Eu sou amiga do Rei Luís, cujo aniversário se celebra hoje, e quero oferecer um pouco de vinho a esse infeliz. Tendes ordens para vos opordes?

N... não, mas...

Tendes ordens que vos impeçam de receberdes isto? Também deveis ter sede, assim como os vossos camaradas. Acabada a vossa tarefa, podeis beber à minha saúde. Só vos peço um instante!

Na sua mão de dedos finos brilhavam algumas moedas de ouro. O soldado avistou-as, maravilhado.

Quem sois? balbuciou ele. Sois bela como a Virgem Maria, Nossa Senhora!

Pouco importa quem sou. A minha tarefa é a de socorrer aqueles que necessitam. Posso aproximar-me?

A multidão, que antes resmungava, acalmou-se, seduzida pela imagem extraordinária daquela jovem vestida de azul, cuja autoridade era a de uma princesa e cujo olhar cinzento, tranquilo, se pousava nela. Aquela cena, no fim de contas, era mais interessante do que a que consistia em lançar gritos e atirar talos de couve a um homem acorrentado que parecia insensível. O sargento afastou-se:

Fazei como desejais, nobre dama... mas só por um instante!

Fiora já estava perto da jaula. A sua mula colocava-a à mesma altura do prisioneiro e, para imobilizar a montada, a jovem agarrou uma das ripas:

Tomai este vinho, meu amigo, e bebei! Precisais muito dele!

O som da sua voz quente conseguiu atravessar a espessa camada de vontade indomável em que o homem estava envolvido para não ouvir nem ver nada. A sua cabeça curvada descolou do círculo dos seus braços e ergueu-se mostrando um rosto macilento, mas, para Fiora, imediatamente reconhecível.

Mathieu! balbuciou ela enquanto as mãos ávidas agarravam no pichel emaciado e o prisioneiro bebia avidamente. Mathieu de Frame! Mas, como é possível estardes aqui? Onde está Philippe?

Ao ouvir o seu nome, o prisioneiro estremeceu e agora olhava para a jovem por cima da borda do pichel com uns olhos cheios de dor.

Morto!... disse ele por fim. Foi apanhado... como rebelde, em Dijon... e executado. Eu quis revoltar a multidão para o arrancar ao cadafalso. Foi por isso que me prenderam.

Por um instante, ficaram ambos num profundo e doloroso silêncio. Com o coração parado, Fiora olhava para o homem acorrentado. A sua voz, curiosamente sem timbre, pareceu-lhe vir de muito longe.

Morto? Quereis dizer... que o mataram?

Os homens do Rei, sim! O governador de Dijon, o senhor de Craon! Eu não o vi morrer porque me levaram antes... mas já estava na base do cadafalso... Perdoai-me! Trouxestes-me socorro e eu martirizo-vos.

Fiora já não ouvia nada. À sua volta tudo oscilava: o céu anil, os reflexos do rio no interior da velha porta, os cata-ventos do castelo, as ripas da jaula e o rosto jovem e patético do prisioneiro que, de olhos arregalados, a via empalidecer sem nada poder fazer para a ajudar. Mas Léonarde não estava longe. Instantaneamente, a sua mula atirou-se contra a de Fiora e a velha solteirona recebeu nos braços a jovem desmaiada.

Ajudai-me! gritou ela. Não vedes que ela desmaiou? Ou tendes corações de pedra, insensíveis a qualquer aflição?

O sargento veio em seu socorro e, na multidão, já algumas mulheres se esforçavam por se aproximar dela.

Não devia ter permitido isto! disse o soldado, arrePendido.

Nunca fizestes nada melhor, meu amigo! Mas é preciso admitir que, no seu estado, o espectáculo deste infeliz não é o que lhe convém. Não podeis ser um pouco mais humanos com os vossos prisioneiros?

Visivelmente aborrecido, o homem lançou em redor um olhar inquieto e depois, inclinando-se para a velha solteirona murmurou-lhe rapidamente:

Ela conhece este homem? É um amigo?

- É, mas que tendes vós com isso?

Não vos preocupeis! Dizei-lhe que tentarei ajudá-lo um pouco. Para que ela se lembre do sargento Martin Venant. E agora, ide ter com ela. Temos de continuar! Transportada por dezenas de braços prestáveis, Fiora fora tirada da sua sela e conduzida para o albergue do Carroi onde ela tinha tomado a sua refeição. Florent, perdido de angústia, segurava numa das suas mãos frias. Enquanto o sargento dava as suas ordens, Léonarde virou-se para ele:

Para onde levais este homem? Sabeis?

Para o castelo de Loches! Deus vos guarde! Léonarde não respondeu à saudação que lhe dirigiam. Já partira na direcção do albergue, em cujo interior tinham estendido Fiora num banco com uma almofada sob a cabeça. A estalajadeira dava-lhe palmadas nas mãos e Florent borrifava-lhe as têmporas com vinagre, mas nada feito: com o nariz contraído, as faces brancas e os olhos fechados, a jovem não reagia. Respirava com dificuldade mas respirava e via-se, por isso, que o golpe não a matara.

A despeito do medo que lhe apertava o coração, Léonarde esforçou-se por manter a calma. Apalpou as mãos e os pés de Fiora, tão geladas umas como os outros e ordenou:

Dai-me aguardente e mandai aquecer um tijolo para lhe pôr aos pés! E um cobertor! Pagaremos o que for preciso!

Não quereis que lhe preparemos um quarto?

Não, obrigada. É melhor tentar levá-la para casa. Nós moramos no solar de La Rabaudière, em Montils.

A Casa das Pervincas disse a mulher com um meio sorriso. Conheço essa casa. Uma bela casa!

Sim, mas neste momento parece ficar no fim do mundo! Vamos, Florent, mexei-vos em vez de olhardes para a vossa patroa com esses olhos cheios de lágrimas! Tratai de encontrar uma liteira, uma padiola, uma coisa qualquer, sei lá!

Sempre a falar, a velha solteirona introduziu com precaução e com alguma dificuldade uma colher de aguardente de ameixa entre os dentes cerrados da doente. Uma criada trouxe o tijolo quente e o cobertor em que envolveram o corpo que, bruscamente, se pôs a tremer como se um vento glacial tivesse entrado na sala. A bebida forte começava, também, a fazer efeito: Fiora tossiu várias vezes, sufocada. Léonarde endireitou-a e bateu-lhe nas costas. A tosse acalmou e as faces ganharam um pouco de cor.

Abrindo, por fim, os olhos, Fiora viu rostos desconhecidos inclinados sobre ela, mas apercebeu-se logo de seguida que estava nos braços de Léonarde. A jovem tentou sentar-se sem o conseguir.

O que é que eu estou a fazer aqui? perguntou ela com a voz ainda estrangulada pela aguardente.

Mas a jovem era das que acordam rapidamente e, de imediato, recordou o que acabava de se passar. Desatou a chorar e escondeu o rosto no ombro da sua velha amiga.

Levai-me daqui! suplicou ela. - Depressa! Depressa! Quero voltar para casa!

Felizmente, Florent estava de volta com uma boa notícia: a abadessa do convento vizinho possuía uma liteira e punha-a voluntariamente ao serviço de uma nobre dama em dificuldades. O veículo estava a chegar.

Léonarde agradeceu aos estalajadeiros e queria pagar os seus cuidados, mas estes recusaram:

Pobre dama, tão jovem! disse a estalajadeira, apiedada. Deve ter-lhe acontecido uma grande dor, para ficar nesse estado! Estava tão alegre e comia o patê com tanto apetite! Só tendes de me mandar o cobertor um dia destes! Cuidai dela!

Era uma recomendação supérflua e enquanto a liteira abacial as conduzia, às duas, ao solar, Léonarde perguntava a si Própria com angústia como havia de tratar aquela nova e terrível ferida que o destino infligira ao seu querido cordeirinho. Já uma vez, após a batalha de Grandson, onde tinham visto cair Philippe de Selongey, Fiora acreditara-o morto, mas talvez, no fundo de si própria, houvesse uma pequena esperança: acontece que por vezes, em combate, um ferido, dado como morto, regressa à vida. Fora o que se passara com Philippe: a sorte enviara-lhe Demétrios Lascaris, um dos melhores médicos da cristandade e Fiora vira o seu marido regressar vivo para ela. Mas que esperança, mesmo insensata, poderia haver depois de uma execução capital? Léonarde, aflita, esforçava-se por lhe acalmar os soluços dilacerantes que pareciam não cessar nunca. Fiora, mergulhada no poço da sua dor, parecia desaparecer um pouco mais a cada instante que passava e não ouvia nenhuma das palavras apaziguadoras que a velha governanta lhe prodigalizava. Talvez pensasse que depois do choro viria o sangue, e depois do sangue a vida?

Chorou assim durante todo o caminho e, se as lágrimas eram menos, os espasmos ainda a sacudiam quando Étienne e Florent, precedidos de uma Péronnelle aflita e incapaz de compreender o que se passava, a levaram para o seu quarto e estenderam no leito.

Só depois de deitada é que se acalmou progressivamente até atingir uma espécie de prostração, talvez ainda mais aflitiva do que o violento desespero que a precedeu. A jovem ficou assim durante horas, imóvel, aparentemente insensível, não ouvindo nada mas com os olhos bem abertos, o olhar fixo num ponto das cortinas que rodeavam o seu leito. Respirava entrecortadamente e arquejando dolorosamente de vez em quando, coisas que Léonarde escutava com o coração dilacerado, aterrorizada com a ideia de que a sua querida Fiora estivesse, talvez, a perder a razão.

Fora preciso pôr Péronnelle mais ou menos ao corrente e esta propôs, de imediato, mandar buscar o prior de Saint-Côme que, como bom discípulo do patrono da sua casa, gozava de grande reputação médica em casos de loucura e de exorcista em casos de possessão diabólica. Esta última palavra desagradou a Léonarde:

Ainda não chegámos aí! disse ela em tom seco. A nossa jovem dama está sob uma grande dor, que a invadiu ao ponto de lhe retirar os sentidos. Eu vou velar por ela esta noite

e se amanhã ainda estiver neste estado, veremos o que havemos de fazer. Por hoje, contentemo-nos em fazer com que beba um pouco de chá de tília com mel.

Enquanto a corajosa mulher, dócil, ia em busca do que lhe pediam, Léonarde acomodou-se junto da cabeceira de Fiora como tantas vezes antes, quando a jovem estava sofredora ou simplesmente febril e, pegando-lhe na mão abandonada sobre o lençol, levou-a aos lábios sem procurar reter as lágrimas que, desde o drama, se esforçava por conter:

Meu Deus orou ela em silêncio não a leveis, peço-Vos! Não permitais que o seu espírito se vá juntamente com aquele que ela tanto amou e se perca nas brumas da loucura! Ela tem um filho que vai nascer e que já não tem pai. Não lhe leveis a mãe! Eu sei que ela ainda vai sofrer, sei que está aos pés de um novo calvário e que a inconsciência pode ser uma misericórdia, mas...

Léonarde interrompeu-se. Fiora acabava de lançar um gemido e a velha governanta, erguendo a cabeça, viu que a jovem olhava para ela com uns grandes olhos, cheios de angústia.

Sinto-me mal! sussurrou ela. É como se me tivessem espetado uma faca no ventre!

Uma dor aguda, brutal, fora buscá-la ao abismo, para o fundo do qual ela se sentia descer, para a trazer de volta à superfície da vida. Para lhe escapar, a jovem virou-se de lado, encolhendo as pernas, mas o sofrimento não se apaziguou. Era como se uma onda abrasadora lhe percorresse as entranhas e, no seu espírito esgotado pelo desgosto, não compreendia de onde lhe vinha.

Já Léonarde tinha puxado para trás os lençóis e os cobertores e examinava o corpo enroscado, passando pelo ventre uma mão prudente. Procurando um certo conforto, o olhar de Fiora Parecia o de um animal prisioneiro. Subitamente, como que por milagre, a dor apaziguou-se sob as mãos de Léonarde e Fiora sentiu que os lençóis estavam húmidos...

- O que é que... o que é que eu tenho? murmurou ela.

Através das lágrimas que a inundavam, o rosto enrugado de Léonarde pareceu-lhe radioso:

Nada, meu cordeiro, nada que não seja natural! A criança está a chegar. Ides precisar de alguma coragem.

Coragem? Já não tenho nenhuma e creio que nunca mais a terei! Philippe! Meu Philippe!

A dor, que renascia, varreu momentaneamente o desgosto para deixar Fiora num simples estado de sofrimento. Péronnelle, que chegava com o chá, compreendeu, ao primeiro olhar o que se passava:

A criança está a chegar? exclamou ela alegremente. Vou preparar tudo o que é preciso!

E pôs-se, de imediato, a acender o fogão do quarto, no qual colocou um pote de água a aquecer. Já a havia na cozinha, mas ela achava que talvez não fosse demais. Após o que mandou aquecer alguns lençóis para substituir os de Fiora e empilhou uma infinidade de panos e toalhas. Léonarde, essa, não abandonou a cabeceira nem a mão da futura mãe que se agarrava à sua.

Quanto tempo durou a tempestade de dor que assolou Fiora? A jovem seria incapaz de dizer, mas pareceu-lhe uma eternidade. O tempo apagou-se e, com ele, a consciência de tudo o que não era a tortura do seu corpo. Até o seu desgosto desaparecera. Em breve, a dor não lhe dava descanso. Era como se a criança, qual gigante sacudindo as paredes da sua prisão, fizesse rebentar tudo dentro dela para chegar mais depressa à luz. A única coisa real para lá da angústia do suplício era o rosto ansioso de Léonarde iluminado pelas chamas da chaminé, a mão de Léonarde que apertava a sua com força e a voz de Léonarde que lhe murmurava palavras de encorajamento.