Este, que se via à esquerda ao entrar, compunha-se de uma grande casa ornada com uma galeria de arcadas belamente esculpidas suportando um terraço cheio de estátuas, para o qual se abriam umas altas janelas duplas. Umas elegantes águas-furtadas de empenas floridas animavam o grande telhado de ardósia e coroavam soberbamente os aposentos reais, que não tinham, na verdade, nada a ver com as descrições sinistras que os inimigos davam do Rei. Uma torre octogonal, encimada por uma alta guarita, fechava a escadaria e em frente das janelas dos aposentos abriam-se os jardins e os pomares sempre admiravelmente tratados, porque recebiam a água, assim como todo o castelo, por meio de tubos de chumbo ou de porcelana ligados à fonte de Carre. No entanto, tanto naquele pátio, como no precedente, havia um poço e um bebedouro.

O local, contrariamente ao que o precedia, era tranquilo, silencioso e estava quase deserto. O Rei, quando estava em Plessis, queria, antes de tudo, a calma necessária para poder reflectir. Apenas estavam de guarda, na base da escadaria, dois arqueiros e Fiora, que procurava Mortimer, aprestava-se para lhes

1 Rendo aqui homenagem a M Sylvain Livernet, cuja bela obra As torres no tempo de Luís XI me foi de grande utilidade para esta parte do livro


perguntar se sabiam onde ele estava quando viu aparecer Étienne Lê Loup, que se dispunha a atravessar o pátio. Reconhecendo a jovem, aproximou-se dela e saudou-a cortesmente:

O nosso sire partiu para a caça esta manhã, muito cedo, dona Fiora. Certamente não o ireis encontrar aqui.

Eu sei. Ouvi-o partir, mas penso que não deve demorar e é esse regresso que vim esperar, para o saudar e saber notícias da sua saúde.

Se levarmos em linha de conta a vida esgotante que tem tido estes últimos meses, é excelente. Aliás, vedes bem que, mal chegou, partiu para a caça. Esteve privado dela este tempo todo. Mas aconselho-vos a regressardes a vossa casa, porque o Rei não voltará esta noite.

Foi assim para tão longe?

Bastante. Foi para a floresta de Loches. Passará a noite no castelo dessa cidade. Talvez, até, lá fique vários dias, se os batedores fizeram bom trabalho.

Loches! Aquele nome soou sinistramente na memória de Fiora. Fora para essa fortaleza que tinham levado, metido numa jaula, Mathieu de Frame e talvez o Rei, a propósito da caça, fosse lá para o interrogar? Havia lá outros prisioneiros, sabia-o, a começar por frei Inácio Ortega, o monge castelhano que a perseguira com ódio e que ela impedira, mesmo à justa, de matar Luís XI em Senlis. Tinham-no mandado para Loches, também ele numa jaula, para expiar o seu falhanço. Estava lá, também, um cardeal cujo nome Fiora esquecera, mas parecia que o Rei tinha feito de Loches o lugar predilecto das suas terríveis justiças. Os homens eram ali tratados como feras, talvez pior ainda, e se Fiora não se preocupava com o destino do monge espanhol, o seu coração apertava-se ao recordar o jovem escudeiro acorrentado miseravelmente sob os risos e as injúrias de uma multidão tornada ainda mais cruel pelas libações de um dia de festa.

Tenho de falar com o Rei! disse ela, por fim. O melhor seria, talvez ir a Loches?

A jovem viu os olhos redondos do camareiro ficarem quase ovais devido ao estupor. O homem gaguejou:

Ir... a Loches?

Mas não teve tempo de continuar e dobrou-se em dois para uma profunda saudação, ao mesmo tempo que uma voz jovem e doce dizia:

Seria uma loucura, Madame, se me permitis a observação. O Rei nunca recebe ninguém quando lá vai, porque é a prisão dos prisioneiros políticos e quem ousa infringir as suas ordens incorre na sua cólera. Conheceis a sua cólera?

A voz pertencia a uma criança, uma rapariguinha que talvez tivesse treze ou catorze anos, por trás da qual uma mulher alta, vestida como uma dama da corte, se mantinha com as mãos no regaço numa atitude plena de dignidade. Quanto à pequena, Fiora, apiedada, pensou que nunca tinha visto uma adolescente mais desgraciosa... nem mais imponente. Sob o veludo azul-pavão do vestido bordado com pequenas flores de lis prateadas, os ombros pareciam desiguais e o corpo contrafeito. O rosto, de nariz muito grande, boca triste e olhos ligeiramente globulosos, parecia ter-se enganado de corpo e pertencer a uma mulher bastante mais velha. Mas quanta doçura e luz parecia ter aquele olhar castanho, quase doloroso. Não sabendo dizer quanto a impressionava aquela rapariguita, Fiora hesitava na conduta a seguir quando a dama que a acompanhava a informou, não sem uma certa severidade.

Inclinai-vos, Madame! É Madame Joana de França, duquesa de Orleães, que vos concede a honra de vos dirigir a palavra!

Fiora, confusa, mergulhou de imediato numa vénia. Portanto, aquela jovem era a filha mais nova do Rei, com quem, no ano anterior, o Rei obrigara o jovem duque de Orleães, seu primo, a casar, confiando cinicamente a um dos seus cortesãos que desejava esse casamento porque os filhos do jovem casal ”não lhes custariam nada a criar”. Uma maneira como qualquer outra de acabar com o ramo rival do velho tronco dos Capetos. Péronnele contara, numa noite de Inverno, a história com grandes pormenores e grandes suspiros e as suas ouvintes não tinham podido descobrir se ela lastimava mais o jovem duque de Orleães, que diziam belo e bem-feito, forçado a casar com um camafeu daqueles, ou a pobrezinha, cujo sangue real não a poupara à pior das humilhações: a de ser imposta à força a um rapaz que, diziam, amava com toda a sua alma. A jovem passara a sua infância no castelo de Linières, em Berry, onde ninguém, nem sequer a sua mãe, a ia ver e depois do seu casamento regressara para lá, confiada à guarda das Linières que a tinham criado. Era raro ser vista nos castelos reais, dos quais não gostava, aliás, porque sabia que a sua presença não era ali desejada.

Madame murmurou Fiora suplico a Vossa Alteza que perdoe a minha ignorância. Quanto à cólera do Rei, nosso sire, acreditai que a temo tanto como outra pessoa qualquer, mas desejo dar-lhe a saber factos de uma urgência tão grande...

Que estais pronta a afrontar todas as cóleras do mundo, mesmo a sua? Dizeis-me quem sois? Se já vos conhecesse, lembrar-me-ia, porque sois muito bela. Sois estrangeira, talvez?

De Florença, Madame. O meu nome é Fiora Beltrami e...

Ah! Já sei quem sois! Falaram-me de vós! exclamou Joana com um sorriso encantador que lhe devolveu a idade e lhe iluminou o rosto ingrato. O Rei, meu pai, tem-vos muita estima e amizade. Mas... estais de luto?

Estou. Pelo meu marido, o conde Philippe de Selongey, morto no cadafalso há dois meses em Dijon, por rebelião. Era... súbdito do defunto duque Carlos.

Oh! Perdoai-me se vos magoei, deveis sentir-vos muito infeliz. Sois vós que habitais o solar de La Rabaudière?

Sou. E desejava que o nosso sire me permitisse devolver-lho. Acabo de ter um filho e...

Não me expliqueis nada. Creio que compreendi. Tenho pouco crédito, infelizmente, e não posso fazer nada por vós. Tudo o que posso oferecer-vos é um conselho, se o quiserdes aceitar.

Reconhecidamente, Madame.

Não afronteis o meu pai neste momento! Ele ainda está muito agitado por causa da difícil conquista dos países do Norte. Como vedes, não conseguiu ficar aqui mais do que algumas horas. Dai-lhe tempo a que reencontre a serenidade... e sobretudo a sabedoria. Dentro de alguns dias tudo estará melhor e podereis, então, falar com ele. Mas, peço-vos, tende cuidado.

1 O jovem duque viria a ser o Rei Luís XIII e repudiaria Joana, no decurso de um processo de divórcio mortificante, para casar com Ana de Bretanha. Joana tornar-se-ia religiosa e fundaria a Ordem da Anunciada. O Papa Pio XII faria dela, mais tarde, Santa Joana de França.


. Porquê?

Porque ides, sem dúvida, ofendê-lo. Já lhe aconteceu ter recuperado um presente depois de a pessoa, a quem o dera, o ter desiludido, mas creio que nunca ninguém lhe devolveu um espontaneamente. Pode ser que não goste do gesto. Não sejais brusca e aproveitai esta espera para reflectir!

já reflecti muito, Madame.

Nesse caso, é a Deus que tendes de pedir conselho. Quanto a mim, rezarei por vós.

Sem dar tempo a que Fiora lhe agradecesse, a pequena princesa ia afastar-se num passo desigual que provocou um aperto no coração da sua interlocutora quando, subitamente, se virou:

Eu contava regressar a Linières amanhã, mas ficarei ainda alguns dias se me prometerdes que não sereis precipitada.

Vossa Alteza consentiria em ajudar-me?

Já vo-lo disse: eu tenho poucos poderes, mas gostaria de os pôr ao vosso serviço. Regressai a vossa casa e, sobretudo, ficai quieta até que vos mande chamar. Prometeis?

Prometo... mas não sei como dizer-vos...

Não! Não me agradeçais. Sou eu que, pelo contrário, o devo fazer.

Como Fiora, visivelmente, não compreendesse, Joana acrescentou com o belo sorriso que fazia esquecer a sua fealdade:

Acabais de me provar que se pode ser ao mesmo tempo bela como o dia e profundamente infeliz. Quando tiver vontade de me queixar, pensarei em vós!

A princesa pousou a sua pequena mão, frágil como a pata de uma ave, na de Fiora que quase se ajoelhou numa reverência e depois, tomando o braço de Mme. de Linières, dirigiu-se para o pátio inferior, devidamente saudada pelos guardas das portas. Fiora viu-a dirigir-se para a capela de Notre-Dame de Cléry, onde entrou.

Quando pensamos numa princesa disse Florent, que a seguira com os olhos imaginamos sempre uma dama alta e bela, soberbamente vestida e adornada. Não imaginava que O Rei pudesse ter uma filha tão horrível.

Calai-vos! Não sabeis o que dizeis! Horrível? Com aquele olhar luminoso, com aquele sorriso que parece conter toda a doçura do mundo? Estou certa que Deus não é da vossa opinião! Regressemos!

Como tinham assistido à sua partida, Léonarde e Péronnelle espreitavam o seu regresso. Quando souberam que Fiora não pudera encontrar-se com o Rei, tiveram muita dificuldade em esconder o seu alívio. Um dia ou dois não era grande coisa, mas era, de qualquer maneira, um certo tempo. E como o encontro com a jovem duquesa de Orleães fora reconfortante. Fiora prometera retardar a sua iniciativa até que ela a autorizasse, ou qualquer coisa parecida. Léonarde recobrou a coragem.

Algo me diz que não vamos deixar esta querida casa tão cedo confiou ela a Péronnelle. Tenho esperança de que o nosso sire saberá convencer dona Fiora a não se ir embora e que vamos passar juntas o mais delicioso dos Invernos.

Achais que sim?

Sim, acho. O que eu temia, acima de tudo, era que a nossa jovem castelã caísse em cima do Rei como um raio e provocasse o seu ressentimento. Mas, agora, acho que as coisas vão correr pelo melhor e que ficaremos todas juntas.

A pobre Léonarde pensaria muitas vezes naquelas poucas frases plenas de esperança, no decurso das intermináveis noites sem sono que iriam ser o seu calvário durante esse mesmo Inverno que esperara ser tão doce.

Sob as cortinas de brocado florido que rodeavam o seu leito, Fiora dormitava. Apoderara-se dela uma grande fadiga após o seu regresso de Plessis. Depois de ter aceitado de Péronnelle um caldo de legumes, vira Marcelline dar o seio ao pequeno Philippe e retirara-se depois sem aceitar que a ajudassem a despir-se. Uma vez mais, estava prisioneira daquele grande desejo de solidão que tanto desolava Léonarde, sendo-lhe quase insuportável a ideia de falar, escutar ou responder. Parecia-lhe ser uma pequena palha, uma rolha de cortiça transportada nas águas tumultuosas do destino, sem que fosse concedida à sua vontade a mínima hipótese de se exprimir. Não havia outra coisa a fazer senão encontrar um pouco de repouso e, atirando com a roupa à passagem sem se preocupar onde caía, meteu-se entre os lençóis frescos que cheiravam a íris e deixou o seu corpo descontrair-se até que a noite, insinuando-se por entre os caixilhos em cruz da sua janela, transformou as cores vivas do tapete de Smyrne estendido no chão de pedra numa amálgama acinzentado e invadiu o quarto, deixando penetrar nele uma frescura anunciadora de Outono.

Fiora não permitira que acendessem nenhuma das lareiras sempre preparadas em todas as chaminés da casa, assim como a lamparina colocada na sua cabeceira. Não lhe apetecia ler, se bem que o livro junto dela fosse um dos discursos de Platão de que ela mais gostava desde a sua infância estudiosa. De que lhe servia a sabedoria grega no fundo de um solar perdido entre o rio e a floresta, quando o seu coração e o seu espírito flutuavam à deriva sem saberem para que lado se virarem? A única coisa viva, naquele quarto, era a brisa da noite que passava por um dos vitrais abertos da sua janela e lhe trazia o odor a folhas molhadas que uma chuva recente estendera pelo jardim.