Seguia-se, evidentemente, um pedido de recompensa por um tão grande serviço. Fiora ergueu para o Rei um olhar espantado mas límpido, e entregou-lhe a carta com uma mão que não tremia.
O Rei crê-me capaz de escrever uma tal infâmia? Eu, que odeio o Papa e o seu séquito, com excepção de donna Catarina?
Vós sois mulher, e uma mulher muito bela. As mulheres da vossa espécie são capazes de tudo para obter a fortuna que lhes permita cuidar dessa beleza entretanto tão ilusória e assegurar-lhe uma moldura digna.
Eu sou rica, não preciso das benesses do Papa. Monsenhor Lourenço devolveu-me a quase totalidade da minha fortuna. E ia pactuar com aqueles que querem a sua perda?
A guerra entre o Papa e Florença está longe do fim. Escaramuça-se muito, sem dúvida, mas a cidade da flor-de-lis vermelha perde forças, ao passo que Roma as adquire. Aliás, a balança não estava equilibrada à partida e eu receio muito...
Então exclamou Fiora, levada por uma cólera brutal que esperais para os ajudar? Enviai tropas, enviai mais ouro ainda, mas não deixeis perecer Florença!
Um leve sorriso esticou os lábios espessos de Luís XI, ao mesmo tempo que as suas mãos aplaudiam vigorosamente:
Bravo! Que comediante me saístes, donna Fiora! Na verdade, quase me convenceis. É tentador.
Aquele desdém desarmou Fiora, mais do que o teria feito uma cólera violenta. A jovem deixou-se cair de joelhos:
Então matai-me, Sire!Matai-me agora mesmo... mas não me insulteis! Pelo meu filho vos juro que essa carta não é minha!
Esqueceis que já me escrevestes? A comparação é fácil...
É uma falsificação, não? O Papa e a corja que o rodeia são capazes de tudo e os copistas não faltam... Com... com que palavras, em que língua posso jurar-vos que nunca escrevi essa... esse lixo?
Subitamente, veio-lhe uma ideia surgida das profundezas da sua memória:
Sire! Estava uma pessoa junto de mim quando me pediram que escrevesse essa carta...
Quem?
Dame Léonarde, que me criou, sem dúvida, mas que não vejo há várias semanas e cujo paradeiro desconheço. Confesso, tive bastante dificuldade para redigir essa epístola, não por causa dos sentimentos de amizade e reconhecimento que menciono nela, mas porque sabia que incitar-vos a pôr fim à guerra estava para além dos meus poderes. Como me teríeis recebido se eu tentasse intervir na vossa política?
Muito mal. Ter-vos-ia dito que vos metêsseis no que vos diz respeito... Dame Léonarde, dizeis vós?
Sim, Sire!
O Rei bateu as palmas, o que acordou os cães e fez aparecer o criado que introduzira Fiora. Fazendo-o aproximar-se com um gesto imperioso, o soberano murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. O homem fez sinal de que compreendera e saiu tão depressa como tinha entrado. O Rei parecia ter-se acalmado um pouco, mas mordia o lábio inferior enquanto olhava para a jovem sempre ajoelhada entre um épagneul louro e uma cadela galga branca, que formavam com ela uma figura heráldica de uma beleza surpreendente:
Em todo o caso disse ele ao cabo de um instante já vos aconteceu enviar-me, pelo menos, uma carta mentirosa. Lembrais-vos da que escrevestes antes de partir para Paris? Que me enforquem se não é um chorrilho de mentiras!
Fiora baixou a cabeça sem responder, lembrando-se das palavras de Olivier lê Daim. Se o barbeiro sabia que ela dera à luz uma rapariga, também o Rei sabia.
Confesso, Sire. Menti.
Ah! disse ele com ar de triunfo. Admitis? Então, dizei-me onde estivestes durante esse longo Inverno!
Fiora levantou a cabeça: não ia renegar as suas entranhas, mesmo que isso lhe custasse a vida.
Primeiro em Paris, e nisso não menti. Depois, em Suresnes, numa pequena casa pertencente ao meu velho amigo Agnolo Nardi, o irmão de leite do meu pai... Dei lá à luz uma filha, que entreguei a Agnolo e à sua mulher.
Ah! Finalmente! exclamou o Rei, que saltou da sua cadeira como se impulsionado por uma mola e se pôs a andar de um lado para o outro diante da chaminé. Uma filha! E de quem é essa criança? Não vos deis ao cuidado de mo dizer, fá-lo-ei por vós: é do vosso marido, Philippe de Selongey que, a despeito do que me dizíeis, foi ter convosco secretamente. E é nisso que essa maldita carta não mente! Tínheis razão quando faláveis em ”elementos rebeldes”, por outras palavras no vosso marido, mas, evidentemente, era difícil anunciar-me que estáveis grávida, quando eu não sabia onde se encontrava esse demónio do Selongey. Foi por isso que vos fostes esconder... Como vedes, sei tudo! Atordoada, Fiora deixou-se cair sentada nos calcanhares, com desprezo por todo o protocolo:
Que estupidez é essa? exclamou ela com mais sinceridade do que cortesia. Eu ter-me-ia dado ao trabalho de esconder o nascimento de uma filha do meu marido? De uma filha a quem dei o nome de Lorenza Maria?
Lorenza?
É claro. Os que me são próximos poderão dizer-vo-lo: não só essa criança não é fruto da minha união com um rebelde, como é desse rebelde que eu quero ardentemente escondê-la... porque é fruto dos meus amores com Lourenço de Médicis. Escondi-vos que fui amante dele?
De facto não, mas...
A esta hora, o meu marido não ignora nada das minhas relações com Lourenço e, como o perdi para sempre, não tenho razões para me privar do amor da minha filha. É minha intenção reavê-la.
Portanto, é verdade que encontrastes o conde de Selongey? Onde? Quando?
Mais ou menos há três semanas, em Nancy, no priorado de Notre-Dame...
Santo Deus! Então, é lá que ele está escondido?
Fiora pôs-se de pé num salto, impulsionada por uma manifestação de orgulho.
Se o disse ao Rei, é porque ele não está escondido! Ele escolheu viver lá para poder, todos os dias, rezar no túmulo de monsenhor Carlos duque de Borgonha e único senhor que ele alguma vez aceitou servir. Um dia, talvez não muito longínquo, pronunciará lá os votos perpétuos.
Lentamente, Luís XI regressou à sua cadeira e ficou meio deitado, meio sentado nela, cobrindo com as duas mãos os dois leões esculpidos nos braços de madeira de carvalho. O soberano parecia mergulhado em profunda meditação. Depois:
Ele quer fazer-se monge, ele? Portanto, já não vos ama? acrescentou ele com uma ironia cruel que feriu a jovem.
Eu podia tê-lo trazido comigo suspirou ela. Mas... à custa de um perjúrio.
Qual?
Ele pediu-me que jurasse... perante Deus, que nunca pertenci a Lourenço. Não pude...
Gelada pela recordação daquele instante cruel, Fiora nem sequer virou a cabeça quando a porta se abriu de novo com um ligeiro ranger, mas logo se ouviu um grito:
Meu cordeiro!
No instante seguinte, Fiora estava nos braços de Léonarde, onde se abrigou com uma maravilhosa sensação de libertação e apaziguamento:
Léonarde! Minha Léonarde!... Oh meu Deus!
Ordeno-vos que vos separeis! ordenou Luís XI em voz alta. Mulher, eu não vos fiz vir aqui para assistir a uma cena de ternura, antes para que respondais às minhas perguntas!
E eu quero fazer-vos uma, Sire exclamou Léonarde. Que lhe fizestes, para que esteja neste estado?
Siderado, Luís XI ficou sem voz perante aquela velha solteirona que ousava interrogá-lo no tom que um oficial da guarda teria utilizado para com um ladrão apanhado no meio da rua.
Por Deus, comadre, esqueceis quem sou?
Não... e sois um grande Rei. Mas ela, esta pobre pequena, a quem a felicidade neste mundo parece ser recusada, representa mais para mim do que se fosse carne da minha carne! E agora fazei as perguntas que quiserdes... mas não nos separeis mais!
Como hei-de chegar à verdade? resmungou o Rei. Enfim! Tentemos!... Primeiro, que sabeis da criança nascida em Suresnes no princípio da Primavera?
O que é possível saber, Sire. Chama-se Lorenza. Isso diz tudo.
Seja, seja. Passemos a outra coisa! Tendes conhecimento de uma carta, escrita há cerca de um ano por madame de Selongey a donna Catarina Sforza e por ela confiada a Sua Eminência o cardeal-núncio...
A monsenhor della Rovere? Tenho! Essa carta deu muito trabalho a este pobre anjo...
Nesse caso, sois capaz de a reconhecer. Ei-la! Léonarde, obrigada a largar Fiora, pegou respeitosamente na carta que lhe estendiam, leu-a e atirou-a, enojada, aos pés do Rei...
Pua! Que coisa tão feia! Espero, Sire, que não acrediteis que donna Fiora é responsável por esse papel desonroso?
É a letra dela, é o selo dela e...
E é, sobretudo, obra de um grande falsário! Se o encontrardes, sire, mandai-o para o patíbulo mais próximo. Quanto àquele que vos entregou essa porcaria, aconselho-vos a que o junteis a ele.
É um dos meus mais fiéis conselheiros!
Sem o menor receio e para grande pavor de Fiora, a velha solteirona desatou a rir:
Aposto que esse grande conselheiro é o vosso Olivier le Daim... ou o Diabo, como dizem as pessoas daqui?
O... Diabo? disse o Rei, persignando-se precipitadamente duas ou três vezes antes de beijar a medalha que lhe pendia do pescoço.
É preciso dizer que a palavra lhe assenta que nem uma luva. Além disso, faria não importa o quê para ficar com aquela bela Casa das Pervincas, onde nós fomos tão felizes. Até tentou matar-nos!
Deixemos isso, por agora. Pretendeis que esta letra é falsa?
Ponho as mãos no fogo, Sire! Aliás... se me permitirdes, regresso dentro de instantes.
E, pegando nas longas saias de veludo púrpura, Léonarde abandonou os aposentos reais tão depressa quanto lho permitiam as pernas que há muito tinham perdido a juventude, deixando o Rei e Fiora estupefactos.
Mas... onde é que ela vai? murmurou a jovem, falando mais para si própria.
E Luís XI respondeu com um ar muito natural:
Ao sítio onde a pus com o vosso filho: aos aposentos que as minhas filhas utilizam quando vêm a Plessis, o que é raro.
Depois, subitamente furioso:
Espero que não tenhais pensado que sou cruel ao ponto de atirar com uma criança de dois anos para a prisão?
Uma grande alegria inundou Fiora, fazendo-a esquecer o que a sua própria situação tinha de incerto e até de perigoso, com um homem com o carácter daquele estranho soberano. O seu querido Philippe estava ali perto, talvez até conseguisse permissão para o abraçar, ao menos uma vez?
Faltou-lhe o tempo para o perguntar. Léonarde estava de regresso com uma pilha de papéis. Desembaraçando-os da fita que os atava, a velha solteirona entregou-os ao Rei com uma reverência talvez um pouco tardia.
Eu, Sire explicou ela nunca deito nada fora. Sobretudo papéis escritos.
O que é isto? Dir-se-ia um rascunho?
É um rascunho Sire! Da maldita carta que donna Fiora escreveu naquela noite. Santo Deus! Ela não conseguia escrevê-la, mas o Rei pode ver que não há aí nada de ofensivo para Sua Majestade! Vede, Sire! Sobretudo este aqui! Só lhe falta a parte final... mas caiu-lhe uma mancha de tinta! Então, foi preciso escrever outra.
Cuidadosamente, o Rei examinou o que lhe tinham dado, voltou a pegar na carta, comparou e enrolou tudo:
Fico com isto... mas dissestes há pouco, dame Léonarde, que messire lê Daim tentou matar-vos?
Sem Messire Mortimer e o messire grande preboste teria acontecido e a esta hora estaríamos a apodrecer por baixo de alguns palmos de terra na floresta de Loches.
Como é possível Tristan L’Hermite não nos ter dito nada? perguntou o Rei com severidade.
Léonarde encolheu os ombros:
Porque está na mesma posição que nós, Sire: não tem provas. Nada, senão as confissões de um bandido que ignorava o nome do seu cliente.
- Estou a ver! Bem... podeis retirar-vos, dame Léonarde. O Rei agradece-vos...
Posso levá-la comigo?
A velha solteirona rodeara com os braços os ombros de Fiora que, terrivelmente cansada, apoiava a cabeça contra ela.
Não. Temos de reflectir nisto tudo. Por agora, donna Fiora vai regressar à sua prisão...
Sire! suplicou a jovem deixai-me, ao menos, abraçar o meu filho! Ou então... permiti que Léonarde venha comigo. Khatoun basta para olhar pela criança.
Khatoun desapareceu! disse Léonarde com o rosto subitamente fechado. Não sei para onde foi.
Ah? Nesse caso ide depressa, Léonarde. O meu pequenino precisa mais de vós do que de mim... Ide, estou a dizer-vos! Não se pode contrariar o Rei! Não esqueçais que o meu destino está nas suas mãos!
É assim que o entendemos! Guardas! disse ele com voz forte, o que fez com que a porta se abrisse de imediato.
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