Comédia? De maneira nenhuma: é esse o meu nome. Há pouco mais de um ano casei aqui mesmo com o senhor Bernardo Boscoli, um jurista da corte pontifícia. Infelizmente, tive a infelicidade de o perder o Verão passado... a peste!

Com a ponta de um dedo, ela esmagou uma lágrima fictícia, ao mesmo tempo que Fiora oferecia a si mesma o luxo de um sorriso carregado de desdém:

Isso não é nada lisonjeiro da tua parte: escolher a peste após alguns meses, apenas, de casamento! Mas é, pelo menos, uma atitude que eu posso compreender. E agora, diz-me o que vens fazer aqui e vai-te embora!

O rosto de Hieronyma, que ainda não tinha perdido o brilho da sua maturidade maravilhosa, ficou púrpura sob o impulso de uma cólera brutal que fez brilhar os seus olhos negros e depois amareleceu de uma vez só, como se o fel que lhe enchia a alma acabasse de se infiltrar sob a sua pele loura. Ela engordara durante aqueles dois anos, mas adquirira uma espécie de majestade perversa que lhe ia muito bem e Fiora pensou que a Górgona da lenda devia parecer-se com ela. Retomando o fôlego que a insolência da sua inimiga lhe cortara por um momento, pareceu inchar ainda mais.

Baixa o tom, minha filha! Tu não estás aqui em posição de dar ordens sibilou ela. De facto, já não és grande coisa e basta um piparote para te mandar de novo para o sítio de onde vieste, para a palha de uma prisão, para o cadafalso.

O gosto amargo do ódio invadiu Fiora e encheu-lhe a boca. Aquela mulher miserável, que tinha assassinado o seu pai, destruído a sua vida, que ousava prostituir o seu corpo ao serviço de Satã e que escapara por milagre à justiça dos Médícis, ousava ir ali desprezá-la e insultá-la. Sem a grade, talvez se tivesse atirado sobre ela para a estrangular com as suas próprias mãos e livrar, por fim, o mundo de uma criatura imunda. Um violento esforço de vontade salvou-a das manifestações de uma cólera que teria dado, talvez, prazer a Hieronyma. Mais direita do que nunca, apontou-lhe um dedo e deixou cair:

Eu sou infinitamente mais do que tu nunca serás, apoiante do demónio. E já te escutei o suficiente!

Girando nos calcanhares, a jovem virou as costas à grade e dirigiu-se calmamente para a porta do parlatório. Um grito de Hieronyma reteve-a:

Espera! Eu ainda não disse tudo!

O que tu podes dizer não me interessa.

A sério? Tu, que não quiseste ser minha nora, gostarias, talvez, de saber que vais ser minha sobrinha?

O quê?

O grito de Fiora ecoou no silêncio. Com as mãos enfiadas nas mangas forradas de pele de raposa, Hieronyma olhava para a sua adversária por baixo, como se procurasse o local sensível onde poderia ferir, e mordia nervosamente o lábio inferior. Escondida por trás das peles como um animal maldoso no fundo do

1 Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico


seu covil, gozava visivelmente ao ver empalidecer o belo rosto da jovem. Esta, finalmente, encolheu os ombros.

És louca! lançou ela, desdenhosa.

Olha que não! O Muito Santo Padre, que é muito amigo da nossa família e de quem Francesco Pazzi, meu cunhado, se tornou banqueiro, o Muito Santo Padre, portanto, após longas hesitações acerca do destino que convinha reservar-te, quis pedir a nossa opinião. Matar-te seria demasiado simples, mesmo que acrescentássemos à coisa alguns adornos e não serviria para nada. Ao passo que, casada com Cario Pazzi, meu sobrinho, serias ainda de alguma utilidade para a nossa casa.

Eu já sou casada.

Eu sei. Cumprimentos, aliás! O conde de Selongey, o sedutor embaixador do duque de Borgonha em Florença! Conseguiste um grande golpe! Infelizmente, ele está morto, e tu és viúva... como eu.

E tenciono continuar assim! Portanto, depois de teres berrado por toda a Florença que eu era indigna do mais miserável dos homens, depois de teres tentado reduzir-me ao estado de mulher pública, tens a audácia de quereres casar-me com o teu sobrinho? Por quem te tomas? Esqueces que me arruinaste?

Arruinei? Achas? A mim, parece-me que não estás tanto como pretendes. Os Médicis trataram disso. Agnolo Nardi, em Paris, está em vias de te entregar uma bela fortuna, sem contar com o que os Médicis guardaram, como a villa de Fiesole, por exemplo, que pode regressar à tua posse. Sem contar com os favores do Rei de França, sem contar...

Contas demasiado! rugiu Fiora, enjoada. Sinto vergonha por teres usado, quando eras rapariga, o nome Beltrami e lamento que tenhas abandonado o dos Pazzi, que te convinha às mil maravilhas por ser uma família de piratas. Nunca infligirei ao meu filho a vergonha de ver a sua mãe usar esse nome! Vai sonhar para outro lado!

Talvez venhas a ser obrigada a admitir que os meus sonhos são a simples realidade. A escolha que te é proposta é reduzida: ou te casas com Cario, ou serás executada.

Sem esperar pela resposta do Rei de França? Espantar-me-ia muito.

Pobre inocente! A tua morte já está decidida. Se o Rei não aceder às reclamações do Santo Padre, receberá, em troca, as profundas lamentações do Vaticano. O clima de Roma é insalubre, toda a gente o sabe. Terás sido vítima da febre dos pântanos. A tua única hipótese de vida é aceitar o que eu te ofereço, com, evidentemente, o acordo do Papa.

Nunca! Prefiro a morte.

E a do teu filho? Nós sabemos onde ele está. Será muito fácil fazê-lo desaparecer. Pensa, prima, mas pensa depressa! Amanhã vimos buscar-te.

Se o olhar de Fiora pudesse matar, Hieronyma teria caído morta. O furor que se apoderou dela foi tão violento que aniquilou a angústia, o desespero e a manteve de pé, direita e orgulhosa diante daquela criatura demoníaca que de mulher só tinha a aparência. Fiora adivinhou que não podia, fosse a que preço fosse, permitir que a outra visse que as suas ameaças a tinham tocado profundamente, porque, então, aquela mulher não cessaria de abusar do poder que pensava ter sobre ela. Uma ideia nasceu na sua mente: Hieronyma exagerava, talvez, o seu poder, sobretudo no que dizia respeito ao pequeno Philippe. Os que o rodeavam deviam guardá-lo bem e, por outro lado, o primeiro cuidado de Léonarde, uma vez liberta das cordas que a atavam, fora, certamente, correr a Plessis para se queixar violentamente. A criança devia estar bem protegida.

Uma vez mais, ela virou as costas sem uma palavra e transpôs a porta do parlatório. A voz odiosa de Hieronyma perseguiu-a.

Não penses que foges! As portas do convento estarão guardadas esta noite.

O pesado batente da porta, ao fechar-se, cortou aquela última irrupção de fel. Esgotada pela tensão nervosa que impusera a si própria, Fiora encostou-se a ele e fechou os olhos, esperando que o seu coração recuperasse um ritmo normal. Reabriu-os quando uma mão se pousou no seu ombro:

Não há um minuto a perder disse a voz doce da irmã Serafina. É preciso preparar a vossa fuga. Aquela mulher é abominável.

Estivestes a ouvir?

Tive essa curiosidade e peço-vos perdão. Eu sei, as paredes são espessas e a porta também, mas quando a entreabrimos... Não podeis cair nas mãos dessa criatura.

Conhecei-la?

A minha mãe conhece-a e posso dizer que não tem boa reputação. Mora no palácio que o Papa deu, no Borgo, a Francesco Pazzi e dizem que é ela que manda. Mas, não percamos mais tempo! Eu vou ao jardim atirar um véu branco por cima do muro. É melhor não irdes vós mesma.

Quando ela ia partir, Fiora reteve-a por uma manga:

Um momento! Eu agradeço-vos muito, mas já vistes o tempo que está? Certamente que não está tempo para pescar no lago e ninguém, certamente, espera o nosso sinal.

Também ontem fazia mau tempo e antes de ontem. No entanto, o enviado do cardeal estava lá. Num dos extremos, entre os muros da cidade e o lago, há uma espécie de ruínas, perto das quais ele está.

Fostes lá ver?

Onde pensais que rasguei o hábito antes de ontem?

A irmã Serafina, com efeito, recebera nesse dia uma reprimenda da parte da mestra das noviças pelo grande rasgão no seu hábito. Ela pretendera tê-lo rasgado contra um dos bancos do refeitório, mas a peça de vestuário trazia uns traços castanhos-esverdeados dificilmente imputáveis a um móvel, ainda por cima encerado de fresco. O assunto ficara concluído com uma série de Avé-Marias na capela com os braços em cruz, prova de que a noviça saíra bastante cansada e que, agora, provocava alguns remorsos em Fiora.

Eu vou lá concluiu ela. Não quero que sejais punida de novo.

Não tenhais medo: eu conheço a fundo as armadilhas da glicínia e é melhor que ninguém vos veja no jardim neste momento.

De qualquer maneira não servirá de nada. Ouvistes tão bem como eu: esta noite o convento estará guardado.

Certamente que não do lado do pântano. Esse lado é muito mais vasto. Além disso, quem se aventurar nele sem auxílio atolar-se-á irremediavelmente e conhecerá uma morte horrível. Por mais avisada que esteja, a signora Boscoli não sabe tudo.

Um momento mais tarde, Antónia regressou para dizer à sua amiga que o sinal fora dado e que o enviado de Bórgia estava lá.

Esta noite cochichou ela acompanhar-vos-ei até ao muro para vos mostrar o local por onde atirei o véu. E agora recuperai a confiança! Ainda por cima, já não chove...

Não passava de uma acalmia. Durante a refeição da noite, que as freiras comiam sempre ao som de uma leitura piedosa, a tempestade recomeçou e Fiora, incapaz de se interessar pela Cidade de Deus de Santo Agostinho, escutava com alguma inquietação as rajadas de chuva nos vitrais e o assobio do vento por baixo da porta do refeitório. De tempos a tempos procurava o olhar da irmã Serafina, mas esta devolvia-lhe um rosto de tal modo sereno que a jovem acabou por se tranquilizar. No fim de contas era melhor, para que a evasão tivesse sucesso, que o tempo estivesse mau em vez de uma bela noite doce, clara e constelada de estrelas indiscretas.

Após o último ofício e a reverência à madre superiora, Fiora regressou à sua cela para ali esperar que a sua amiga a fosse buscar. Não se despiu, contentando-se em estender-se sobre a cama depois de ter soprado a vela. Como estava muito frio e como Querubim, para seu desgosto, se tinha esquecido de acender a braseira, estendeu o manto por cima de si. Subitamente, ouviu um ruído que lhe gelou o coração: no exterior, alguém tentava virar a chave na fechadura da sua porta.

A decepção foi tão violenta que quase gritou. Todas as suas esperanças desapareciam de repente e teria de suportar a escolha abominável com que a ameaçara Hieronyma: casar com aquele Cario desconhecido e que a repugnava antecipadamente, ou morrer: o altar ou o cadafalso!

Philippe! gemeu ela do fundo da sua angústia porque me abandonaste? Sem a tua paixão pela guerra, teríamos sido felizes.

Quanto tempo ficou ela assim, de olhos muito abertos para as trevas do seu quarto, escutando o vento a rugir na galeria e a fazer ranger os ramos das árvores? Seria impossível de avaliar, mas, de qualquer modo, não fecharia os olhos antes do regresso do dia... E então, de repente, ouviu-se junto à porta um ligeiro ruído e uma forma negra, mais negra ainda do que a escuridão, deslizou até junto do leito:

Estais pronta? sussurrou a irmã Serafina. Instantaneamente, Fiora pôs-se de pé:

Como fizestes para entrar? Alguém fechou a minha porta e eu ouvi a chave na fechadura.

Foi, sem dúvida, a nossa madre Girolama. A dama Boscoli deve ter tomado as suas precauções, mas, felizmente, esqueceram-se de tirar a chave. E agora vinde, mas primeiro envolvei-vos no vosso manto. É preciso ficar tão invisível quanto possível.

Ela própria se fundia por completo na noite e, sem a segurança tranquilizadora da sua mão, Fiora poderia pensar que falava com um fantasma. Uma atrás da outra, saíram ambas para a galeria e depois mergulharam na tempestade e no jardim. Fiora teve a impressão de mergulhar numa floresta submarina. Não havia um ramo, uma folha que estivesse imóvel e que não sacudisse a sua carga de água.

Não vejo nada! murmurou ela, cega por uma bofetada molhada que lhe atingiu o rosto em cheio.

Não tenhais medo, eu conheço o caminho de cor. Sou capaz de vos levar até ao muro de olhos fechados.

Pela minha parte, quer estejam abertos, ou fechados, a diferença é igual. Que noite!

Não vos preocupeis! Os guardas do convento estão abrigados onde podem e no pântano não deve haver nem um gato. Vede, estamos a chegar!

Pouco a pouco, Fiora foi vendo e, por fim, distinguiu, mesmo à sua frente, uma massa mais negra ainda, que era o muro coberto de plantas. A irmã Serafina guiou a mão que segurava até que esta se fechou sobre um ramo espesso: