Quando o superior do pequeno convento encerrado nas muralhas de Plessis-lès-Tours penetrou na sua prisão para a ouvir em confissão, encontrou Fiora sentada no seu leito com as mãos pousadas tranquilamente nos joelhos.

A confissão durou muito tempo. Para ser compreendida por aquele homem simples que só ouvia os pecados dos guardas criados do castelo, Fiora teve de lhe contar uma grande parte da sua curta vida. À medida que ia falando, pareceu-lhe tudo tão estranho, tão anormal, que a jovem compreendeu perfeitamente o ar espantado do monge...

Tens a certeza, minha filha, que não estás a inventar nada? perguntou ele, horrorizado quando ela evocou as suas estranhas relações com o Papa. Será possível o nosso Santo Padre ter um comportamento tão negro?

Não me sinto surpreendida com a vossa reacção, senhor abade. Mas vós não sois italiano. A diferença está aí. Eu estou, simplesmente, a tentar fazer-vos compreender por que razão tive de cometer tantos pecados e peço-vos que mos perdoeis com a mesma sinceridade com que eu os lamento. Pensai que amanhã vou comparecer perante o tribunal de Deus. Mas Ele não terá necessidade de explicações...

Depois de o religioso ter abandonado a sua cela, Fiora, recuperada toda a sua coragem, comeu com apetite o fricassé de pato e o patê de vitela que o bom do Grégoire lhe serviu com uma bela salada e uma massa açucarada frita, tudo acompanhado com um vinho de Orleães fresco. Um pequeno cesto de cerejas terminava aquele festim a que a jovem fez as honras, recusando-se a ouvir as fungadelas do seu carcereiro e a olhar-lhe para os olhos, tão vermelhos como os de Léonarde. Após o que se deitou e adormeceu tão tranquilamente como se o dia seguinte fosse um dia como outro qualquer...

Acordando de madrugada para fazer uma longa e minuciosa toillette, Fiora voltou a vestir o vestido de que gostava particularmente, de espesso cendal branco e bordado com pequenos ramos verdes e cordões dourados entrelaçados. Incapaz de fazer a si mesma um daqueles penteados para os quais era necessária a ajuda de uma companheira, escovou cuidadosamente os seus espessos cabelos negros e fez duas tranças, que pregou na nuca com a ajuda de alfinetes, fazendo um pesado carrapito que nenhuma lâmina seria capaz de atravessar. Era a sua maneira de desafiar a morte. Em seguida, pegou num véu branco, colocou-o sobre a cabeça e enrolou-o em redor do seu longo e delgado pescoço como outrora no decurso das suas longas cavalgadas, quando viajava de vestido. Depois, esperou que a viessem buscar.

Fiora sabia que estava autorizada a ouvir missa na pequena capela dedicada a Notre-Dame de Cléry, o oratório preferido do Rei, que se situava a oeste do primeiro pátio, perto do torreão. Tornabuoni e lê Daim, esses, ouvi-la-iam na do castelo, que se situava a seguir aos aposentos reais.

Fiora apreciou aquela disposição, que a punha ao abrigo de um encontro com aqueles dois homens encarniçados na sua perda. Ao atravessar o pátio de honra para se deslocar à primeira, ela apercebeu, nos aposentos reais, uma tribuna decorada com as cores de França. Fora preparado um vasto espaço, delimitado por cordões de seda ligando quatro lanças espetadas no solo. De facto, o combate seria efectuado com espadas e adagas, para que se soubesse que não se tratava de um torneio. Sob aquele belo sol matinal, as tapeçarias azuis e douradas davam, apesar de tudo, um ar festivo àqueles preparativos.

Entretanto, tinham sido dadas ordens para que, à excepção da sua escolta armada, Fiora não se encontrasse com ninguém. Na capela só se encontravam um velho padre e o seu acólito, diante de quem ela se ajoelhou para seguir piedosamente o ofício divino e receber a Santa Comunhão. Depois, pelo mesmo caminho, levaram-na de volta à sua cela sem que encontrassem vivalma. O castelo, para além das sentinelas nas muralhas, parecia mergulhado num profundo torpor.

Uma refeição ligeira de mel, leite, pão e manteiga esperava-a e ela consumiu uma boa parte para se assegurar de que nenhuma fraqueza a trairia. O combate teria lugar ao fim da manhã, durante a última hora antes do meio-dia e já não faltava muito tempo. Assim, a jovem verificou o seu penteado e depois lavou as mãos. Estava pronta para se submeter ao seu destino, fosse ele qual fosse. E sentiu a alma em paz. Só necessitava de um pouco de coragem e pensou na sua mãe, Marie de Brévailles, que subira para o cadafalso com um sorriso nos lábios. Era verdade que partira com aquele que amava e, desse modo, as coisas tinham-lhe sido, sem dúvida, facilitadas. Fiora teria de morrer só e sem dar mostras de fraqueza. A jovem pensou que devia esse comportamento ao seu nome e à memória dos seus pais verdadeiros, assim como à do seu pai adoptivo.

O aspecto do pátio, encerrado entre os edifícios cor-de-rosa e brancos do castelo, pareceu-lhe bem diferente do que algumas horas antes quando, à hora prevista, foi conduzida ao lugar preparado para ela: uma cadeira em cima de um estrado, situada à direita e um pouco afastada da tribuna real, agora cheia de homens vestidos de escuro em redor da cadeira de braços sobrelevada de Luís XI. Este tinha ao pescoço o colar de Saint-Michel e as suas roupas, extraordinariamente, eram de veludo negro, tal como o chapéu ornamentado com medalhas e cuja aba, baixada à frente, fazia sobressair a linha do seu nariz.

Fiora saudou-o como convinha e dirigiu-se ao seu lugar. Só então a jovem viu o carrasco. Todo vestido de vermelho e com a espada ao ombro, devia ter seguido o pequeno grupo quando este saíra da prisão, mas Fiora não reparara nele.

A despeito da sua coragem, a jovem sentiu-se empalidecer quando ele se instalou a dois passos da sua cadeira com as mãos apoiadas no punho da arma cuja ponta estava espetada no solo. Então, ela obrigou-se a olhar em frente, para o espaço delimitado pelos cordões de seda. Um dos lados, na direcção da entrada do castelo, permanecia aberto, mas à excepção dessa passagem, o terreiro da liça estava rodeado por uma fila de guardas escoceses cujas armaduras polidas brilhavam ao sol sob a cota de armas com a flor-de-lis. Infelizmente, Mortimer não estava entre os presentes, assim como Commynes no grupo reduzido de conselheiros do Rei. Nenhum público, para além destes. Até a grade estava descida entre os dois pátios de Plessis. Por fim, de pé diante da tribuna, ela própria encostada à parede dos aposentos reais, estava o grande preboste, juiz do combate...

Junto dele quatro trombetas e, um pouco mais longe, quatro tambores cobertos de crepe negro.

Tristan L’Hermite virou-se lentamente para o Rei, que saudou com a rigidez de um velho soldado:

O Rei ordena que os combatentes entrem no terreiro da liça?

Com um sinal de cabeça e um gesto da mão, Luís XI disse que sim. Um instante mais tarde, anunciados pelo rufar dos tambores, Luca Tornabuoni e Olivier lê Daim faziam a sua entrada e ajoelhavam-se diante do soberano. Ambos tinham a túnica de couro e a meia-armadura apropriadas para um combate a pé. Atrás deles, um escudeiro transportava duas espadas e duas adagas. As couraças tinham-lhes sido emprestadas, porque eles não possuíam esses apetrechos de guerra, pelo menos no caso de Tornabuoni, cujo brasão fora pintado no pequeno escudo que lhe serviria de defesa. Lê Daim, não sendo nobre, mandara pintar um gamo sobre fundo azul, constituindo um brasão simbólico. Ambos arvoravam uma palidez assustadora.

Nesse momento, a grade ergueu-se para dar passagem ao pequeno cortejo constituído pelo padre e pelo Santíssimo Sacramento, diante do qual os presentes se iam ajoelhando à medida que ele passava. Uma jovem, rezando, caminhava alguns passos atrás do religioso. O seu grande toucado azulado e o seu vestido com flores-de-lís, como as cotas de malha dos escoceses, contrastavam com os trajes fúnebres do séquito real. Fiora reconheceu-a e o seu coração teve um baque: era a segunda filha do rei, Joana de França, duquesa de Orleães. E a sua chegada contrariou fortemente o seu pai:

Por Deus, minha filha, que vindes aqui fazer? exclamou ele depois de a custódia ter sido depositada num altar portátil coberto de tecido dourado ali instalado por dois monges.

A jovem princesa, dobrando o joelho com humildade, ergueu corajosamente para o seu pai o rosto ingrato e os olhos magníficos cuja cor era a mesma do grande céu azul daquela manhã.

Ainda não sei, Sire meu pai, mas pareceu-me que tinha de vir ter convosco a partir do momento em que pedistes a Deus que vos assistisse no vosso julgamento.

Como diacho soubestes disto no vosso castelo?

Recebi uma carta, Sire disse Joana, que não sabia mentir.

Uma carta de quem?

Permiti que vos dê a minha resposta no fim do combate...

Como vos agradar! Aliás, duvido que vos agrade. Bem, já que estais aqui, vinde sentar-vos junto de mim e passemos ao que se segue.

O seu olhar sombrio pousou-se nos dois homens ainda de joelhos:

Mantendes as acusações contra a dame de Selongey aqui presente?

Apenas Tornabuoni respondeu ”sim” com alguma firmeza na voz. O seu companheiro, cujos dentes batiam apesar da doçura da manhã, contentou-se em acenar com a cabeça, incapaz de falar.

Confessastes-vos, ouvistes missa e recebestes a Santa Comunhão? E, mesmo assim, mantendes o que dizeis?

Ambos responderam da mesma forma. O olhar do Rei era fulgurante, mas o soberano permitiu que os cantos da sua boca esboçassem um sorriso:

Nós pensamos saber por que razão demonstrais tanta certeza e tanta coragem, aliás bem-aventurada disse ele, trocista. Pensais que, como messire Mortimer e messire de Commynes não podem ser campeões daquela que acusais, mais ninguém arriscará a vida por uma causa tão má! Pois então olhai! E vós, trombetas, soai! Parece-me que vem lá um cavaleiro!

A grade, com efeito, erguia-se ainda mais e deixava passar três cavaleiros: um em traje de viagem, os dois outros de armadura... e uma imensa alegria inundou o coração de Fiora: porque se o primeiro era Commynes, um dos outros dois, que na cota de armas ostentava as águias de prata, era Philippe de Selongey...

Transposta a porta, os três homens puseram pé em terra e avançaram juntos na direcção da tribuna, diante da qual Tornabuoni e Olivier lê Daim os viam aproximar com um vago terror, persuadidos, sem dúvida, de que as regras do combate iam alterar-se e que teriam de enfrentar, pelo menos, dois dos guerreiros. Chegados diante do Rei, os três saudaram ao mesmo tempo e Commynes disse:

Sire, messire Mortimer e eu próprio cumprimos a missão de que o Rei nos deu a honra de nos encarregar. Que o nosso Sire permita que lhe apresente o conde Philippe de Selongey, cavaleiro da mui nobre ordem do Tosão d’Ouro, que se apresenta perante vós de sua livre vontade para defender a causa e a vida da sua mulher injustamente acusada. Ele aceita, naturalmente, o combate até à morte.

Do seu lugar, reparando no perfil acerado de Philippe, Fiora sentiu o seu coração derreter-se de amor. Nunca ele lhe parecera mais magnífico nem mais orgulhoso! Luís XI debruçou-se para ele com um cotovelo apoiado num joelho:

Agrada-nos acolher-vos nesta liça, conde de Selongey Contávamos, com efeito, que vos apercebêsseis do grave perigo em que se encontrava a condessa... devido à sua imprudência.

Se o que me disseram é exacto, Sire e eu não tenho razão para duvidar, não vejo aqui nenhuma imprudência, antes a inocência surpreendida e é com alegria que vou combater, com a permissão do Rei e em conjunto com estes dois homens que ousaram acusá-la pelos motivos mais baixos: o ciúme e a cupidez...

Um momento! Antes de entrardes em liça, é bom que esclareçamos a vossa posição perante nós. Vós fostes condenado à morte uma vez por nos terdes estendido uma armadilha e nos terdes tentado assassinar.

A palavra é grosseira, Sire protestou Philippe. Nós estávamos em guerra e vós éreis o mais mortal inimigo do meu senhor, monsenhor Carlos de Borgonha, que Deus tenha na sua guarda!

Admitamos! A condessa conseguiu, não apenas a vossa graça, mas também a vossa liberdade, que vos foi devolvida sem condições. O nosso governador de Dijon atingiu-vos, uma segunda vez, com a sentença de morte por terdes tentado sublevar o povo... Deixai-nos falar sem interromper, por favor! rosnou ele quando Philippe já abria a boca. Dessa vez, só a nossa vontade vos poupou a vida para não fazer chorar uns olhos demasiado belos, mas ficastes prisioneiro no nosso castelo de Pierre-Scíze... de onde vos evadistes. É exacto?

Selongey esboçou uma saudação para mostrar que estava de acordo.

Portanto continuou o Rei aos nossos olhos, sois um prisioneiro em fuga e, como tal, temos o direito de vos punir se, por acaso, conseguirdes aqui a vitória. Esperamos que os nossos mensageiros vos tenham exposto claramente a situação...