Será um prazer fazer a viagem convosco. Gosto tanto da vossa conversação.

Douglas Mortimer, que pilhava ao mesmo tempo um tabuleiro de amêndoas, uma tigela de mel e uma taça de passas, desatou a rir:

Tereis de vos contentar com a minha, donna Fiora. Eu é que estou encarregue de vos levar. E só estou aqui para isso. Messire de Commynes continua a sua viagem para Roma.

Para Roma! Que ides vós lá fazer?... Se não sou indiscreta, claro.

De todo. Tendes, simplesmente, de compreender. Encontrar-vos aqui foi, para mim, uma grande alegria e um grande alívio, porque a minha missão simplificou-se. Eu tinha ordens, com efeito, de vos procurar em Roma e de vos embarcar no primeiro navio com partida de Civicita Vecchia, fosse a que preço fosse. Só assim se explica a presença da espécie de exército que veio comigo.

Quereis dizer disse Demétrios, que íeis intimar o Papa a entregar-vos Fiora?

Exactamente. O Rei não gosta que os seus enviados desapareçam sem deixar rasto, ou sejam vítimas de um clima insalubre. Por esse lado, tudo está bem quando acaba bem, mas ainda não terminei com Sua Santidade.

O Rei de França irá oferecer os seus bons ofícios para apaziguar o conflito entre Roma e Florença? não deixou Demétrios de perguntar, a quem os jogos políticos apaixonavam desde que vivera perto de Luís XI.

De maneira nenhuma. A minha embaixada a Itália tem dois objectivos políticos: assegurar a Florença que o apoio da França se mantém e dar a entender ao Papa a irritação do seu Rei. Para este tenho uma carta que o deverá levar a uma compreensão mais sã das coisas. O Rei explica-lhe que, devido à sua atitude, se propõe reunir no próximo mês, em Orleães, a Igreja do reino para restabelecer a Sanção Pragmática em tempos decidida em Burges sob o reinado de Carlos VII e exigir a realização de um concílio geral, no qual poderá muito bem exigir a destituição de Sisto IV. Por fim, o Rei deseja que, no seu ódio para com Florença, o Papa não esqueça o Turcol O perigo cresce, por esse lado! Demétrios deixou ouvir um ligeiro assobio:

Sim senhor! Espero que consigais sair de lá vivo!

Não estou nada inquieto. Se me acontecer alguma coisa, o nosso sire tenciona ressuscitar o velho direito de herança ao reino de Nápoles e enviar um exército para o arrancar aos Aragão. Um exército, que, claro, passaria por Roma.

Para um soberano que não gosta da guerra disse Fiora dir-se-ia que ele está com pressa?

- Não se trata de uma ameaça, Madonna. O Rei é demasiado esperto para querer entrar numa aventura e a Itália não o interessa senão em função das suas boas relações com Florença e Veneza. O importante, para ele, no imediato, é saber se a Senhoria, o povo... e o clérigo florentino estão dispostos a agrupar-se em redor de monsenhor Lourenço para enfrentar as provações que Sisto lhes prepara.

Os Florentinos não são cobardes exclamou Fiora com uma voz onde vibrava todo o amor que sentia desde criança. A excomunhão de Lourenço e dos priores só aumentou a sua indignação. Quanto à guerra, todos sabem que ela vem aí e estão preparados. Não vos deixeis enganar pela alegria das nossas festas.

A guerra, sim... mas, e a interdição?

1 Primeira manifestação do galicanismo, A Sanção Pragmática libertava, de certa maneira, a Igreja de França da tutela temporal de Roma, que deixava de ter o direito de nomear bispos, abades e, sobretudo, receber os benefícios. Luís XI abolira-a no início do seu reino.

O facto de a Igreja ter um papel preponderante na Idade Média fazia com que a interdição representasse a morte espiritual de um Estado e, frequentemente, uma verdadeira catástrofe; igrejas fechadas, sinos calados, sacramentos, casamentos e funerais cancelados (os mortos não eram enterrados) e doentes sem tratamento, já que os hospícios estavam, sempre, sob controlo religioso.


O Papa não ousaria! disse Demétrios.

Os nossos espiões em Roma dizem que ele pensa seriamente nisso. Dizeis bem, esse homem, se bem que extremamente devoto, está pronto a tudo para fazer vergar Florença, abater os Médicis e estabelecer a fortuna e poder dos seus sobrinhos. Que vai fazer a cidade, nesse caso? Submeter-se?

Certamente que não! disse Demétrios. Uma cidade marcada pela filosofia grega não se vergará perante as iras arcaicas dos séculos bárbaros. E posso mesmo prever o que acontecerá se o clérigo executar as ordens do Papa: será expulso, será atirado para fora das muralhas como uma boca inútil. Ela tratará dos seus doentes e enterrará os seus mortos.”De qualquer maneira, ficarei muito surpreendido se o arcebispo obedecer...

É um prazer falar convosco, Demétrios! disse Commynes, rindo. Tudo parece apontar nesse sentido, com efeito, e o arcebispo põe todas as suas esperanças nesse concílio que o Rei de França pretende convocar. Creio que esta guerra, se vier a estalar, não durará muito e monsenhor Lourenço, príncipe sábio e hábil quanto baste, tem diante de si longos anos de paz... mas chega de falar de política! É de um gosto deplorável após um repasto tão delicioso.

De que quereis falar, então? perguntou Fiora com um sorriso. A política devora três quartos da vossa vida.

Falemos da vossa e do vosso futuro. Disse-vos há pouco que na Casa das Pervincas tudo vai o melhor possível na vossa ausência e que sois ansiosamente esperada. Suponho que tendes pressa de regressar?

Muita! Pensei tanto neles durante todos estes meses. O meu filho nem sequer me conhece, já que fui raptada pouco depois do seu nascimento. Se calhar, nem vai gostar de mim!

Seria preciso ter muito mau gosto suspirou Mortimer que, tendo comido demasiado, abandonou a mesa e se pôs a caminhar através da grande sala. Mas, por esse lado, não estou preocupado e vós, vós ficareis louca: é um belo homenzinho, que o próprio Rei gosta de ir ver. Passa muitas vezes por vossa casa quando regressa da caça.

A sério? Ele vai ver o meu pequeno Philippe?

Vai, pois! Sabeis como ele se preocupa com monsenhor, o Delfim, que é de fraca constituição e pouca saúde! Então, aquele pequenito sem pai nem mãe comove-o profundamente. Faz um pouco de avô com ele.

Quem diria que ele é tão delicado e atencioso? murmurou Fiora, comovida. Não sei se mereço tanta bondade, mas também vou gostar muito de o ver novamente...

Óptimo! Portanto, quando partimos? concluiu alegremente o escocês.

Decidiram que a partida teria lugar na semana seguinte, para dar tempo a que Fiora pusesse os seus assuntos em ordem e se despedisse... coisa que não podia ser feita precipitadamente para não ofender o Magnífico. Ela e Commynes deixariam, assim, Florença, no mesmo dia em direcções diferentes, ele para regressar porque o Rei desejava que ele permanecesse ao lado dos Médicis durante os meses difíceis que se anunciavam e ela... sem saber se regressaria um dia, porque a decisão pertenceria a Philippe.

Após o regresso dos seus hóspedes à cidade, Fiora tomou Demétrios pelo braço e levou-o para o jardim. Naquele começo de Verão, este encontrava-se na plenitude do seu desenvolvimento e ao acariciar com os olhos os tufos de rosas e os grandes ramos de loureiros carregados de flores, a jovem sentiu o seu coração apertar-se um pouco. De repente, aquele local, assim como a casa, tomava o aspecto frágil e ameaçado das coisas que se vão abandonar dentro de pouco tempo. Ao ver uma lágrima perlar-lhe as pestanas, Demétrios, que a observava sem que ela disso se apercebesse, apertou com força o braço pousado no seu:

Tens pena de partir?

Um pouco, sim... No entanto, não imaginas a pressa que tenho para me juntar a Philippe. Temos tanta felicidade estupidamente desperdiçada para recuperar. Cada vez me é mais difícil compreender-me a mim mesma... É como se houvesse duas mulheres a viver dentro de mim...

Não é ”como se”. É uma certeza. Tu amas Florença por causa das raízes de uma infância e de uma adolescência felizes e amas o teu marido por causa da maravilha de um amor apaixonado.

E se sofres por partir, é porque temes um pouco o que te espera. Tenho razão?

Tu tens sempre razão. Nós conhecemo-nos tão pouco, Philippe e eu e, no entanto, somos capazes de provocar tanto sofrimento mútuo!

Queres dizer que, se não fosse o teu filho, hesitarias em partir?

Não, não, nem por um instante! A minha vida é Philippe e sejam quais forem as provações, nunca renunciarei a ele.

Os passos dos dois passeantes tinham-nos conduzido à parte baixa do jardim, até junto da gruta que Demétríos apontou com o queixo:

E... este?

Ele esquecer-me-á. Tanto mais depressa quanto vai ser preciso defender a cidade. Além disso, elas são numerosas, as florentinas que sonham com ele. Bartolommea del Nasi... e quantas mais?

Talvez tenhas razão. E tu és capaz de o esquecer?

Nunca... no entanto, já o esqueci.

Eis uma resposta interessante, mas talvez um pouco difícil de compreender! Mesmo para um homem que pensava conhecer as mulheres!

Sem dúvida porque é difícil de explicar. Lourenço permitiu que eu sofresse menos de uma ferida que eu acreditava ser incurável e que o era. Simplesmente, devolveu-me o calor e o gosto pela vida, assim como eu o ajudei a acalmar o sofrimento causado pela morte do irmão.

E... se ele desejasse ficar contigo contra tudo e contra todos?

Queres dizer... à força?

Por que não?

Não. Ele não. Tu sabes que ele gosta de dizer que é preciso ter pressa para se ser feliz, porque nunca se sabe o dia de amanhã. Ele sabe agarrar o momento presente e gozá-lo intensamente. Mas não sei se ele compreendeu que... o amanhã chegou.

Demétrios não respondeu. Durante um momento, ele e Fiora caminharam em silêncio até ao olival que se estendia pela parte baixa do jardim e que marcava o seu limite. Caminharam os dois por um instante sob a folhagem prateada e depois o Grego deteve-se junto de um tronco nodoso, partiu um pequeno ramo de onde pendia um pequeno fruto verde e olhou-o por um instante antes de o estender à jovem:

Guarda este ramo preciosamente: para que te lembres de mim.

Tu... vais-me deixar partir sozinha? perguntou ela, subitamente contristada. Esperava que tu e Esteban regressásseis também a França?

Não, Fiora. A vagabundagem terminou para mim. Estou demasiado velho e se tu me permitires continuar a viver nesta casa com o meu fiel Esteban, não pedirei mais nada à vida. E depois... não sei se a dama Léonarde estará disposta a dar um banquete em minha honra.

Ela ficará tão feliz por me ver que te acolherá de braços abertos. No fundo, creio que ela gosta muito de ti.

Vê se perdes esse hábito de emprestar aos outros os teus sentimentos! Léonarde nunca gostou de mim e creio, até, que tinha medo de mim. Talvez com alguma razão, mas a questão não é essa. Eu quero ficar aqui, porque este belo país é o que se parece mais com o meu... e foi aqui que, por fim, encontrei a paz.

Com a ponta do dedo, Fiora acariciou o pequeno ramo e depois sorriu:

A paz cujo símbolo acabas de me oferecer?

Sim, e é mais sério do que pensas. Prometes-me uma coisa, Fiora?

Se quiseres.

Quero muito. Primeiro, não digas a Lourenço o que me disseste. Se calhar, ele ama-te mais do que pensas e, de qualquer maneira, é demasiado orgulhoso para aceitar ser um último recurso.

Eu nunca disse isso! exclamou Fiora, indignada.

Talvez, mas, grosso modo, foi esse o sentido das tuas palavras. Além disso...

É uma promessa dupla, então?

Não de todo, as duas resumem-se numa só: o silêncio. Nunca dirás a Philippe de Selongey que o Médicis foi teu amante.

Eu quero preservar a tua vida, mais do que a tua paz. Ele é capaz de te matar.

Ele não me perdoou por causa de Campobasso?

Eu desconfio desses perdões e não juraria que ele não voltará a falar disso. Portanto, peço-te, nada dessas confidências de travesseiro de que vocês, as mulheres, têm a mania! Eu conheço bem o teu marido: ele ama-te apaixonadamente. Pode ter passado uma esponja sobre... os acasos da guerra, mas não perdoará à mãe do seu filho por se ter consolado nos braços do Magnífico. Mesmo que ela tenha acreditado ser sua viúva. Prometes?

Prometo. Tu és mais sábio do que eu.

Mais uma coisa: tens a certeza de que não estás grávida? Fiora ficou tão verde como o pequeno ramo que acabava de meter no corpete. Nem por um instante imaginara, no decurso das horas ardentes vividas com o seu amante, que aquilo pudesse acontecer...

Eu... eu não creio. Não.

Basta olhar para ti para ver que não tens a certeza. Portanto, escuta-me bem: daqui a pouco vou dar-te uma poção. Ao menor sinal de gravidez, bebes o conteúdo de uma só vez com um pouco de mel. Ficarás doente de morte durante dois dias, mas, depois, poderás, sem medo, enfrentar o olhar do teu marido!