Fiora saudou profundamente e depois, com a morte na alma, seguiu os soldados que iam reconduzi-la à prisão. A jovem levava consigo a imagem de Luís XI, um cotovelo apoiado no braço da sua cadeira e o queixo apoiado na mão. Jamais Fiora vira rosto tão duro nem olhar tão gelado. Teria ele compreendido alguma coisa do que ela lhe dissera? Não juraria...

E ainda menos quando, na tarde do dia seguinte, os guardas, sob o comando de um sargento a foram, de novo, buscar. Dessa vez, foi para a grande sala de honra do castelo que a conduziram. Quando a jovem transpôs a soleira, parou por um instante, espantada perante o espectáculo que se lhe oferecia.

O Rei, vestido com mais elegância do que de costume, estava sentado no trono coberto pela flor-de-lis e com o grande colar de Saint-Michel ao pescoço. Junto dele a sua corte, a corte exclusivamente masculina que o rodeava quando a Rainha Carlota não estava presente. No entanto, Fiora sentiu uma certa alegria ao reconhecer Philippe de Commynes de pé num dos degraus que sustentavam o trono. Um piquete da Guarda Escocesa postava guarda junto das janelas e, junto à porta, o capitão Crawford mantinha-se a alguns passos do soberano, apoiado na sua grande espada...

Quando a prisioneira entrou, o silêncio foi completo e ter-se-ia ouvido uma mosca enquanto, lentamente, ela avançava para o Rei, parando apenas a três ou quatro passos do estrado real para saudar como convinha. O coração batia-lhe no peito com toda a força. Fiora estava certa de que se ia desenrolar, no meio daquele aparato todo, o seu julgamento. Uma audiência tão solene só podia ter um significado ameaçador...

No entanto, um pequeno incidente distendeu um pouco a atmosfera tão pesada. Cher Ami, o grande galgo branco, o cão favorito de Luís XI, que se deitava habitualmente aos seus pés sobre uma almofada, levantou-se e, num passo indolente, acercou-se de Fiora e lambeu-lhe docemente a mão.

Tocada por aquele sinal de amizade, ela acariciou a cabeça sedosa, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe subiam aos olhos. Aquele belo cão era, portanto, o seu último, o seu único amigo naquela assembleia? O próprio Commynes olhava obstinadamente para a ponta dos seus sapatos...

Aqui, Cher Ami! ordenou Luís XI, mas, em vez de obedecer, o grande galgo, como se tencionasse fazer de advogado da jovem, sentou-se tranquilamente a seu lado.

O Rei não renovou a sua ordem. Com um gesto, fez sinal a Fiora para que se levantasse, tossicou para aclarar a voz e, por fim:

Meus senhores, reunimos-vos aqui, nesta nobre assembleia, para serdes testemunhas do valor que damos à nossa justiça. A senhora condessa de Selongey, nascida sob o nome de Fiora Beltrami e aqui presente, foi acusada de traição à nossa coroa e de querer matar a nossa pessoa. A principal prova de acusação é uma carta, que a dame de Selongey nega em absoluto ter escrito. Outros elementos foram-nos fornecidos por uma terceira pessoa e esses ditos elementos tenderiam a inocentar a dita dama.

O soberano fez uma pausa, tirou um lenço e assoou-se ruidosamente, o que provocou um som de tempestade na assembleia silenciosa. Ninguém disse palavra. Então, ele continuou:

Dados os sinais de amizade que tínhamos dado à dame de Selongey, dado também o facto de o seu marido, cavaleiro do Tosão d’Ouro, ter agido sempre como um rebelde obstinado ao nosso governo, o nosso espírito encontra-se extremamente perturbado e não pode decidir capazmente num assunto tão delicado. Assim, resolvemos apelar ao julgamento de Deus!

Aquilo foi de tal modo inesperado que o silêncio se transformou em diversos murmúrios e Commynes, erguendo a cabeça, exclamou:

Sire! O Rei vai remeter-se a práticas de uma outra era?

Se quereis dizer, messire de Commynes, que Deus Todo-Poderoso passou de moda, não fareis parte durante muito mais tempo do meu séquito! disse Luís XI com um olhar assassino. Paz, portanto, e não interrompais mais! Pelo julgamento de Deus não entendemos o juízo de Deus. A dama condessa não será atirada à água, convidada a caminhar com um ferro em brasa nas mãos nem entregue a qualquer uma dessas práticas, das quais nunca pensámos bem. Mas as acusações que pendem sobre ela foram-nos entregues por duas personagens... Messire embaixador de Florença, dignai-vos comparecer perante nós!

Houve um movimento na multidão para a qual Fiora não olhava e Luca Tornabuoni, magnificamente vestido como era seu hábito, inclinou-se perante o Rei, que lhe sorriu gentilmente. Ao vê-lo, Fiora nem sequer estremeceu. Que o seu antigo apaixonado estivesse ali, diante dela, e que fizesse parte dos acusadores, não a surpreendia. Devia ter conseguido, com muita dificuldade, o papel de enviado de Lourenço junto do Rei de França e, por ocasião do seu último encontro, ela sentira que ele se tornara seu inimigo e que faria tudo para vingar o facto de ela o ter desdenhado... E como ele lançasse na direcção dela um olhar acompanhado da sombra de um sorriso, ela desviou os olhos com um desdém esmagador...

Dissestes-nos saber de fonte segura, messire embaixador, que a dame de Selongey que vós conheceis há muito tempo...

Desde a infância, Sire, e...

Que a dame de Selongey, dizíamos nós, deu à luz secretamente, em Paris, uma filha que seria ilegítima se a sua concepção não provasse que ela se juntou em segredo àquele notório rebelde que é o seu marido para conspirar contra nós?

De facto, Sire. Digo e repito, porque a minha fonte é das mais seguras...

Uma serva, parece? Uma antiga escrava que teria uma... inclinação por vós?

Falais de Khatoun? exclamou Fiora, incapaz de se conter. De Khatoun, que vós quase matastes em Florença? Ela, agora, é vossa amante?

O sorriso trocista deu-lhe vontade de lhe saltar para a garganta:

Por que não? Ela é encantadora e especialista no jogo do amor. Encontrei-a um dia por estas bandas, muito magoada por a terdes abandonado e terdes preferido percorrer essas estradas com um criado. Simplesmente, ela sabia por que razão íeis a Paris...

Sabia, de facto, mas também sabe que eu não vejo o meu marido há dois anos. Ignoro por que razão terá dito essa mentira...

Mentira? Vós é que o dizeis, bela Fiora. Pela minha parte...

Pela vossa parte continuou o Rei com uma voz subitamente severa esperamos que sejais capaz de defender a vossa... verdade de armas na mão contra qualquer campeão que se apresente para defender a causa da dame de Selongey

Um duelo? Mas eu sou um embaixador, Sire!

Um embaixador que se mete onde não é chamado deve submeter-se às nossas leis, assim como aos nossos costumes. De qualquer maneira, tencionamos prevenir o nosso querido primo, o senhor Lourenço de Médicis, da nossa intenção de vos obrigar a defender as vossas declarações em campo fechado.

Sire!

Ficai tranquilo! Não ireis só. Eu falei em duas personagens e penso, messire Olivier le Daim, que estais pronto, também vós, a submeter ao julgamento divino esta carta que vós mesmo nos entregastes, certificando a sua autenticidade... e reclamando uma certa casa como preço por este serviço.

Por sua vez, o desvairado barbeiro apareceu em cena:

Mas, Sire, nosso Rei... eu não sou cavaleiro, não sou capaz de me defender!

Não sois cavaleiro? Vós, que nós fizemos nosso embaixador na cidade de Gand? Eis uma falta grave, pela qual nos reprovaremos durante muito tempo, mas ficai descansado, temos muito tempo para vos treinar antes do recontro...

O Rei tenciona mesmo... enviar-me para a liça?

Na companhia de messire Tornabuoni. Sereis dois contra um único campeão. Fazemos esta escolha estranha porque tendes pouca experiência com a espada...

Pelo contrário, com o punhal e de preferência pelas costas, ele não teme ninguém! clamou Douglas Mortimer que, abandonando o seu posto de guarda, se foi colocar diante de Fiora. Com a vossa graciosa permissão, Sire, serei o campeão de donna Fiora! E matarei esses dois miseráveis, tão certo como chamar-me Douglas Mortimer, dos Mortimer de Glenlivet... E mais ainda, se o Rei quiser ter a bondade de mandar contra mim mais cinco ou seis desses malvados libertinos!

Oh! A alegria de sentir junto de si aquela força tranquila, aquele amigo seguro! Fiora ergueu para Luís XI um olhar cheio de esperança... mas este franziu o sobrolho:

Paz, Mortimer! Por Deus, vós estais ao nosso serviço, não ao das damas! O vosso sangue só deve correr pela França. Por isso, recusamos a vossa proposta... Que outro campeão se apresente. Do resultado do combate depende a sorte da dame de Selongey... Ide para o vosso lugar!

Com um gesto imperioso, Luís XI deteve Philippe de Commynes, visivelmente pronto a oferecer as suas armas...

Num assunto tão grave continuou o Rei não pode haver precipitações. Aquele que se apresentar perante nós, dentro de exactamente um mês, deve saber que, se for vencido, a dame de Selongey será executada, e que o combate será até à morte. Portanto, meus senhores, examinai e pesai bem a vossa decisão...

Está decidido resmungou Mortimer entredentes. Nenhuma força humana me impedirá de combater por ela, mesmo que tenha de pedir a minha demissão!

Entretanto, suficientemente perto do escocês, o Rei, como se não tivesse ouvido nada, continuou:

Que a dame de Selongey seja reconduzida à prisão! Ninguém está autorizado a falar-lhe.

O silêncio era ainda mais profundo do que por ocasião da sua entrada quando Fiora se dirigiu para a porta escoltada pelos seus guardas. Um silêncio onde entrava, sem dúvida, muito de espanto perante aquela decisão tão estranha: um duelo judiciário, no qual um homem teria de enfrentar dois adversários? Mesmo pouco hábeis, era, mesmo assim, uma maneira curiosa de ver a igualdade de oportunidades, sem falar do Senhor que, naquele assunto, via o seu papel um pouco diminuído.

A única consolação de Fiora, antes de abandonar a sala, foi ouvir o Rei ordenar que Tornabuoni e Olivier le Daim fossem guardados dia e noite nos seus aposentos até à manhã do combate. Magra consolação, porque se nem Mortimer, nem Commynes, estavam autorizados a bater-se por ela, só lhe restava um mês de vida...

CAPÍTULO XII

O ULTIMO DIA

O Rei, no entanto, parecia sentir alguma piedade pela sua prisioneira. No dia seguinte, depois de o carcereiro Grégoire ter levado o tabuleiro da sua primeira refeição na qual Fiora não tinha, praticamente, tocado o soberano regressou, muito alegre:

Venho anunciar-vos uma visita! exclamou ele. Uma boa visita...

Abrindo de par em par a porta que tinha voltado a fechar nas suas costas, Luís XI afastou-se para dar passagem a Léonarde, que transportava nos braços o pequeno Philippe. O grito de alegria da prisioneira fez subir aos seus olhos de homem bom uma lágrima de ternura e o Rei ficou um instante a contemplar o belo quadro formado por Fiora apertando o seu filho nos braços.

Meu querido! Meu amor!... Meu tesouro!

A jovem cobria de beijos apaixonados o pequeno rosto, as mãozinhas, os curtos cabelos castanhos que se encaracolavam no alto da cabeça redonda de Philippe, dando-lhe o ar de um anjinho... o que ele não era de todo porque, pouco habituado a efusões tão intensas, desatou a protestar. Fiora afligiu-se:

Magoei-o?

Não disse Léonarde, rindo mas vós quase o sufocais... Pronto, ponde-o no chão!... E vós, messirePhilippe, saudai a vossa mãe como vos ensinei!

O pequenito apoiou-se nas suas pequenas pernas e esboçou uma espécie de reverência tão desajeitada que Fiora ficou encantada.

Bom dia, senhora minha mãe disse ele muito sério. Estais bem?

Mas como Fiora se tinha acocorado diante dele, o pequeno atirou-se-lhe ao pescoço, gritando:

Mãezinha, mãezinha!... Aborrecia-me tanto sem vós!

No entanto, ele conhece-me mal! disse Fiora por cima da cabeça do filho.

Conhece-vos melhor do que pensais. Falávamos-lhe de vós todos os dias e, nas suas orações, ele nunca se esquece de pedir a Deus que lhe devolva a sua mãezinha...

E o meu paizinho também! rectificou o pequenito. Quando é que ele vem, mãezinha? Não sei, meu querido. O teu paizinho partiu para uma longa viagem, mas tu tens razão em rezar ao bom Deus para que ele regresse...

Deixemo-nos de choraminguices! disse Léonarde. E ponde um pouco de lado esse jovem para me abraçar. Ainda nem me dissestes bom dia!

As duas mulheres abraçaram-se calorosamente, ainda por cima porque a velha solteirona trazia com ela uma boa notícia: o pequeno Philippe e ela estavam autorizados a visitar todos os dias Fiora na sua prisão e até a tomar na sua companhia a refeição do meio-dia.