Os guardas aproximavam-se. Então, para grande surpresa de Fiora, monsenhor d’Estouteville interpôs-se:
Um momento ainda, Santo Padre, por favor! Fechá-la-íeis no castelo de Saint-Ange se ela representasse a moeda de troca paga adiantadamente?
Não. Tinha decidido enviá-la para o convento de Santo Sisto.
Nesse caso, por que mudar de plano? Eu conheço bem o Rei Luís e a sua grande inteligência. Ele não é daqueles que dão a sua amizade a qualquer pessoa. Sobretudo quando essa amizade chega ao ponto de oferecer um castelo e terras na sua vizinhança imediata. E, a menos que Vossa Santidade pense em declarar guerra ao meu país, o que me dilaceraria o coração...
Declarar guerra a França? Sois louco, meu irmão! A Aranha Universal tem o melhor exército do mundo. As armas da Igreja não seriam suficientes.
Nesse caso, não mudeis nada no vosso primeiro projecto. Mandai conduzir Dona... Fiora? É esse o nome?
Que nome lindo! exclamou Catarina que, decididamente, não gostava de estar muito tempo calada. O que é que vem a seguir?
Beltrami, Madonna respondeu Fiora oferecendo à jovem uma reverência e o esboço de um sorriso. Podeis acrescentar condessa de Selongey
- Basta de vaidades mundanas! exclamou Sisto cuja tez morena estava de novo púrpura. Talvez tenhais razão, Estouteville. Enviemo-la para Santo Sisto! Ficará lá bem guardada e teremos sempre tempo de lhe cortar a cabeça ou de a enforcar Se o senhor dela não corresponder convenientemente às nossas expectativas. Que a levem e que digam ao capitão da guarda que a levem imediatamente. A superiora está à espera.
Foi necessário a Fiora um grande autodomínio para saudar o Papa, que só de muito longe se parecia com a ideia que ela tinha de um vigário de Cristo, mas ajoelhou-se quase aos pés do cardeal d’Estouteville.
Agradeço-vos a vossa caridade, monsenhor, e tende a bondade de rezar por mim e pela criança a quem me arrancaram. Juro-vos que sou digna da vossa protecção!
A mão extremamente branca, onde brilhava uma pesada safira, traçou sobre a sua cabeça inclinada o sinal da cruz e o olhar azul seguiu-a enquanto ela se virava para dona Catarina:
Obrigada, Madonna! Não vos esquecerei.
Por fim, a jovem colocou-se entre os soldados e voltou a atravessar a sala escoltada por eles. Chegava à soleira quando se apercebeu de que um grupo de homens, a maior parte jovens e ricamente vestidos, atravancava a antecâmara. Uma personagem de uma trintena de anos, mas já gorda, perorava no meio deles, acusando os guardas e o mestre-de-cerimónias.
Vós deixastes passar a minha mulher! Eu quero juntar-me a ela. Aliás, Sua Santidade está à minha espera!
Um momento, messer Girolamo, só um momento! pedia Patrizi. O Santo Padre disse formalmente que não queria ser perturbado por ninguém.
E a condessa Riario é ninguém, talvez?
Ninguém a pode impedir, monsenhor. O seu encanto dá-lhe direito a todas as indulgências.
Fiora desinteressou-se do debate e continuou o seu caminho. Entrevira Riario, a sua cabeça de traços pesados, de cabelos rígidos, a insuportável vulgaridade do seu comportamento que o seu traje bordado a ouro só agravava. Que a encantadora Catarina fosse casada com aquele pacóvio era um dos despropósitos que pareciam ser lei naquele palácio mais do que real.
O destino acabava de a fazer cair num mundo do qual ela não fazia a mínima ideia, mesmo quando morava em Florença. Aquele Papa sem grandeza, unicamente preocupado com a sua política tortuosa e os seus bens terrenos, do qual se podia perguntar que género de orações dirigiria a Deus se por acaso lhe acontecia orar! aquela corte povoada de homens de mão e de escravos, e até aquela bela Catarina, habituada a instalar-se nos degraus do trono papal, tudo servia para confirmar o que Inácio Ortega e a sua estadia no convento de Santa Lúcia, em Florença, o que ela suspeitara: aquela Roma, nos caminhos da qual penavam ainda tantos peregrinos, tanta gente pobre, sustentada pelo único e paciente desejo de rezar no túmulo do Apóstolo e de receber a bênção do soberano Pontífice, aquela Roma não estaria em vias de se transformar num covil de ladrões?
Pela sua parte, Fiora ia, em breve, constatar o que era um convento romano; sentia, apesar de tudo, uma espécie de alívio ao pensar que encontraria ali, pelo menos, a calma da clausura, o silêncio e a paz, tudo aquilo de que o seu corpo esgotado e o seu espírito dorido tinham necessidade. Mesmo em Santa Lúcia, conseguira dormir, e era de repouso que mais precisava depois do que acabava de suportar. Mais tarde, recomeçaria a pensar e a procurar o meio de beneficiar o menos possível da hospitalidade papal.
O grande Domingo desaparecera e ela sentiu pena. Ele representara para ela o apoio que agora lhe ia faltar. No pátio do Vaticano, fizeram-na montar uma mula que um grupo de soldados rodeou de imediato. O seu chefe parecia-se muito com Montesecco, com quem, aliás, ela o viu falar por um instante. Saberia, mais tarde, que os dois homens eram irmãos, se bem que muito diferentes.
A noite chegara. Uma noite húmida e fria, que mudava o aspecto das coisas e perturbava as chamas dos archotes nas mãos dos servidores. Passado o grande portal, mergulharam nas trevas exteriores, mas os olhos de Fiora acostumaram-se depressa e ela apercebeu que a noite era menos sombria do que pensara. As únicas luzes ainda visíveis iluminavam as túnicas, com as armas do Papa, à cabeça da escolta. A jovem esforçou-se por descortinar o melhor possível o caminho que a faziam seguir, precaução indispensável no caso de uma possível fuga.
Depois da praça de São Pedro, pouco maior do que a praça de uma aldeia, desfilaram diante de alguns edifícios, à porta dos quais ardiam potes de fogo dentro de jaulas de ferro e depois diante de uma fortaleza constituída essencialmente por uma enorme torre cilíndrica, no topo da qual se adivinhava a silhueta gigante de um anjo de asas abertas. Em frente, uma ponte, guarnecida de lojas com as persianas fechadas, passava por cima do Tibre, cuja água negra era quase invisível. Em seguida mergulharam num dédalo obscuro, que parecia ser um enorme estaleiro de construção separado por terrenos baldios.
Abandonada durante muito tempo pelos papas em favor de Avinhão, a Roma dos Césares e os seus monumentos gigantescos ter-se-ia, certamente, esboroado tranquilamente até à desaparição total se certos Papas como Nicolau V e, sobretudo, Sisto IV, não tivessem tomado nas próprias mãos vigorosas o seu destino, obrigando os arquitectos que reconstruíam as igrejas a procurarem a pedra fora da cidade em vez de irem buscá-la aos velhos edifícios vizinhos, transformados, assim, em confortáveis pedreiras.
Evidentemente, com o regresso dos Papas, a riqueza afluíra de novo a Roma. Os Pontífices construíam na colina vaticana para substituir o antigo palácio Latrão destruído por um incêndio e, em redor deles, cardeais e altos funcionários apressavam-se a construir palácios maiores e sobretudo mais ricos do que os das antigas famílias que tinham continuado a viver em Roma. Mas essas construções todas faziam-se sem ordem, Roma não comportava senão algumas praças e, para além de ruelas caprichosas, uma ou duas artérias algo largas e arejadas como o Corso, assim chamado porque servia antigamente para corridas de cavalos, de burros... e de judeus. Sisto IV, que decidira fazer daquele imenso lugar perigoso e arruinado, onde dominavam as ruínas, uma cidade civilizada, ordenada, de ruas pavimentadas com outra coisa que não pedras redondas do rio, tinha muito que fazer para edificar uma capital à medida das suas ambições. Depois de ter construído uma ponte sobre o Tibre, o hospital do Santo Espírito, igrejas e conventos, cobria agora Roma de estaleiros, abatia os casebres e limpava os monumentos antigos, entregues à hera e às ervas daninhas.
Àquela hora vespertina, as construções novas e velhas confundiam-se fraternalmente na mesma atmosfera cinzenta, sob uma bruma que baralhava tudo e Fiora acabou por renunciar a distinguir um caminho qualquer no dédalo por onde iam. Não sabia que cavalgavam na direcção do Circo Máximo, que passavam diante das ruínas ainda em pé do palácio de sete andares de Séptimo Severo para encontrarem, depois, as termas de Caracala, que erguiam para o céu negro um imponente fragmento mutilado da grande arquitectura imperial. A majestade daquele fantasma da antiguidade, vermelho e negro, forçou, mesmo assim, o seu interesse, e a jovem perguntou ao capitão o que representava aquilo. Ele respondeu, acrescentando:
Tereis o tempo todo para os admirar. Eis o convento de Santo Sisto, para onde vos levo: está mesmo em frente.
Com efeito, um pouco abaixo do caminho onde as grandes lajes romanas ainda afloravam, erguiam-se as paredes ocres que encerravam uma confusão de vegetação, construções baixas mas harmoniosas e o campanário quadrado de uma igreja. Quando a escolta fez alto, puderam ouvir o eco de um cântico religioso abafado pela espessura das paredes e também o coaxar das rãs no pântano vizinho.
Com o punho enluvado de couro, um dos soldados foi bater à porta onde se apercebia uma estreita abertura. O homem bateu várias vezes, até que um rosto delgado, enquadrado num véu branco, se mostrou por trás das grades.
Por ordem de Sua Santidade, o Papa, abri! ordenou o capitão, que se mantinha junto de Fiora. Trago aquela que vos anunciaram.
A estreita abertura fechou-se e a porta abriu-se lentamente, mas sem barulho, descobrindo a forma branca da irmã rodeira:
Que o Senhor tenha na Sua guarda o nosso Muito Santo Padre! murmurou, ela benzendo-se. Entrai, minha irmã! É verdade que vos esperávamos.
Fiora desceu da sua mula e avançou ao mesmo tempo que a escolta recuava, já que os homens não padres não tinham o direito de transpor a clausura. A voz da religiosa era doce e os cânticos que se ouviam de uma grande beleza. Uma mão pálida estendeu-se para Fiora que, muito naturalmente, estendeu a sua com a sensação de que se apaziguavam as suas angústias, desconfianças e medos. Seria aquele convento um asilo de paz?
CAPÍTULO VI
O JARDIM DE SANTO SISTO
O convento das dominicanas de Santo Sisto, que beneficiava da protecção muito particular do Papa, era o asilo preferido das raparigas nobres que tinham escolhido renunciar ao mundo, mas uma jovem viúva também podia encontrar nele refÚgio, ou uma mulher qualquer devidamente protegida. Vinda directamente do Vaticano, Fiora foi recebida com cortesia pela madre Girolama, mulher de uma certa idade, que devia ter sido de uma grande beleza e que, com toda a evidência, tinha o hábito do comando. Tinha olhos claros que olhavam a direito, uma voz sonora e musical e um sorriso pouco frequente mas caloroso, que ganharam de imediato a confiança de Fiora. Depois de ter sucessivamente temido ser entregue ao carrasco e ir suportar um calvário no fundo de uma prisão, era bom entregar-se nas mãos da madre Girolama.
Estais num estado lastimável constatou esta olhando para a sua nova pensionista com um olhar apiedado. Estais doente?
Não, madre, não creio. Mas, durante dois longos meses, viajei por mar, onde sofri muito. A alimentação fez o resto.
Estou a ver. Por esta noite, vou conduzir-vos ao vosso quarto, onde vos levarão uma refeição.
Poderei ter água para me lavar? Não me lavo decentemente há semanas.
Não ousava propor-vo-lo disse a prioresa com um meio sorriso. Já me aconteceu ter pensionistas que desdenhavam os cuidados do corpo e confesso que não as apreciava muito.
Trazer-vos-ão água e toalhas, mas, quanto à roupa, só vos posso oferecer um hábito de noviça.
Sentir-me-ei feliz por usá-lo. Quanto a estas...
Serão lavadas e, se não as quiserdes mais, dá-las-emos aos pobres. Enquanto estiverdes aqui, não precisareis delas. E agora vinde! Creio, na verdade, de que precisais, sobretudo, de repouso.
A cela que a acolheu dava para uma galeria de pequenas colunas que, abria directamente para o jardim. Com o seu estreito leito de cortinas brancas e o seu mobiliário simples, parecia-se muito com a que Fiora ocupara em Santa Lúcia de Florença, no tempo da catástrofe que lhe destruíra a vida. A irmã leiga que se lhe juntou acendeu uma pequena braseira para combater a humidade fria, permitindo-lhe lavar-se sem tremer demasiado, depositou uma rosa tardia numa pequena bilha de majólica verde e começou a falar alegremente enquanto desdobrava os lençóis frescos que destinava ao leito e sacudia os cobertores.
Assim, Fiora soube que ela se chamava irmã Querubina, nome pouco vulgar, mas cujo rosto rosado e bochechudo e olhos de um azul ligeiro justificavam. Era filha de um camponês dos arredores de Spolète, cujo senhor fizera com que Querubina entrasse para o convento ao mesmo tempo que a sua filha mais nova, Prisca, irmã de leite da pequena camponesa, que lhe era muito ligada. Há cinco anos que estava em Santo Sisto e sentir-se-ia muito feliz porque não imaginava que houvesse um lugar mais belo no mundo se a irmã Prisca não estivesse a definhar desde o último Verão sem que conseguissem encontrar remédio para o seu mal.
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