpida reflectia as nuvens esbranquiçadas do céu. A jovem pensava que os desígnios do Senhor eram mesmo insondáveis, porque lhe tinham permitido devolver a Battista o gosto pela vida, ao mesmo tempo que destruíam a sua irremediavelmente.
Então? perguntou Florent, que se mantivera a alguma distância por discrição. Que fazemos agora?
Mas... regressamos a casa, Florent.
Isso sei eu, mas depois?
Depois? Não sei, a sério que não sei... Tenho de reflectir e, sobretudo, de repousar. Nunca me senti tão cansada...
É natural. Vamos por pequenas etapas, já que não temos pressa...
Fiora era sincera quando dizia que ignorava como iria conduzir doravante a sua vida. À sua dor misturava-se, agora, alguma cólera contra aquele que a abandonava às suas responsabilidades com uma única recomendação: fazer do seu filho um homem digno dos seus antepassados, o que, no seu espírito, devia excluir o bom Francesco Beltrami, que nunca tivera qualquer título de nobreza. Mas, reflectindo bem, Fiora ignorava o passado dos Selongey e apesar de amar apaixonadamente o único espécime dessa família que jamais conhecera, reconhecia que ele não era um modelo de caridade cristã, nem de simples humanidade para além dos deveres de cavaleiro, que respeitava à letra. Quanto aos seus ancestrais, os verdadeiros, os Brévailles, o exemplo do velho Pierre não era das mais encorajantes.
Por outro lado, não estaria nos planos de Philippe, certamente, que o seu filho entrasse para o serviço do Rei de França. Que fazer, então? Que decidir? Que escolher?
Ao longo do caminho que a levaria a casa através do brilho caloroso da Primavera, Fiora começou, pouco a pouco, a esboçar um projecto para o futuro. Pouco importava o que Philippe pensava do seu sogro florentino, pouco importava o desprezo mal disfarçado que ele sentia por uma nobreza que considerava o negócio como uma das belas-artes! A jovem sentia renascer dentro dela a florentina e pensou que seria agradável, se Lourenço de Médicis ganhasse a sua guerra contra o Papa, regressar a Florença com os ”seus” filhos, com Léonarde e com aqueles que a quisessem seguir. A ideia de poder ficar com sua pequena Lorenza enchia-a de alegria. Uma voz secreta dizia-lhe que tirá-la aos bons dos Nardi seria uma crueldade, mas ela mandava-a calar-se, argumentando que, no fim de contas, Agnolo poderia muito bem terminar os seus dias na sua cidade natal e que, muito certamente, Agnelle também gostaria. Iria ser preciso estudar o problema. De qualquer maneira, a guerra, de que ela não sabia nada, estaria, provavelmente, longe de estar acabada.
Assim meditava Fiora enquanto as léguas deslizavam por baixo dos cascos do seu cavalo, mas à medida que se aproximava do Loire a pressa era cada vez maior de ver a sua pequena mansão cujo jardim devia estar todo florido, perfumado, de se enroscar efeminadamente naquele paraíso pessoal e, sobretudo, de não se mexer dali durante longos, longos meses...
Assim, quando, transposta a porta oriental de Tours, saiu do ”Pavê” que ia dar ao castelo real de Plessis-lès-Tours para entrar no caminho que ia dar a sua casa, Fiora, como se respondesse a um grito de à carga, lançou um grito que fez voar as gralhas que estavam pousadas numa seara e lançou o seu cavalo a
1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.
galope. Por cima do verde das árvores viu os telhados de ardósia e a guarita que cobria o pequeno torreão da escadaria. Sem abrandar, entrou pela alameda ladeada de carvalhos cheios de musgo e foi somente à vista da ”sua” porta que deteve o cavalo, que escoiceou o ar com os anteriores.
Léonarde! Péronnelle! Khatoun! Étienne!... Chegámos! Ninguém lhe respondeu...
Então, de repente, surgindo da cozinha, apareceu Péronnelle, que correu para os recém-chegados a gritar e a chorar:
Salvai-vos! Por amor de Deus, salvai-vos! Não deixeis que vos prendam!
Nem Fiora nem Florent tiveram tempo de lhe fazer qualquer pergunta: dois arqueiros do prebostado saíram atrás dela, tentando apanhá-la. Os dois soldados chamaram e outros dois apareceram vindos da parte de trás da casa. Correndo para a frente dos cavalos, estes apoderaram-se das bridas dos animais a despeito dos esforços dos dois viajantes para os impedir.
Que quer isto dizer? gritou Fiora, furiosa. Que me quereis?
Os soldados tinham conseguido apanhar Péronnelle e arrastavam-na, mais do que a levavam, soluçando e lançando gritos inarticulados.
Quer dizer que estais presa... disse uma voz, na qual Fiora pensou ouvir a alegria do triunfo.
Com efeito e apesar de ela mal acreditar no que os seus olhos viam, era Olivier le Daim que, seguido por um sargento, acabava de transpor a bela porta abobadada e se aproximava, sem pressa, de Fiora. Dois arqueiros, depois de a terem obrigado a desmontar sem grande suavidade, mantinham-na de pé entre ambos.
Presa? Eu? Mas porquê? exclamou a jovem.
O Rei, nosso sire, explicar-vos-á... talvez. Quanto a mim, só vos posso dizer que o vosso caso é grave... e que se trata, pelo menos, de traição...
Onde está o meu filho? Onde estão Dame Léonarde e Khatoun?
Em lugar seguro, não tenhais receio! E muito bem tratadas...
E eu? exclamou Florent, que tentava, em vão, afastar Fiora. Também estou preso?
Tu? disse o barbeiro real com desdém. Tu não passas de um... criado. Vai fazer com que te prendam noutro lado qualquer...
Nunca! Nunca abandonarei donna Fiora e se quiserdes levá-la, tereis de me levar a mim também.
Sargento! suspirou lê Daim, dando-se ares enfastiados de grande senhor importunado. Desembaraçai-me deste rapaz! Colocai-o na cavalariça enquanto pensamos no que fazer dele...
Enquanto levavam o jovem, que oferecia uma defesa vigorosa, Fiora, de mãos atadas, viu-se enquadrada pelos arqueiros. O golpe fora tão brutal que nem sequer pensou em oferecer qualquer tipo de resistência, mas deu a si própria o prazer de provocar desdenhosamente o homenzinho escuro e com cara de fuinha, que exultava de maneira desavergonhada:
Conseguistes o que queríeis, não é verdade? Se bem percebi, eis-vos instalado em minha casa!
Vossa casa? O Rei tem o direito de recuperar o que dá quando lhe traem a confiança.
Porque vós não o traís?
Não muito... não. Mas se isso vos dá satisfação, sempre vos digo que ainda não estou instalado, o que lamento porque a casa é verdadeiramente encantadora. E mobilada com tanto gosto! Vim só dar uma volta, mas podeis ter a certeza de que a minha entrada definitiva não tarda...
Não vos alegreis demasiado depressa! É sempre má política vender a pele do urso antes de o ter matado. Dito isto, para onde me conduzem? Para Loches?
Infelizmente, não! Eu teria preferido, mas o Rei ordenou que vos prendessem assim que chegásseis e que vos conduzissem para a prisão de Plessis. Creio que ele prefere ter-vos à mão...
Uma brusca angústia apertou o coração de Fiora e abateu um pouco o seu orgulho:
Já que pensais ter ganho, podíeis, pelo menos, mostrar-vos, senão generoso, pelo menos humano e dizer-me onde está o meu filho? Deveis compreender que estou inquieta?
A sério? No entanto, não vos ocupais muito dele! Assim como da vossa filha...
Fiora conseguiu não acusar o golpe, mas o homem acertara no alvo. Como é que aquele demónio sabia de Lorenza? Teria sido seguida, espiada desde a sua partida de la Rabaudière e durante todo aquele tempo? Era quase impossível, no entanto ela sabia que Luís XI apagara há muito tempo a palavra impossível do seu vocabulário. Renunciando a fazer outras perguntas que pudessem alegrar aquele miserável, ela virou-se para o sargento:
Já que vou para a prisão, quereis conduzir-me já para lá? Seja onde for, preciso muito de repouso...
Puseram-se em marcha em contraponto, os gritos furiosos de Florent, que deviam ter fechado na cavalariça. Uma meia hora mais tarde, Fiora e a sua escolta penetravam no pátio de honra do castelo. A jovem pensou que a iriam fechar na grande torre isolada do primeiro pátio, aquela a que chamavam a ”Justiça do Rei”, mas enganou-se. Limitaram-se a atravessar aquela espécie de esplanada onde se achavam os alojamentos da Guarda Escocesa e onde, no meio de gritos e encorajamentos vários daqueles filhos das Terras Altas se mediam, armados. Ela procurou, em vão, a alta silhueta do seu amigo Mortimer e, não a vendo, deixou de se interessar pelo que ali se passava.
Uma outra prisão, mais pequena, encontrava-se no ângulo do pátio de honra e dos jardins, encerrada na espessura da cintura de muralhas que defendia os aposentos reais. Devia ser reservada aos prisioneiros especiais e a recém-chegada, que esperava uma masmorra, ficou agradavelmente surpreendida. O quarto no qual a introduziram não possuía qualquer luxo: o chão era de grossas lajes, a porta era barrada com ferrolhos e enormes gonzos de ferro deixavam ver um pequeno postigo engradado. Quanto à janela, estreita e colocada suficientemente alta para desencorajar qualquer escalada, tinha duas barras em cruz da grossura do braço de uma criança. Mas era, mesmo assim, um quarto com um leito com cortinas, lençóis e cobertores, uma mesa para a toillette, uma outra para tomar as refeições, uma arca para a roupa e dois assentos: uma cadeira de braços e um escabelo. Por fim, o carcereiro, que acolheu a prisioneira, parecia-se com um ser humano e não com um molosso prestes a morder: quando abriu a porta, ofereceu-lhe a mão, recomendando-lhe que tivesse cuidado com ”degrau”. Ela agradeceu-lhe com um sorriso e depois, avistando o leito, atirou-se para cima dele para dormir como um animal estafado, mergulhando de uma só vez num sono profundo que foi, certamente, uma manifestação da misericórdia divina: aquele golpe tão inesperado, aquele golpe terrível, que a atingia após o calvário que acabava de suportar, teria sido capaz de a levar às portas da loucura.
Só acordou no dia seguinte de manhã com o barulho dos ferrolhos, quando o carcereiro entrou no seu quarto para lhe entregar a primeira refeição:
Deveis ter fome disse-lhe ele com aquele sotaque elegante que é apanágio das gentes de Touraine. Ontem trouxe-vos um tabuleiro, mas vejo que não lhe tocastes. É verdade que dormíeis tão bem...
É verdade disse Fiora. Tenho fome, mas se pudesse ter água para me lavar, ficar-vos-ia reconhecida.
Vasculhando na sua bolsa, ela tirou uma moeda de prata que lhe quis dar, mas ele recusou-a:
Não, obrigado, nobre dama! As ordens do Rei nosso sire são que não vos falte nada. Só cumpro o meu dever...
Que não me falte nada? Receio que não me possais dar aquilo que mais falta me faz: o meu filho...
O bravo homem fez um gesto de aflição:
Infelizmente, não! Não posso dar o que não me autorizam. Podeis crer que lamento... Vou buscar-vos água quente, toalhas e sabão. Entretanto, comei! A comida arrefece.
A refeição era constituída por leite quente, pão estaladiço e ainda morno, mel e uma pequena noz de manteiga envolvida numa folha de videira, para a qual Fiora olhou com verdadeiro estupor:
Vós alimentais assim tão bem todos os prisioneiros? Sei de muitos albergues de renome que não tratam assim os clientes!
Acontece que vós sois, neste momento, a única prisioneira e a minha mulher está autorizada a ir buscar a nossa comida às cozinhas do castelo. A vossa também. Além disso, esta prisão não é como as outras e recebe pouca gente. É bastante diferente do torreão do primeiro pátio. Enfim, repito, recebi ordens.
Estou autorizada a receber visitas? Gostaria de ver o sargento Mortimer da Guarda Escocesa.
La Bourrasque? perguntou o carcereiro, rindo. Toda a gente aqui o conhece. Infelizmente, não é possível. Primeiro, porque, senhora condessa, ninguém sabe que estais aqui. Depois, porque ele não está em Plessis... Vou buscar a vossa água.
Só mais uma palavra! Podeis dizer-me, ao menos, o vosso nome?
Grégoire, Madame. Grégoire Lebret, mas o primeiro nome é suficiente. Estou às ordens da senhora condessa!
E com uma espécie de pequena reverência, o surpreendente carcereiro deixou Fiora a devorar a pequena refeição ainda mais surpreendente. Enquanto comia, a jovem esforçava-se por pôr as ideias em ordem. Era evidente que a tratavam com certo favor, mas, no entanto, não tinham hesitado em lhe arrancar o filho, a querida Léonarde e a casa. E, lembrando-se da brutalidade com que, na véspera, os arqueiros tinham impedido Péronnelle de lhe falar e o tom usado pelo abominável Olivier lê Daim, era evidente que o Rei dera, no que lhe dizia respeito, ordens precisas, ordens que o barbeiro se coibia de transgredir, por mais vontade que tivesse de o fazer, mas porquê? Porquê? Que crime cometera? Lê Daim pronunciara a palavra traição e acrescentara que o caso era grave. Mas como, em que pudera ela trair o Rei, ou até a França? A abominável personagem também fizera alusão a Lorenza e, nesse momento, Fiora estremecera. No entanto, aquele nascimento, que era preciso manter secreto, não podia ter ofendido Luís XI ao ponto de a conduzir à prisão? Não se tratava senão de um mal-entendido habilmente explorado, sem dúvida, pelo barbeiro ou por qualquer outra pessoa que lhe queria mal. Ou então uma calúnia? Fiora sabia que o Rei era extremamente desconfiado e capaz, quando se julgava enganado, de passar de uma grande bonomia a um extremo rigor. Se fosse o caso, teria de se explicar com ele o mais depressa possível...
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