A jovem viu que se encontrava num patamar iluminado por uma lanterna de azeite. Um lanço de escadas estreitas subia para o terraço onde estavam os guardas e um outro descia para as profundezas do edifício. Foi por este último que ela se meteu, puxando o mais possível o véu negro sobre o rosto e esforçando-se por imitar o porte daquela a quem tirara as roupas.

A escada levou-a até ao rés-do-chão sem encontrar vivalma nos dois patamares por que passou. Então, viu-se face a uma espessa porta ferrada que dava, talvez, para aquele jardim que ela nunca tinha visto, e que parecia impossível de abrir. Recordando-se das chaves que levava à cintura, procurou uma que servisse, mas eram todas muito pequenas.

Ao lado da escada havia outra porta pintada e trabalhada. Aproximando-se, Fiora ouviu vozes e risos de homens. Em seguida ouviu-se um barulho de móveis a serem arrastados, ao mesmo tempo que o tom das vozes subia. Os homens iam bater-se naquela sala, que talvez fosse a dos guardas do palácio. A evitar, portanto.

Fiora voltou a subir um andar na esperança de que a porta que dava para esse patamar fosse possível de abrir. A jovem recordava-se, com efeito, de ter reparado, ao chegar com Bórgia na noite da fuga do convento, num balcão que devia estar situado ao lado dos aposentos da guarda.

Se pudesse chegar a esse balcão, que era utilizado para ver os espectáculos da rua, talvez conseguisse descer dali para o chão. Mas era preciso chegar lá.

Com extrema precaução, a jovem experimentou a grande fechadura trabalhada. A porta abriu-se facilmente e sem barulho. Para lá estava uma grande sala, mal iluminada por um candeeiro pousado em cima de uma mesa espelhada, que parecia mergulhar no infinito. A jovem avançou até ela com precaução, mas sem ser obrigada a sufocar o ruído dos seus passos.

Tapetes espessos cobriam as lajes escuras, sobre as quais as chamas das velas se miravam, como num lago. O tecto alto estava pintado à semelhança de um céu estrelado e só faltava um pouco de ar para imaginar que se estava no exterior. Os divãs dourados e as almofadas estreladas de ouro estavam por toda a parte e Fiora recordou-se de ter ouvido Juana gabar uma certa ”sala das Estrelas”, onde o seu querido cardeal dava sumptuosas festas.

A travessia daquela sala magnífica pareceu-lhe durar um tempo infinito. No entanto, via o suficiente para não bater em nenhuma das cadeiras, ou outros móveis que ali se encontravam espalhados. Por fim, ela sentiu sob a mão os bronzes de uma porta e quase gritou de alegria: aquela abria directamente para o balcão.

Fiora avançou lentamente, rasando as paredes pintadas de frescos com medo de ser vista da rua, mas reinava um silêncio total para lá da balaustrada de pedra esculpida. A jovem aproximou-se, um pouco encorajada pela possibilidade de a poderem confundir com Dona Juana, inclinou-se e não viu nada. A grande rua, iluminada vagamente pelos dois potes de fogo colocados à entrada do palácio, de cada lado do brasão com o touro de pedra, parecia deserta e nenhuma luz brilhava no jardim nem na casa em frente. Era tranquilizador, mas a altura a que se encontrava o balcão era-o menos. A escuridão dava a Fiora a impressão de estar à beira de um abismo sem fundo, onde iria morrer. Mas não tinha escolha e já não era possível voltar atrás. Era preciso fazer qualquer coisa, mesmo que, à primeira vista, o gesto parecesse irrisório.

Tirando o véu negro da cabeça, a jovem rasgou-o em dois ao longo do comprimento, atou as duas pontas o mais solidamente possível e depois atou o todo à fina balaustrada. Após o que, tendo feito um rápido sinal da cruz, subiu para cima do balcão virando as costas à rua, agarrou no véu com as duas mãos que tremiam um pouco as pernas também, aliás! e começou a descer suavemente. O coração batia-lhe com toda a força no peito. O primeiro andar de um palácio romano, tal como o de um palácio florentino, era, pelo menos, de três toesas e a corda improvisada não devia medir mais de uma, tendo em conta os nós que fora preciso fazer. Dentro de um instante, teria de saltar e o chão da rua, pavimentado com redondas e cruéis pedras do Tibre, não era nada meigo.

E foi preciso saltar mais depressa do que ela pensara. O véu era de seda e o nó central desfez-se quando ela o atingiu. Foi a queda. Assustada, Fiora teve, de qualquer modo, a presença de espírito suficiente para não gritar. No entanto, alguém gritou, porque, para sua surpresa, aterrou sobre qualquer coisa mole, o que suavizou a sua chegada.

Repreendida vivamente por um dilúvio de imprecações, Fiora olhou com estupor e desolação para o mendigo que se tinha deitado ao longo da parede do palácio, ao abrigo do vento e sobre o qual acabava de cair. De pé também ele, o homem mostrava, sob um velho chapéu amolgado, um rosto rubicundo eriçado de pêlos cinzentos e olhos furibundos:

Ma... magoei-vos?

É claro que magoaste! O que é que te deu p’ra me caíres assim em cima? Vens a fugir?... Qu’interessante, uma mulher a fugir do palácio Bórgia!

As suas mãos, que pareciam tão fortes como duas tenazes, tinham agarrado na jovem e não pareciam dispostas a largá-la. O homem procurava arrastá-la para o portal e ela resistia o melhor que podia quando, subitamente, do mais profundo da sua memória surgiu uma recordação: a de um homem velho que, uma noite, lhe oferecera a hospitalidade do seu tugúrio num palácio florentino em construção. O homem dissera que, através de uma simples palavra, se reconheciam todos aqueles que pertenciam à confraria dos mendigos e essa palavra veio-lhe, com toda a naturalidade, à boca:

1 Antiga medida francesa que media 1,949 m.


Mendici! murmurou ela.

Magia. O homem largou-a imediatamente, ao mesmo tempo que o seu olhar, de furioso, passou a curioso:

Também és, tu? Cust’acreditar. Devia conhecer-te, não?

Não. Sou de Florença e fui trazida para aqui à força. Vou voltar para casa...

À força? É verdade qu’és uma bela rapariga e qu’as raparigas bonitas desfilam, aqui. Sabes o caminho pr’a Florença?

Não, mas espero encontrá-lo. É preciso ir para norte?

É preciso sair pela porta del Popolo! Como me deste cabo do sono, eu mostro-te por onde... mas, se tivesses uma coisinha p’ra me dar pela dor que me causaste, fazia-me bem. Fizeste-me muito mal, sabias?

Sem responder, Fiora vasculhou na esmoleira de Juana onde tinha, sem a explorar, metido a corrente e a medalha com a intenção de dar esta. Para sua surpresa, sentiu sob os dedos a redondeza de algumas moedas, tirou uma com a impressão de que era um ducado e meteu-a, sem olhar para ela, na mão do mendigo que, esse, deu alguns passos na direcção dos potes de fogo. Ela compreendeu que não se enganara ao vê-lo morder a moeda.

É mesm’ouro! constatou ele. Também me espantava muito se não tivesses encontrado uma ou duas destas moedas nesta casa. Vem! Vamos embora! Eu mostro-t’o caminho e depois deixo-te. Não quero que me vejam na companhia d’uma mulher que está em fuga!

Ele arrastou-a por uma rua estreita que se abria a um canto do palácio e enfiou a direito por entre duas filas de casas de altura desigual. Os olhos de Fiora iam-se acostumando à escuridão. De resto, no céu, as nuvens, empurradas pelo vento vivo, afastavam-se, desfaziam-se, para deixar ver, por instantes, algumas estrelas. O homem caminhava rapidamente, mas ela seguia-o sem dificuldade. E então, de repente, deixou de haver casas, nada, senão um vasto espaço vazio, um enorme terreno vago onde se amontoavam as ruínas de uma igreja e uma espécie de túmulo todo amassado. O mendigo deteve-se:

Agora, deixo-te. Só tens que caminhar a direito, deixando à tua esquerda o mausoléu de Augusto.

Aquela coisa ordinária é o mausoléu de Augusto?

Ou o que resta dele. Faz como te digo! Primeiro, além ao fundo, verás as braseiras na muralha. A porta del Popolo é mesm’em frente.

Ela nem teve tempo de agradecer. O mendigo fundiu-se, sem fazer mais barulho do que um gato, na sombra densa da igreja arruinada. Fiora ficou ali por um instante, à beira daquele deserto, saboreando uma impressão maravilhosa esquecida há muitos dias: estava só, estava livre... Uma vez fora daquela cidade, uma vez transposta a porta da qual apercebia vagamente as fogueiras de vigília, só teria a longa estrada que ia dar à sua querida cidade do Lis vermelho. Esqueceu que era de noite, que estava frio e que, enquanto não estivesse longe das muralhas de Roma, que deixara para trás, estaria em perigo, já que era verdade que o primeiro contacto de um prisioneiro com a liberdade é sempre exaltante. Tinha vontade de correr para poder ter a impressão de que voava, mas teria sido perigoso naquele terreno desigual e sem a menor luz que lhe permitisse seguir um traçado qualquer, admitindo que houvesse um.

Fiora pôs-se, portanto, a caminho calmamente na direcção do ponto que lhe tinham indicado, tentando não tropeçar nos montículos de terra onde as lajes se sobrelevavam, lamentando não ter uma bengala ou um pau qualquer para apalpar o caminho. Chegava mais ou menos ao local do mausoléu abandonado, ao pé do qual aparecia uma luz vaga por entre os arbustos, quando dois braços se abateram sobre ela e a agarraram pela cintura, reduzindo-a à impotência a despeito da sua defesa, ao mesmo tempo que uma voz triunfante gritava:

Apanhei uma!

Estás a sonhar! disse uma outra voz. Deves ter apanhado um pastor qualquer!

Estou-te a dizer que é uma mulher! Até tem umas tetas bem redondas e firmes!

Outro par de mãos pousou-se em Fiora, apalpando-lhe os seios ou apoiando-se na sua boca para a fazer calar. Em breve havia quatro ou cinco sombras que a apertavam, cheirando a couro, a cavalo e até a imundície. A jovem pensou que caíra em poder de bandidos e esforçou-se por morder a mão que a sufocava sem o conseguir. Uma nova voz, imperiosa, ordenou:

Trazei-a aqui para vermos com que se parece! Resistir era impossível. As sombras que seguravam Fiora e que estavam mascaradas de negro arrastaram-na na direcção do mausoléu. Ela viu-se numa espécie de nicho no meio dos arbustos e iluminada por uma lanterna. Um pouco mais longe, estavam umas vacas presas.

Atiraram Fiora por terra e ela viu erguer-se, diante de si, também ele mascarado, um homem grande e forte, vestido com um gibão bordado sob uma grande capa negra e que, com as mãos nas ancas, a olhava rindo a bandeiras despregadas e mostrando umas presas de lobo.

Segurai-a! ordenou ele ao ver a jovem debatendo-se furiosamente para se levantar. É um verdadeiro gato furioso... mas dir-se-ia que tivemos sorte. Uma bela presa, por minha fé! Aquelas que vêm a estas ruínas à noite em busca de ervas não são assim tão apetitosas! Vejamos isto mais de perto! Abre-lhe o corpete, Orlando, e tu, Guido, levanta-lhe as saias.

Por um instante, Fiora, horrorizada, viu-se com os seios e as coxas ao ar, ao mesmo tempo que o chefe começava a desatar a braguilha. Ela torceu-se como um verme, o que fez os seus companheiros desatarem a rir.

Deixa-te de histórias, filha, não vais morrer! Nós só somos seis!

Livre por um instante da mão que lhe tapava a boca e que deslizou, Fiora berrou:

Socorro! A mim! Soe...

A jovem ouviu, então, uma voz que respondia em eco:

Ataca, Zeus! Ataca, Hera!

Surgidos da noite, as poderosas formas negras dos grandes cães que ela já conhecia abateram-se sobre quatro homens ao mesmo tempo, que começaram a berrar sob as mordidelas. Ao mesmo tempo, o seu dono aparecia no halo amarelo de uma lanterna. A sua bengala transformara-se numa longa espada cuja ponta se foi apoiar na garganta do homem que se preparava para violar Fiora:

Então, senhor Santa Croce disse a voz fria de Infessura agora são precisos seis para molestar uma burguesa romana?

Uma burguesa, isso? Estás a brincar, amigo? Que faria uma burguesa a estas horas nestas ruínas?

Até a mulher de um notário tem o direito de ir ter com o amante que é dos Colonna, como este velho mausoléu e tudo o que o rodeia. Devias saber isso, Giorgio Santa Croce! Assim como devias saber que estás longe de casa e que vinte homens estarão aqui dentro de instantes se eu assobiar de uma certa maneira!

Santa Croce hesitou, mas a ponta da espada fez sair uma gota de sangue do seu pescoço. Eras capaz de me matar por causa de uma burguesa?

Sem hesitar, porque o Papa dar-me-ia razão. Ele estima muito os magistrados desta cidade.

Está bem! Baixa a tua espada e chama os teus cães! Não quero que me devorem os meus amigos.

A bem dizer, destes só restavam dois, os que Zeus e Hera mantinham por terra sob a ameaça das suas presas avermelhadas. Os outros três tinham preferido uma fuga sem glória para tratarem das feridas e evitar aborrecimentos mais sérios. A uma ordem do dono, os dois animais foram sentar-se a seus pés. Mas um dos dois homens assim libertados teve um gesto de furor. Tirando um estilete do cinto, feriu Fiora: