Os pensamentos torturantes continuaram a sua ronda. Se ela tivesse aceitado deixar-se conduzir a Selongey, viver a existência que ele lhe oferecia, teriam as coisas sido diferentes? Teria ele ficado com ela? A razão murmurava-lhe que não, que tudo se teria desenrolado na vida de Philippe como ele tinha decidido, que teria continuado aquela luta insensata por uma Borgonha independente que não passava de um logro e que não teria evitado o cadafalso.
O cadafalso! Que maldição arrastava ele, aquele velho montão de pedras e madeira, que, após beber o sangue dos seus pais, bebera o do homem que ela amava? Tudo o que fazia parte da sua vida ia, obrigatoriamente, acabar naquele local de justiça? Talvez, se tivesse mantido os braços com força em redor de Philippe, tivesse conseguido mantê-lo junto de si, impedindo-o de ir para aquele destino atroz e inútil!
Por mais afastada que a Casa das Pervincas estivesse dos barulhos do mundo, algumas notícias chegavam de tempos a tempos, notícias essas que Péronnelle trazia do mercado, ou que Florent apanhava na cidade. Assim, souberam que no dia 18 de Agosto, em Gand, Maria de Borgonha casara com Maximiliano. Seria, um dia, Imperatriz da Alemanha e já não precisava da Borgonha que a conduta perigosa do defunto duque, aliás, afastara de si. Philippe morrera por nada, por nada, nem sequer por uma ideia. Não se luta contra a História, mas ele não quisera saber: o que ele quisera fora conservar para a ”sua” princesa a herança ancestral e Fiora, agora, já não sabia muito bem o que odiava mais, se aquela Maria que levara Philippe à perdição ou o governador de Dijon como se chamava ele? O senhor de Craon? que assinara a ordem da execução.
Os únicos instantes em que o turbilhão dos seus pensamentos lhe dava algum descanso, Fiora passava-os junto do filho. O bebé era soberbo. O leite de Marceline parecia convir-lhe às mil maravilhas e o bebé prometia ser grande, forte e talvez feliz na vida: se palrava muito, chorava pouco e às vezes nem isso, porque quando ficava colérico, os seus olhos, ainda quase sem tonalidade, permaneciam secos. Diante dele, Fiora era toda adoração e quando o tinha nos braços e acariciava com a ponta do dedo a ligeira penugem castanha da sua pequena cabeça, envolvia-a uma tal vaga de amor que esquecia, por um momento, o sofrimento. Então, demorava-se junto do berço, uma barca frágil à qual, como se estivesse em vias de se afogar, se agarrava para não enlouquecer. Quando se afastava, os pensamentos amargos regressavam.
Aproximava-se a época das vindimas quando, de repente, a província se animou. O castelo de Plessis, que parecia um pouco adormecido na ausência do seu senhor, acordou. Limpou-se a fundo e encheram-se as cozinhas de provisões, ao mesmo tempo que começavam a chegar correios com ordens e algumas carroças com móveis: numa palavra, Luís XI estava de regresso.
Soube-se que não estava longe quando chegaram os objectos da sua capela, que nunca o abandonavam. De facto, estava em Amboise para ali visitar a Rainha Carlota, sua mulher. Esta preferia de longe o seu belo castelo, erguido na colina diante da qual corria o Loire, ao castelo de Plessis. Mas o Rei nunca ficava muito tempo e dois dias depois da chegada da capela, ouviram-se soar as trombetas de prata que anunciavam a sua aproximação.
Nessa noite, pela primeira vez desde o nascimento do seu filho, Fiora saiu do seu mutismo e, em vez de subir para o seu quarto depois do jantar, como se tornara seu hábito, ficou na sala e pediu a Léonarde que ficasse com ela. Como a noite estava um pouco fresca, Florent tinha acendido a lareira com troncos de pinheiro cuja resina estalava alegremente e perfumava a grande sala silenciosa. A jovem sonhou por um instante enquanto olhava para as chamas e depois virou para Léonarde um olhar cansado.
Peço-vos, desde já, perdão pelo que vou fazer, minha querida Léonarde. Acreditai que, antes de me ter decidido, reflecti muito. A ausência do Rei deu-me algum tempo, mas, já que regressou, não posso adiar mais.
Ignoro o que pretendeis dizer-me, Fiora, mas sabei que a única coisa que conta para mim, neste momento, é justamente que, finalmente, faleis comigo. Esse longo silêncio desesperava-me. Parecia-me... que já não contava para vós, que já não era a confidente das vossas penas e...
A voz resvalou para um soluço que a velha solteirona engoliu corajosamente, mas uma lágrima brilhou-lhe, mesmo assim, nos seus olhos azuis que pareciam conservar uma juventude eterna. A mão da jovem pousou na da sua fiel companheira.
Que posso eu dizer que vós não saibais já? Pelo contrário estou-vos reconhecida por me deixardes com o meu silêncio. Não era capaz de ouvir outras vozes que não as da minha dor e dos meus remorsos.
Aquelas palavras fizeram Léonarde pular e a sua tristeza varreu-se-lhe:
Eu sabia que era isso! Remorsos? Porquê? Porque não permitistes que messire Philippe vos fechasse em Selongey onde ele não ficaria muito tempo, apressado como estava por voltar ao combate? Quereis dizer-me que isso teria mudado o abominável seguimento dos acontecimentos e que seríeis menos infeliz no seu castelo do que sois aqui?
Sem dúvida que sim, mas estaria em Selongey, como ele queria e a diferença é essa. Léonarde, o homem que mandou matar o meu marido é governador de Dijon ”pelo Rei”... e eu não me reconheço o direito de educar o seu filho numa casa dada pelo Rei.
Doce Jesus! gemeu a velha solteirona, que mudou de cor não me ides dizer que vos ides lançar, de novo, na perseguição de não sei que vingança insensata? Não me ides dizer que vai recomeçar tudo de novo como durante aqueles dois anos terríveis que passámos, vós e eu? Diante de Deus que me escuta, juro que não o poderei suportar. Não, não conseguirei!
Desta vez, ela desatou aos soluços e escondeu o rosto nas mãos, que tremiam.
Acalmai-vos, minha querida disse a jovem docemente juro-vos por tudo o que há de mais sagrado que a ideia de vingança nunca me passou pela cabeça e que a questão não é essa. Eu sei muito bem o que sofrestes e até tive alguns remorsos. Aliás, não atingi a meta do meu último projecto. Tal como Demétrios! As mós do Senhor moem lenta mas seguramente e os grãos de areia que nós somos davam provas de uma grande presunção! Mais vingança não, minha Léonarde, nunca mais!
A sério?
-Já não confiais em mim? Se ainda há pouco vos pedi perdão pelo que vou fazer, foi unicamente porque sei que sois feliz aqui e que vos sentis ligada a esta casa, aliás tal como eu. Vai ser duro separarmo-nos, mas tendes de me compreender: mesmo que não guarde rancor ao Rei por uma condenação da qual, provavelmente, não teve conhecimento, esse senhor de Craon agiu em seu nome. Ficar aqui seria aprovar tacitamente o que foi feito. O meu filho reprovar-me-ia mais tarde.
Fiora tinha-se levantado e caminhava lentamente ao longo da chaminé com as mãos no fundo das suas largas mangas. Léonarde seguia-a com os olhos numa espécie de desânimo. Depois, o seu olhar deslizou pela decoração que as rodeava e, sentindo que o seu coração se apertava, compreendeu que se lhe tornara querida e que esperara terminar ali os seus dias. Por fim, falou:
Pensais, portanto, criar esta criança no amor exclusivo pela Borgonha e no ódio pela França?
Não. É claro que não, mas...
Quando ele tiver vinte anos, há muito que a Borgonha terá passado a ser uma província francesa. O Rei Luís já não fará parte, talvez, deste mundo, mas o seu filho reinará e o vosso será um dos seus súbditos. Quereis, desde já, colocá-lo num campo rebelde que, ainda por cima, praticamente já não existe, porque se trata, para os antigos súbditos do duque Carlos, de escolher entre a França e a Alemanha? Tendes de pensar no seu futuro. Onde está esse futuro, se ofendeis o Rei devolvendo-lhe o que ele vos deu?
O Rei é um homem sábio. Compreender-me-á, certamente. É mais normal que eu leve o meu filho para Selongey.
Estais certa de que continua a existir um castelo de Selongey?
Fiora tinha-se imobilizado e fixava Léonarde com um olhar estupefacto:
Por que razão não existiria?
Porque em todos os países do mundo, quando um homem é condenado por rebelião, os seus bens são recuperados pela Coroa e as suas defesas são destruídas. Pode ser que o castelo tenha sido arrasado. E se o nosso pequeno Philippe não tivesse mais nada senão este solar que vós quereis devolver?
Esqueceis que Agnolo Nardi faz frutificar a parte da fortuna que me foi deixada? Pelo menos, terá isso!
Pouca coisa para o grande senhor que ele tem o direito de ser. Por que, em vez de atirar amanhã os vossos títulos de propriedade à cabeça do Rei Luís, não lhe apresentais a vossa queixa? Ele demonstrou-vos que podeis confiar nele e que tem, por vós, uma grande amizade. Além disso, como dizíeis ainda há pouco, é um homem sensato... mas também não podeis esquecer o que messire de Commynes nos disse por ocasião da sua visita: ele mudou e parece que, agora, tem prazer na guerra que antes detestava. Até exilou o seu melhor conselheiro...
Para Poitiers? Não foi um grande exílio.
Sem dúvida, mas o senhor de Argenton pensava regressar brevemente e nós nunca mais o vimos. Cuidado com as ofensas ao Rei, Fiora! A profundeza do seu espírito talvez esconda abismos insondáveis. Para onde pensáveis ir, agora que o Inverno está à porta? Para Selongey?
Não, já não. Primeiro para Paris, para casa dos nossos amigos Nardi, que ficariam, tenho a certeza, muito felizes por nos acolherem e que...
... e que talvez ficassem menos se chegássemos a sua casa como indesejáveis, talvez como proscritas? Para onde iríamos, então, com um bebé de algumas semanas nos braços? Esta casa é vossa, Fiora, não tendes outra! Pensai nisso quando, amanhã, falardes com o Rei!
Tendes uma lógica terrível, Léonarde e pode ser que tenhais razão, mas parece-me que Philippe, lá onde está, me manda sair daqui, grita-me que o meu lugar e o do seu filho não é perto do Rei que ele odiava.
Lá onde ele está? Que sabeis vós da vontade daqueles que deixaram este mundo? A mim, parece-me que se deve, primeiro, procurar obter a graça e o perdão para todas as faltas cometidas. Fazei como quiserdes, meu cordeirinho, é a vossa yida e a do vosso filho que está em questão e pela minha parte estarei sempre pronta a seguir-vos para onde julgardes melhor, já que o mais importante é estar ao vosso lado. Mas falta a querida Péronnelle e o marido. Eles já estão muito ligados ao pequeno Philippe. Ides partir-lhes os corações.
Naquela noite, Fiora não conseguiu dormir. Reviu vezes sem conta o que Léonarde lhe dissera sem conseguir arranjar uma solução satisfatória. Bem entendido, Léonarde tinha razão em muitos pontos, mas a mesma ideia fixa estava sempre presente: ficar naquela casa seria trair a memória de Philippe e Fiora já reprovava demasiadas coisas a si própria para acrescentar mais aquela. No entanto, prometeu a si própria usar de diplomacia para evitar que Luís XI passasse de amigo a inimigo.
Decidira ir a Plessis logo de manhã, por volta da hora em que o Rei sairia da missa. Mas no momento em que se ia pôr a caminho ouviu o ladrar de cães e as trompas que anunciavam uma partida para a caça. Portanto, ainda mal regressara a casa e já ia partir para o seu divertimento favorito que era, ao mesmo tempo, uma verdadeira paixão. Mais valia não se arriscar a retardá-lo, porque ficaria, certamente, de mau humor.
Foi, portanto, ao fim da tarde que, metida num vestido de veludo negro e com uma coifa em tela prateada sustentando as suas musselinas fúnebres, ela montou na sua mula. Seguida de Florent vestido com a sua melhor roupa, dirigiu-se para o castelo através de Pavé”, o caminho coberto de grandes pedras que ligava a cidade de Tours à morada do soberano. Se a caça tivesse sido boa, a jovem tinha todas as hipóteses de ser recebida com afabilidade. Fosse como fosse, era normal que aparecesse para saudar o Rei, felicitando-o pelo bom regresso a casa. E Fiora partiu sem olhar para trás, para não ver Léonarde e Péronnelle, esta com o bebé nos braços, que a viam desaparecer. Os olhos vermelhos de Péronnelle, posta, sem dúvida, ao corrente por Léonarde, causavam-lhe uma impressão penosa e aborreciam-na ao ponto de, ao chegar à primeira cerca murada do castelo de Plessis-lès-Tours, quase virar a mula e regressar a casa, perguntando a si própria que direito tinha de causar tanta dor a gente tão boa. Mas aquilo fazia parte da sua natureza, ir até ao fim das suas decisões e, depois de uma curta pausa, avançou para as portas flanqueadas por duas torres ameadas guardadas por arqueiros da Guarda Escocesa.
A amizade já antiga que ligava Fiora ao sargento Douglas Mortimer era conhecida de todos e, longe de a impedirem de entrar, os soldados saudaram a jovem acrescentando aquele grande sorriso que todos os homens, normalmente constituídos, reservam para uma bela criatura. Reinava, no pátio, a actividade típica de uma mudança. De um lado estavam os alojamentos da Guarda, onde os pajens punham ordem, ao mesmo tempo que algumas raparigas do serviço doméstico levavam a roupa branca para a lavarem. No lado ocidental, perto da pequeníssima capela dedicada a Notre-Dame de Cléry, a que o Rei chamava a sua ”boa senhora”, ou a sua ”querida amiga”, porque era a sua preferida, os soldados, encarregados de guardar a grande torre quadrada que se erguia afastada das muralhas e à qual chamavam a ”Justiça do Rei”, aqueciam-se ao sol daquele fim de tarde ou jogavam aos dados. Do outro lado, uma outra igreja, dedicada a São Matias, servia de paróquia à população do castelo e de capela ao pequeno convento encerrado dentro das suas muralhas. Poder-se-ia dizer que se estava na praça de uma aldeia, mas essa aldeia morria junto de grandes e profundos fossos, transpostos por uma grande ponte levadiça que dava acesso ao pátio de honra, centro do castelo.
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