Eis a glicínia. Trepai! Quando estiverdes no alto, assobiai! Ou me engano muito ou aquele que vos espera está mesmo junto do muro... Que Deus vos guarde!
Às apalpadelas, Fiora procurou a cabeça da noviça e beijou-a.
Por que não vindes comigo? Tenho medo que fiqueis em perigo quando se aperceberem da minha fuga.
Não tenhais. Mesmo que a madre Girolama duvide de qualquer coisa, não dirá uma palavra.. Ela gosta muito de mim, ao mesmo tempo que detesta o Papa, a sua tribo e os seus amigos. Estou certa que no fundo do seu coração ficará contente com o seu fracasso.
Mas, ela fechou-me na minha cela?
Simples descargo de consciência. Ela deixou a chave na porta. Quando virdes Battista, abraçai-o pela prima Antónia e dizei-lhe...
Confiai em mím. Sei exactamente o que lhe vou dizer. Com decisão, Fiora empunhou uma braçada de ramos a escorrer água e começou a trepar para o topo do muro. Chegou lá acima sem grande dificuldade, mas foi preciso agarrar-se com força para não ser levada pelo vento que batia como um chicote. Então, ouviu uma voz:
Não assobieis! Estou aqui! Ouvi-vos chegar. Descei suavemente para não desequilibrar a barca.
Ela passou para o outro lado do muro e apalpou com os pés para encontrar apoio. Aquela descida pareceu-lhe durar uma infinidade de tempo. Subitamente, uma mão fechou-se sobre uma das suas pernas e depois sobre as duas.
Já vos tenho segura. Deixai-vos cair!
Ela deslizou, mas as mãos em questão já lhe apertavam a cintura e ela viu-se sobre um soalho movediço, que só podia ser o da barca. O homem segurava-a contra si com firmeza e, para sua grande surpresa, a jovem respirou um delicado perfume de âmbar. No entanto, o que ela tocava era um tecido rude, um burel qualquer e, aliás, a grande silhueta que ela mal distinguia era a de um monge.
Peço-vos perdão por estes dias de espera disse ela docemente. Este tempo abominável...
Chhh! Falaremos mais tarde. Sentai-vos ali e não vos mexais!
Ele instalou-a no fundo do esquife e depois, empunhando uma longa vara, mergulhou-a na água lodosa e dirigiu-se para a margem. Mas quando ele disse as últimas palavras, quase com naturalidade, Fiora identificou ao mesmo tempo a voz e o perfume. A jovem não foi capaz de guardar para si a descoberta:
Como, monsenhor? Viestes vós mesmo? Fostes vós que esperastes estes dias todos?
Ela ouviu-o rir suavemente:
Não. A minha ausência teria sido notada no Vaticano. Simplesmente, o meu servidor tinha ordens para me prevenir quando fizésseis o sinal. Mas, agora, calemo-nos! Este pântano passa por ser assombrado, mas dois fantasmas a conversarem assim animadamente, como numa sala, pode levantar suspeitas.
Fiora guardou silêncio enquanto o seu companheiro se consagrava à navegação que o vento não facilitava e que se tornou ainda mais difícil quando abandonaram o abrigo do muro. A barca deslizou lentamente sobre a água espessa e, por vezes, atravessava maciços de caniços, pelos quais roçava. Apesar do frio, o odor a lodo e vegetais apodrecidos era penoso e, no seu manto ensopado, Fiora tremia. Mas não só porque se sentia molhada. Um pouco de medo aumentava o seu mal-estar por se sentir assim entregue por completo a um homem em quem não confiava totalmente. Que a tivesse ido buscar era incrível e não se explicava de modo racional. A menos que esperasse um pagamento que a jovem não se sentia disposta a dar-lhe...
O pequeno barco entrou uma última vez nos caniços, bateu em qualquer coisa dura e parou.
Conseguiste, monsenhor? disse uma voz em espanhol.
Consegui. Vai buscar os cavalos e depois, quando tivermos partido, afunda a barca.
Os cavalos estavam abrigados na casa em ruínas que a irmã Serafina assinalara a Fiora. Bórgia pegou em Fiora pela cintura e içou-a para um deles, porque a jovem estava demasiado transida para montar sozinha e depois saltou para o seu com uma ligeireza que traía uma longa habituação. Então, ele inclinou-se e pegou na brida de Fiora:
Eu vou guiar-vos. Temos bastante caminho a percorrer e infelizmente não podemos ir muito depressa, porque temos de passar por ruas que são verdadeiros charcos. Agarrai-vos bem... e tentai não bater tanto os dentes! Tendes frio a esse ponto?
Estou gelada!
Não penseis nisso! Quando chegarmos, encontrareis tudo o que for preciso para vos reconfortar. Mantende o vosso espírito fixo lá em cima! Tudo é preferível a casar com Cario Pazzi!
Daquela viagem, que a fez atravessar de norte a sul uma Roma nocturna batida por uma chuva diluviana, Fiora guardaria a recordação de uma espécie de pesadelo. O seu companheiro arrastou-a por um túnel negro e sem fim, de onde surgiam, por vezes, fustes de colunas esbranquiçadas, paredes arruinadas, um coto de vela vermelho balançando à porta de uma taverna e, por vezes, as pedras enormes e cinzentas de um palácio à porta do qual a resina dos potes de fogo não passava de brasas privadas de chama. Ouviam-se os ecos de uma festa, o som dos alaúdes e dos tamborins atravessar essas muralhas ou ainda, no exterior de um cabaré, os berros dos bêbedos e as canções acerca da bebida, mas a maior parte do tempo cavalgaram por uma cidade silenciosa como um cemitério. E Fiora tinha cada vez mais frio.
O ataque aconteceu quando estavam a chegar ao Corso. Saídos das sombras densas do palácio de San Marco construído em tempos pelo cardeal Barbo, uns homens atiraram-se à cabeça dos cavalos e arrancaram deles os cavaleiros, que rolaram por terra. Aquilo foi tão súbito que Fiora, meio atordoada, não teve tempo de ter medo, mas já Bórgia se levantava com uma ligeireza inesperada num homem com a sua corpulência e, blasfemando com uma exuberância que honrava o vocabulário de um príncipe da Igreja, apunhalou o mais próximo dos seus assaltantes. Uma lâmina brilhou na sua mão e ouviu-se um grito de dor. Mas dois dos outros bandidos, que estavam ocupados a segurar os cavalos, lançaram-se sobre ele. Fiora, corajosamente, levantava-se já para tentar ajudar o seu companheiro, atirando-se às costas de um dos agressores, quando uma voz seca estalou:
Parem ou largo os meus cães!
1 Que foi o Papa Paulo II. O seu palácio é hoje o palácio Veneza, que Mussolini tornou célebre.
Uns latidos furiosos sublinharam aquelas palavras e à luz da lanterna que segurava numa mão, viram ambos um homem que devia ter trinta e cinco anos, todo vestido de negro e com um grande capuz sem ornamentos enfiado até aos olhos. Na ponta de uma trela dupla enrolada em redor do seu punho esquerdo, dois grandes cães, tão negros como o dono, rosnavam mostrando os dentes impressionantes. Já os ladrões saltavam para os cavalos e fugiam sem mais palavras, abandonando sem hesitar o companheiro que arquejava numa poça de lama.
O recém-chegado aproximou-se dele e virou-o com a bota.
Não dura muito mais tempo constatou ele. Aliás, os homens de Soldan passam daqui a pouco. Eles encarregam-se dele.
A luz que ele erguia para examinar o moribundo desenhava um perfil acerado de ave de rapina, olhos profundamente enterrados no arco espesso das sobrancelhas e uma boca delgada e sarcástica. Endireitando-se, o homem atou os seus cães a um anel de ferro engastado na parede de uma casa vizinha, aproximou-se depois daqueles que acabava de socorrer e ergueu a lanterna para melhor os ver. A luz apanhou primeiro o vestido branco, evidentemente monástico de Fiora, antes de passar ao hábito castanho com que o seu companheiro estava vestido.
Uma freira!... e um monge! Que fazem a esta hora pelas ruas de Roma, meus amigos? Foge-se do convento, onde a vida, talvez, não tem alegria, para irem fornicar?
Salvastes-nos, estamos-vos agradecidos disse a voz autoritária de Bórgia. Não retireis mérito ao vosso feito insultando-nos! Tomai isto!
O ouro que subitamente brilhou na palma da sua mão arrancou um sorriso ao recém-chegado, que fez erguer a lanterna até ao rosto que o homem devia ter reconhecido.
Ah! Parece que me enganei: temos aqui um cardeal! Guardai o vosso ouro, monsenhor, sinto-me bem pago pela satisfação de ter trazido socorro ao meu próximo.
Quem sois? Parece-me que já vos vi?
Funcionário encarregado da polícia
O homem pareceu ficar ainda maior tanto se endireitou, e foi com orgulho que lançou:
O meu nome é Stefano Infessura, jurista, escriba, republicano e homem livre!
O Infessura! Eu conheço-vos! O inimigo da Igreja, do Papa e de toda a autoridade.
Não de todo, pois sou inimigo da desordem e, se sou amigo da liberdade, não é, certamente, a que vivemos nesta época: a liberdade de matar, de oprimir, de degolar gentes nas esquinas das ruas, a liberdade de transformar Roma num lugar perigoso, a vossa liberdade e a dos como vós. A minha não é a que vos permite a vós, príncipe da Igreja, raptar durante a noite uma religiosa, Evidentemente, ela é belíssima!
Eu não sou religiosa protestou Fiora cujo rosto, naquele momento, ficou iluminado pela lanterna. Sou uma prisioneira que se evade. E agora deixai-nos prosseguir o nosso caminho porque, se for apanhada, serei morta!
Ah!
A lanterna não baixou. O homem perscrutou os grandes olhos cinzentos que o olhavam com severidade, como se procurasse penetrar a verdade. E estes também não baixaram.
Quem te ameaça?
A curiosidade daquele desconhecido não chocou Fiora. Algo lhe dizia que podia confiar nele e, apesar da mão que Bórgia lhe pousava no braço para a incitar à prudência, ela respondeu:
O Papa e alguns do seu séquito, dos quais o cardeal Bórgia tenta proteger-me. Ouve. Já perdemos muito tempo...
O passo ferrado de um destacamento fazia ressoar, de facto, os ecos da noite. A milícia do Soldan a ronda romana não era lá grande coisa se se pensasse no número de mortes que se perpetravam quotidianamente, mas era preciso, contudo, contar com ela quando aparecia, se não se queria ir parar ao calabouço da Torre di Nona, que estava sob a sua jurisdição.
Não estão longe disse Bórgia e nós já não temos cavalos. É preciso caminhar e depressa.
Eu acompanho-vos declarou Infessura, indo libertar os cães. Ainda resta um lugar perigoso, perto das ruínas da coluna de Marco Aurélio. Zeus e Hera podem ser-vos úteis.
O escriba republicano, a sua lanterna e os seus molossos tomaram a dianteira. Solidamente segura pelo braço do cardeal, Fiora seguia o melhor que podia, se bem que o Corso fosse a maior via de Roma e o seu solo, onde alternavam as lajes antigas e um empedrado mal acabado, tinha muitos obstáculos para o peão que se aventurava nele de noite. A chuva desaparecera, como que por magia, com os malandrins, mas as goteiras substituíram-na com vantagem. Passaram sem estorvos o local delicado e, como a rua alargasse mais, puderam caminhar de frente.
Será indiscreto perguntou Bórgia ao seu companheiro perguntar-te o que fazes nas ruas à noite e com um tempo destes?
Não. Há três razões para isso: gosto de Roma, gosto de saber o que se passa nela quando as pessoas estão a dormir e gosto da noite. Durmo pouco e o dia é contrário ao meu feitio. Emprego-o a estudar e a escrever tudo o que aprendi.
Isso quer dizer que contarás no teu ”diário” o nosso encontro?
Eu escrevo para aqueles que virão depois de mim, não para os esbirros do Vaticano. O teu nome não será mencionado... e não conheço o dessa jovem. Só me interessa uma coisa: ela é uma vítima e, como tal, tem todo o direito à minha ajuda. Se me mentiram, o caso é entre vós e o vosso Deus.
Não temos razão nenhuma para mentir cortou Fiora.
Só tenho pena de não te poder agradecer.
Sorri para mim apenas uma vez e sentir-me-ei pago! Estavam a chegar ao seu destino, quer dizer, diante do menos convencional dos palácios romanos. Alguns anos antes, de facto, o cardeal Bórgia comprara, por dois mil florins de ouro, uma enfiada de velhas casas que tinham servido a Casa da Moeda e às quais chamavam, como consequência, a Zecca. Essas casas tinham, aos seus olhos, a vantagem de estarem suficientemente longe do Vaticano, porque se situavam na rua que, na outra margem do Tibre, ia do castelo de Saint-Ange à praça principal do bairro dos estrangeiros. Daquele conjunto um pouco disparatado,
Hoje praça de Espanha
a fortuna do vice-chanceler fizera uma residência de uma grande riqueza ornamental, que o povo romano não cessava de admirar desde que a descobrira, em 1462, por ocasião da grande procissão que conduzia a São Pedro a urna contendo o crânio de Santo André trazida da Grécia pelo déspota Morée. Com um certo segundo sentido e na esperança de que um dia ou outro o cardeal Bórgia se tornaria Papa, porque o costume dizia que o palácio do Eleito seria entregue, então, à multidão, que se enrolaria nele, deliciada, na mais alegre das pilhagens.
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