Fiora já não gritava, mas escapava-se dos seus lábios secos um gemido contínuo, que Péronnelle humedecia de vez em quando. A jovem arquejava, presa na armadilha daquele sofrimento sem remissão que nenhuma força humana, nenhuma magia podia fazer cessar e que era preciso suportar até ao seu fim natural. Por instantes, Léonarde passava-lhe pela fronte cheia de suor um pano embebido em água da rainha-da-hungria e o odor fresco reanimava, por um instante, a parturiente, mas

1 água-de-colónia


depois a criança regressava à carga e voltava a mergulhar a sua mãe no martírio.

Já esgotada pelas abundantes lágrimas que derramara, Fiora desejava desesperadamente um instante, um único, de remissão, que lhe permitisse abandonar a sua imensa fadiga. Tinha tanta vontade de dormir!... Dormir! Deixar de sofrer! Esquecer... aquela dor terrível cessaria um dia? Conseguiria dormir de novo?

Péronnelle, que sabia decididamente fazer tudo e que não ignorava nada acerca da maneira de conduzir um parto, examinava Fiora de tempos a tempos e esta suplicava-lhe que a deixasse em paz. Em seguida, sussurrava a Léonarde os progressos que constatava.

Quando a noite estava a atingir o seu termo, a consciência da jovem começava a enevoar-se quando Péronnelle, que até tinha afastado Léonarde, lhe ordenou que ajudasse e fizesse força.

Não posso... não posso mais... soluçava Fiora. Deixai-me morrer!

Vós não ides morrer e a criança vai chegar dentro de alguns minutos. Mais um pouco de coragem, minha querida!

Coragem? Fiora já não sabia o que isso era. No entanto obedeceu, quase maquinalmente e, subitamente, sentiu uma dor mais forte do que todas as outras, uma dor superior a todas as dores, que lhe arrancou um verdadeiro uivo. No jardim onde esperava, Florent deixou-se cair de joelhos, as mãos a taparem os ouvidos. Mas foi o último. No instante seguinte, Fiora, findo o parto, mergulhava, enfim, na inconsciência feliz que tanto desejara. Não ouviu nem o canto do galo, nem o choro enraivecido do bebé em cujas nádegas Péronnelle batia, nem o grito de alegria de Léonarde:

É um rapaz!

A jovem preferira desmaiar.

Quando voltou a si, pareceu-lhe que flutuava através de uma bruma ligeira. O seu corpo não existia. Tinha, miraculosamente, rompido as amarras que o prendiam a uma terra cruel e sem piedade, ao ponto de Fiora acreditar, por um instante, que atingira a morada dos bem-aventurados. No entanto, a voz familiar de Léonarde demonstrou-lhe que continuava a fazer parte do mundo dos vivos:

Ela abriu os olhos dizia aquela voz. Trazei-me, depressa, um ovo batido com leite, Péronnelle! É preciso restituir-lhe as forças.

Instintivamente, Fiora deixou deslizar as mãos ao longo do corpo e constatou que este estava de novo liso, quase como no passado. Recordou-se, então, do que suportara e pediu com uma voz ainda fraca:

A criança? Já nasceu?

É claro que nasceu! Ei-la!

Entre as mãos de Léonarde estava um embrulho branco, de tecido fino, que a velha solteirona, com gestos piedosos, alojou entre os braços e o peito da jovem mãe. Fiora ergueu-se um pouco e viu um pequeno rosto vermelho e amarrotado no enquadramento alvo de uma touca de cambraia bordada, dois punhos minúsculos, mas perfeitos, que permaneciam, cerrados, junto do pequenino nariz. A jovem afastou um pouco o braço para melhor o segurar e instintivamente sorriu àquele bebé, que era o seu.

Meu Deus, como ele é feio! murmurou ela acariciando com um dedo cauteloso uma das mãozinhas.

Quereis dizer é que é soberbo! anunciou Péronnelle, que acabava de entrar com água de rosas. Há-de ser um belo rapaz, podeis acreditar! Mas, não se parece nada convosco...

Uma cotovelada cortou-lhe a palavra, mas já Fiora examinava os traços miúdos, ao mesmo tempo que a vaga amarga do desgosto, por uns momentos afastada pelas dores do parto, se apoderava dela de novo:

Parece-se com o pai... com o pai que nunca verá! Foram necessários muitos cuidados e muitas palavras para que Léonarde conseguisse vencer aquela nova crise de lágrimas. Fiora acabou por se acalmar e aceitou comer um pouco, após o que caiu no sono reparador que pedira durante a provação nocturna. Léonarde tirou o bebé que ela tinha no seio e foi deitá-lo no berço que colocara no seu quarto, a fim de que a mãe pudesse repousar em paz.

Como este tivesse, também, adormecido, ela foi buscar água para fazer a toillette que a sua noite de vigília tornava indispensável, vestiu um vestido lavado, uma coifa recentemente engomada mada e desceu à cozinha para tomar o pequeno-almoço de que sentia necessidade.

Péronnelle estava ocupada a gabar ao seu Étienne as inumeráveis qualidades daquele a quem já chamava ”o nosso filho” enquanto lhe servia uma grande escudela de sopas de leite com canela e umas filhós bem quentes, mimoseando-o sempre com a sua incessante tagarelice. Étienne achou que era uma excelente ocasião para fugir, engoliu de um trago uma grande malga de sidra caseira e desapareceu.

Estavam as duas a debater os nomes que o pequeno receberia no baptismo quando Florent regressou do pomar com um grande cabaz de ameixas no braço. O seu rosto sombrio provocou a reacção das duas mulheres:

Não é preciso fazeres essa cara, meu rapaz! disse Péronnelle. O parto da nossa jovem dama, felizmente, correu bem e é isso que conta. Por agora, está a ter o descanso que merece.

Esqueceis muito depressa o que aconteceu ontem cortou o jovem. - Ela sofreu durante toda a noite e agora está a dormir, mas não vai dormir para sempre. Que vai acontecer quando acordar para a realidade?

Achais que não pensei nisso? disse Léonarde. Ainda há pouco ela desatou a chorar, quando eu pensava que não lhe restava uma única lágrima no corpo. Vai ser preciso vigiá-la de perto e, sobretudo, esperar que ela passe para o filho todo o amor que sentia por messire Philippe. Mas é certo que estamos todos nas mãos de Deus, nós, que a amamos...

Sem dúvida, mas não passa disso! Lembrais-vos, dama Léonarde, daquele mercador que me queria comprar uma mula, ontem, no adro de Saint-Martin?

Daquele estrangeiro cujo rosto me faz lembrar alguém?

Sim. Bem, acabo de o encontrar na alameda dos carvalhos. Vinha para aqui.

Para fazer o quê?

Perguntei-lhe. Respondeu-me que procurava o castelo do nosso sire, o Rei...

Que disparate! Ele não passou diante de Plessis e não viu Os guardas à entrada?

Foi isso que lhe fiz notar. Ele respondeu-me que os guardas, justamente, o tinham recebido com grosseria e que queria saber se não haveria outra entrada menos áspera. Confesso que não fui muito mais amável do que as sentinelas. ”O Rei, disse-lhe, ainda não regressou da guerra e os estrangeiros não têm nada que aparecer no castelo dele.” Então, ele disse que sabia isso muito bem, mas que lhe tinham gabado tanto as maravilhas daquele castelo que desejava admirá-lo antes de regressar ao seu país. Pensava que talvez houvesse uma porta de comunicação entre o parque real e este. Para terminar, até chegou a levar a mão à bolsa. Dar-me dinheiro, a mim, para que o deixasse entrar em nossa casa! concluiu Florent, ainda corado de indignação. Já vistes semelhante coisa?

E que fizestes vós? perguntou Léonarde enquanto deitava uma colher de mel na sua filhó.

Disse-lhe que não comia daquele pão e que faria melhor em seguir o seu caminho. O que ele fez, aliás, encolhendo os ombros, mas com um sorriso de que não gostei nada. Virou-se várias vezes para olhar para a nossa casa. Talvez me engane, mas fiquei com má impressão dele.

Péronnelle, em cuja alma dormia um cão de guarda, declarou, então, que também não gostava nada daquela história e que ia mandar Étienne a Plessis para falar com messreetienne Lê Loup, criado grave do Rei, que velava pelo castelo na sua ausência, para o advertir do incidente. Não que temesse que um estrangeiro solitário pudesse causar algum dano no domínio real sempre poderosamente guardado, mas para que Lê Loup consentisse em estender a vigilância à casa das pervincas.

Léonarde admitiu que era boa ideia e pediu que a vigilância fosse suficientemente discreta para não inquietar Fiora, já que esta recebera, no espaço de dois dias, mais do que a sua conta de dor e angústia.

Talvez estejamos a fazer do buraco de uma toupeira uma montanha concluiu ela. Pode ser que esse estrangeiro não passe de um curioso.

Por trás de um curioso pode esconder-se um espião afirmou Florent, que não desarmava. Ou pior ainda: um apaixonado!

Por que razão seria pior um apaixonado do que um espião?

. perguntou Léonarde sem conseguir conter o riso.

. Eu sei o que digo. Eu sei muito bem que são muitos os homens que admiram dona Fiora e que os haverá sempre, mas não gostaria que tivesse de fazer frente ao amor de uma personagem como aquela. Não vistes os seus olhos? São frios e cruéis. Aliás, não acredito que seja mercador. Cheira a guerra a quinze passos.

Léonarde, desta vez, não disse nada. A recordação que guardava do estrangeiro dizia-lhe que Florent, talvez inspirado pelo seu amor sem cessar acordado, podia muito bem ter razão. Ainda por cima porque o desconhecido vinha de Itália e Léonarde sabia, por experiência própria, que as gentes de baixa condição floresciam ali mais facilmente do que no reino de França, onde o rude punho do Rei Luís e a polícia do grande preboste Tristan L’Hermite faziam reinar nos vagabundos um temor saudável. De qualquer maneira, não fazia mal a ninguém que a casa fosse mais bem guardada. Pelo menos até ao regresso do Rei, que não devia tardar.

Assim, os dias correram sem que voltassem a ver a inquietante personagem.

CAPÍTULO IV

O ATENTADO

Contrariamente ao que temiam os seus companheiros, Fiora recompôs-se rapidamente do parto. Cinco dias depois já estava de pé e parecia ter recobrado a saúde, mas não tinha leite para dar ao pequeno Philippe. Foi preciso recorrer, sem demoras, à ama cujos serviços Léonarde e Péronnelle tinham assegurado adiantadamente, prevendo aquele género de incidente que por vezes ocorria. Era uma rapariga forte da aldeia vizinha de Savonnières, que, deixando o seu último rebento aos cuidados da sua mãe e do rebanho de cabras familiar, se foi instalar no solar com evidente satisfação. De resto, foi uma aquisição bastante agradável, porque estava sempre de bom humor, era plácida e silenciosa, adorava visivelmente as crianças e ligou-se instantaneamente à que lhe confiaram. A cama fofa e a comida copiosa de Péronnelle fizeram o resto e Marceline era o seu nome passou a fazer parte dos habitantes da Casa das Pervincas com a intenção, bem assente, de ficar nela o mais tempo possível. Entendeu-se rapidamente com a gente da casa e, se Fiora a impressionou, pareceu-lhe a coisa mais natural do mundo, já que era a castelã. Não imaginou, nem por um só instante, que se desenrolava um drama diante dos seus olhos.

Fiora, com efeito, já não era a mesma e aqueles que viviam a seu lado mal a reconheciam quando ela aparecia, uma silhueta negra, alta e magra, que os véus do luto faziam fantasmagórica. Já não ria, mal falava e passava longas horas sentada no banco de uma janela a ver passar o Loire na ponta do seu pequeno domínio sem tocar nos bordados que a tinham distraído durante a gravidez, as suas longas mãos ociosas abandonadas no tecido negro do seu vestido. Aparentemente, não tinha lágrimas e nem uma única vez pronunciou o nome do marido. Pior ainda, quando Léonarde tentou aproximar-se com palavras apaziguadoras, ela cortou-a rapidamente.

Não! Por piedade, não me digais nada! Não me faleis dele nunca mais. Philippe está morto e longe de mim... e a culpa é toda minha!

Então, a jovem abandonou a sala como se fugisse e desceu ao jardim para se ir sentar sob um pequeno berço de rosas musgosas, obra-prima de Florent. Este não andava longe, aliás, ocupado a limpar um maciço de goivos que os gatos tinham danificado numa noite de lua cheia. O seu primeiro movimento foi de ir ter com a jovem, mas apercebeu-se do seu rosto imóvel, do seu olhar sem vida e não ousou, temendo uma resposta que o ferisse. A sua bela dama parecia ter perdido a alma.

Em certo sentido era verdade. Fiora ligava o seu desespero e a sua mágoa àquele instante demente, insensato, em que se arrancara aos braços de Philippe para se afastar dele, decepcionada e ferida no seu orgulho. No entanto, esperara-as tanto, procurara-as tanto, aquelas horas de felicidade que acabava de interromper. E tudo porque Philippe, em vez de se consagrar a ela, pretendia continuar a levar a sua vida habitual, dedicado por inteiro ao serviço do suserano, depois de a ter relegado para o seu castelo borgonhês. No momento, a ideia parecera-lhe absurda e quando ele pronunciara a palavra obediência, todo o seu ser se revoltara. A vida que ele lhe oferecia, não a queria. Não lhe cabia a ele, que lhe provocara tanto mal, provar, enfim, que a amava mais do que tudo no mundo e tentar fazê-la feliz? Sim, pensava ela e pensara-o durante cada um dos momentos que se tinham seguido até àquele minuto terrível em que Mathieu de Frame lhe contara o que acontecera em Dijon, num dia daquele mês de Julho em que, na doçura daquele mesmo jardim, ela se abandonava à felicidade de transportar o ”seu” filho, acariciando a esperança de o ver, um dia, regressar.