Creio que não tenho muitos pecados para confessar. Sem dúvida, antes do cadafalso, serei torturado?

Não creio. Ninguém me disse nada e, normalmente, seria avisado. Creio acrescentou ele com um meio sorriso que podereis caminhar firmemente para a morte, se é isso que vos atormenta.

Philippe não conseguiu reter um suspiro de alívio. Era a melhor notícia que lhe podiam ter trazido. Nada lhe enfraqueceria a coragem e aqueles que já se amontoavam na praça do Morimont veriam como morre um cavaleiro do Tosão de Ouro.

Ajoelhando-se diante do monge sentado na enxerga, esvaziou a alma de tudo aquilo que, em trinta anos de existência, poderia ter acumulado de faltas, pesadas ou leves. Aquilo durou mais do que imaginara, porque, à medida que recuava no tempo, a sua memória restituía-lhe recordações mais ou menos enterradas com os rostos daqueles que tinha matado, na guerra ou em duelo. O mais difícil foi, sem dúvida, confessar por que meios obrigara Francesco Beltrami a dar-lhe a mão de Fiora e o dote fabuloso que a acompanhava.

Mas esse ouro defendeu-se ele não o queria para mim. Era para o meu príncipe, que dele tinha muita necessidade.

Compreendo disse o monge severamente fizestes negócio com uma alma inocente. Não podíeis amar essa jovem...

Tanto podia, que continuo a amá-la, já que ela é minha mulher e nunca deixarei de a amar. Fui apanhado na minha própria armadilha e é esse o meu castigo. A minha única dor é não ter notícias dela.

Seguiu-se um silêncio apenas perturbado pela respiração atormentada de Selongey. O monge olhava-o sem o ver, absorto num sonho interior. Subitamente, tirou do hábito um pequeno rolo de papel que meteu na mão do prisioneiro.

Um homem, que vi ontem à tarde, suplicou-me que vos entregasse este bilhete. Contém, parece, essas notícias que tanto esperais.

Philippe pegou na mensagem como se se tratasse de uma hóstia. Os seus olhos dourados acabavam de se iluminar.

Esse homem disse-vos o nome?

Nem eu teria aceite que não. Disse-me que se chamava Mathieu de Frame.

Esquecendo que devia permanecer ajoelhado até ter recebido a absolvição, Philippe, invadido por uma grande alegria, levantou-se e caminhou até ao respiradouro invadido pela luz rosada da madrugada. O seu coração batia-lhe com toda a força no peito, de maneira quase dolorosa. Os seus dedos tremiam em redor do pequeno rolo que não ousava abrir. Quando, em Março último se separara, em Gand, de Frame, seu escudeiro, mas também o seu melhor amigo ao longo de tantos anos, lado-a-lado na guerra e na paz, enviara-o a Touraine para saber o que acontecera a Fiora. A ideia de nunca mais saber nada dela era-lhe intolerável e ninguém melhor do que Mathieu para levar a cabo essa delicada missão: ver sem ser visto, saber sem que lhe adivinhassem a presença. A honra, e também, talvez, o orgulho, impediam que Selongey se aproximasse da sua mulher, já que ela o intimara a isso de maneira extremamente cavalheiresca, mas temia, acima de tudo, que levasse a cabo a última ameaça que lhe lançara: anular o seu casamento, reconquistar a liberdade, a sua mão e o seu coração... talvez para os dar a um outro homem. Se fosse esse o caso, Philippe queria saber a quem devia desafiar para um combate. Mesmo longe de si, Fiora continuaria a ser sua, fosse a que preço fosse.

Mathieu não ficara encantado com a missão:

Confias-me uma missão de espião?

Antes uma missão de amigo. Eu não posso ir, porque entrar em França significa correr o risco de me deixar aprisionar. Luís XI sabe que nunca lhe prestarei vassalagem e a ocasião seria boa demais para fazer da minha mulher uma viúva. Mas, para defender o que me pertence, juntar-me-ei a ti. Juntos, podemos raptá-la.

Por que não fazê-lo já, nesse caso?

Porque quero dar-lhe mais algum tempo. Porque quero ver quanto vale o seu amor. Para já, ela não me perdoaria um golpe de força.

Resmungando, mas convencido, Prame partira. Alguns dias mais tarde, a duquesa Maria enviava Selongey a Dijon e o cavaleiro nunca mais recebera as notícias tão esperadas.

Não ledes? reprovou-o o monge.

Philippe virou para ele um sorriso inseguro. A sua hesitação era ridícula, sabia-o bem. Tinha a ver com o medo de ler palavras cruéis. Mathieu não tinha nada de cronista e manejava a pena como um aprendiz de frade. Não podia contar com ele para ornamentar com arabescos e doçura lenificante a brutalidade das coisas.

Reunindo a sua coragem, Philippe desenrolou, por fim, a mensagem. Esta continha, com efeito, poucas palavras: ”Ela está bem. Não pode haver anulação, porque espera uma criança para Setembro... Perdoa-me por ter chegado demasiado tarde. Sou teu amigo fiel e gostaria tanto de te ajudar... Sinto-me muito infeliz...

As lágrimas subiram aos olhos de Philippe, que não tentou dissimulá-las. Tinha aberto a sua alma ao pequeno monge; que importava se ele o via, agora, chorar? Como lesse uma certa inquietação naqueles olhos cândidos, estendeu-lhe a mensagem.

Lede, meu irmão! Compreendereis porque choro... de alegria. Que Deus, na sua bondade, me conceda um filho, porque, assim, não morro.

Rezarei por isso, mas vinde receber a absolvição e a hóstia, porque faz-se tarde e já ouço barulho.

Ainda uma palavra. Sem dúvida, voltareis a ver Mathieu. Dizei-lhe que proíbo que a minha mulher saiba do meu destino.

Pelo menos, até dar à luz. A criança poderia sofrer com o seu desgosto... porque espero, mesmo assim, que tenha algum.

Podeis ficar descansado! Dir-lho-ei. Ajoelhai-vos, agora, para que vos perdoe em nome de Deus Todo-Poderoso.

Era tempo. Mal o corpo de Cristo tocou nos lábios do condenado, a porta abriu-se, dando passagem ao velho carcereiro acompanhado por um barbeiro. Aquando da pronunciação da sentença, com efeito, Selongey pedira para ser barbeado antes de ser conduzido ao cadafalso. Fazia questão de se mostrar com a melhor aparência possível.

A operação foi levada a cabo rapidamente. O barbeiro era hábil e tinha a mão ligeira. Levou, até, a sua complacência ao ponto de escovar cuidadosamente as vestes poeirentas do prisioneiro.

Não tenho nada para te dar como pagamento disse Selongey quando ficou pronto. Deixaram-me sem vintém.

Não vos preocupeis, messire. Serei pago... e se não o for, não tem importância. Sinto-me orgulhoso por vos ter prestado este serviço.

Conheces-me, nesse caso?

Não em pessoa, mas a minha mãe é de Selongey. Tenho muita pena de vos ver partir deste mundo sem um herdeiro.

Philippe sorriu e pousou uma mão amigável no ombro daquele último amigo.

Creio que Deus providenciou. Se queres ainda fazer qualquer coisa por um ”conterrâneo”, reza-Lhe para que a minha bela mulher, que está longe daqui, infelizmente, mas que está grávida, dê ao mundo um filho. Com uma mãe daquelas, ele saberá, estou certo, honrar o nosso nome.

Philippe estava pronto. O barbeiro retirou-se com as lágrimas nos olhos e foi substituído por um piquete de soldados que não ultrapassou a porta. O velho carcereiro tirou uma chave do molho que transportava à cintura e desembaraçou o prisioneiro dos ferros que o prendiam às correntes, logo substituídas por uma corda sem que o prisioneiro tivesse tido tempo, sequer, de esfregar os pulsos doridos. Philippe viu-se com as mãos atadas atrás das costas. Protestou:

Não posso morrer com as mãos livres?

São as ordens respondeu o sargento que comandava o piquete de arqueiros. E agora vamos, que chegou a hora!

Com um último olhar para aquela prisão que tanto detestara, mas que, no entanto, se lhe tornara querida porque lhe parecera ver flutuar nela a sombra límpida de Marie de Brévailles, o condenado franqueou a porta baixa seguido do seu confessor que rezava de cabeça inclinada, colocou-se entre os soldados que o esperavam, trepou com eles a escadaria cujos degraus de pedra, utilizados por milhares de botas ferradas, estavam gastos ao meio e saiu, por fim, para a rua onde o esperava uma carroça, talvez a mesma que conduzira os Brévailles à morte vinte anos antes, porque era um veículo velho, de pranchas de madeira desconjuntadas. No entanto, ao vê-la, Philippe deixou sair um novo suspiro de alívio. Temia a humilhação suprema de ser arrastado pelo meio da poeira e dos detritos como era hábito em Dijon com os condenados. Como não era o caso, sentiu-se bastante melhor. Lembrou-se que não terminara o seu pão, mas não sentiu pena; sentia-se bem-disposto e em plena posse das suas faculdades, o que não podia deixar de ser uma graça de Deus. Decidido a esquecer este mundo, ergueu os olhos para o céu de um azul delicado que a incandescência do sol de Verão ainda não branqueara. O dia prometia ser belo. Tinha, naquela manhã, a glória triunfante da juventude. Estava um tempo bom para correr pelos prados, para pescar num ribeiro com um jarro de vinho metido na água corrente para refrescar, um tempo bom para ler belos versos à sombra de um velho carvalho ou simplesmente cheirar as rosas levando pela mão a dama amada, um tempo bom para a felicidade e para a alegria de viver, enfim...

Enquanto a carroça se afastava aos solavancos sobre as grandes pedras da rua pavimentada e em todos os campanários os sinos das igrejas começavam a tocar a finados esse toque não cessaria senão no momento em que a sua vida se extinguisse Philippe preferiu olhar para o cimo das árvores onde as aves cantavam e para o céu que, esse, celebrava tão bem, naquela manhã, a glória de Deus. O mundo dos homens, na verdade, não era belo, e ele preferia ignorá-lo. Zumbia de troça, de injúrias, que se erguiam à passagem da carroça. Aquele povo era incompreensível. Primeiro, parecia ter-se entregue à sua princesa hereditária e agora vaiava um homem que o quisera ajudar a permanecer fiel. Na realidade, aqueles que sentiam a perda do duque Carlos não eram muito numerosos e se não estavam prontos a acolher a autoridade do Rei de França, aquele que ia morrer tinha a impressão aflitiva de que a morte do Temerário aliviara mais do que um. Quantos mais homens novos fossem recrutados para tapar os buracos que as derrotas tinham semeado nos exércitos, mais impostos seriam forçados a pagar para o tesouro de guerra! Já não seria necessário esconder os bens nem desconfiar do vizinho. Aquela cidade tinha mais burgueses do que fidalgos e os burgueses sempre foram amigos da paz.

Ao ouvir todos aqueles sinos, Selongey teve um pensamento e inclinou-se para o pequeno monge que, a seu lado, recitava a oração dos agonizantes.

Eu pensava sussurrou ele que depois da batalha de Morat o duque Carlos tinha ordenado que todos os sinos da Borgonha fossem levados para a fundição de canhões? Parece-me que ainda restam muitos? Terão tido tempo de fundir novos?

O irmão ergueu para ele um olhar estupefacto:

Vós ides, dentro de momentos, comparecer diante de Deus, meu irmão! Não achais que seria mais conveniente ter outros pensamentos?

Eu vou deixar este mundo. Deixai que me interesse por ele um pouco mais! Então, esses sinos?

Levaram, sobretudo, os das aldeias. Aqui, as igrejas também deram alguns, mas os menos belos. Alguns são verdadeiras obras de arte, com vozes divinas. Teria sido um sacrilégio fazer deles bocarras de fogo.

Os humildes sinos das aldeias tinham, para os seus camponeses, quando davam as horas, o mesmo valor. Não coreis, meu irmão! Lá onde ele está... para onde eu também vou dentro de momentos, o duque Carlos já não pode amesquinhar os homens.

Achais que estais em condições de julgar, neste momento? Esquecei o que fostes e pensai que não passais de um homem entre os homens, que ofendeu a Deus.

Pedir-lhe-ei perdão dentro de momentos. Mas, nem mais uma palavra, meu irmão: estamos a chegar!

Philippe experimentou uma sensação bizarra. Acabava de sair da masmorra onde Marie de Brévailles sofrera as dores do parto; agora, ia para a morte numa velha carroça, talvez a mesma da última viagem dos jovens amantes incestuosos e sentia-se perto deles como nunca. Aquele ligeiro estremecimento, no seu ombro, seria provocado pela mão suave da sua sogra? Aquele sussurro no seu ouvido seria a voz de Jean, que, quando ele próprio não passava de um pajem turbulento, sabia tão bem levá-lo para o bom caminho e evitar-lhe as severas correcções do camareiro-mor ducal? Nada supersticioso e pouco inclinado a interrogar-se acerca dos mistérios do Além, o condenado sentiu-se, no entanto, envolto numa espécie de bem-estar, rodeado por algo de caloroso que não tinha nada a ver com o ardor do sol, mas que lhe reconfortava a alma e lhe sustentava a coragem. E foi com naturalidade que murmurou:

Velai por eles, peço-Vos! Pela minha mulher e pelo meu filho. Eles vão ter necessidade. Eu, dentro de momentos, juntar-me-ei a Vós...