O riso do Infessura cortou-lhe a palavra. Uma grande risada sonora e alegre, que não ia nada bem com a sua personagem de ave nocturna.
Ninguém diria, ao ver-te, que és um velho guerreiro, Dona Fiora! Portanto, conheceste o Temerário, esse príncipe fabuloso?
Vivi junto dele até à sua morte, mas disse Fiora com um sorriso pálido não és republicano? Por que te interessas assim por um príncipe?
O príncipe morreu e isso muda tudo. A sua história apaixona-me, como tudo o que é História em geral. Terás de me falar dele, Dona Fiora! Em seguida, virando-se para Anna: Podes ficar aqui com ela durante alguns dias até ficar melhor? Eu, depois, levo-a para minha casa. Não te escondo que os esbirros do Papa procuram-na e agora, sem dúvida, também os de Bórgia.
Anna, que limpava o ferimento com vinho de ervas antes de o embeber num unguento de odor picante, não tirou os olhos do seu trabalho:
Posso ficar com ela durante quatro ou cinco dias e penso que serão suficientes, se a febre não subir. O meu pai foi a Perusa, à cabeceira de um velho amigo. É uma sorte!
O rabino Nathan já não abre a porta ao infortúnio? perguntou Stefano com uma severidade onde entrava a decepção.
A todos, não. As boas disposições do Papa para com a comunidade judia de Roma são-lhe muito caras.
Também ao Papa. Ele arranca-vos muito ouro!
Sem dúvida, mas deixa-nos viver em paz e até nos protege contra os nossos vizinhos. Se ele e os Cenci nos tiram o apoio, as feras raivosas que estão à nossa porta e que nos espreitam, atiram-se a nós e queimam-nos as casas. Isso conta.
Que histórias! exclamou Khatoun, que até ali se tinha mantido em silêncio, contentando-se em manter nas suas as mãos de Fiora, que levava às faces de vez em quando como nos velhos tempos, quando viviam juntas no palácio Beltrami. Por que não há-de vir para nossa casa? Estou certa de que a condessa Catarina, a minha nova senhora, ficaria feliz por acolhê-la. Ela é a única, em Roma, que se preocupa com ela e que sempre fez tudo para a ajudar. O palácio é grande e...
Mas é o palácio Riario cortou o Infessura. Mais vale lançá-la aos tigres...
Além disso continuou Anna Dona Catarina vai em breve dar à luz. Tu sabe-lo muito bem, Khatoun, porque vieste sozinha, esta noite. A propósito, são horas de te dar o que vieste buscar e de regressares a casa.
Oh não! protestou Khatoun. Já, não! Acabo agora mesmo de reencontrar a minha querida senhora, que foi para mim como uma irmã e queres mandar-me já embora? Tenho tantas coisas para lhe dizer, tantas perguntas para lhe fazer...
Perguntas, só mais tarde! Ela já falou demais! Vamos levá-la para uma cama e tu vais-te embora. A tua escolta já deve estar preocupada. Podes voltar amanhã e sempre que quiseres acrescentou ela ao ver que o rosto da pequena escrava se enchia de lágrimas. Ajuda-nos a levá-la lá para cima!
Acendendo uma vela na grande lanterna de azeite que iluminava a sala, ela dirigiu-se para os degraus da escada para erguer a cortina enquanto Stefano e Khatoun ajudavam Fiora, devidamente ligada, a descer da mesa onde estivera deitada. Por uma escada estreita de pedras pouco segura, onde uma corda servia de corrimão, chegaram ao andar de cima. Acima do patamar forrado de madeira encontrava-se uma porta que Anna desdenhou. Virou-lhe, mesmo, as costas e fez força numa moldura grosseira. Abriu-se um painel, que ela transpôs para ir acender três grandes lâmpadas de cera fina colocadas num candelabro de prata. O local iluminou-se para espanto dos que seguiam a jovem. Separadas por espessas tapeçarias de veludo negro, erguidas por pesados ganchos de prata, estavam três divisões a seguir umas às outras, três divisões decoradas com um luxo oriental que revelava a real riqueza do rabino e da sua filha. Poucos móveis. Apenas leitos baixos e compridos, algumas arcas pintadas, mesas baixas incrustadas de marfim, uma profusão de almofadas cintilantes e tapetes, sobretudo tapetes. Da Arménia ou do Cáucaso, de longo pêlo, tão espesso como a erva dos campos, cobriam as lajes de pedra; de trama larga, leves e sedosos, decoravam as paredes. Pousado no chão, um grande jarrão de perfume em bronze exalava um vapor odorífico que lutava vitoriosamente contra os eflúvios malcheirosos da rua e nas janelas fechadas, que no lado de fora ostentavam cordas para estender roupa, havia reposteiros duplos, apanhados, de cendal amarelo-dourado e que, vistos do exterior, eram acinzentados.
Após depositarem Fiora num divã do quarto mais recuado, a judia foi buscar a uma arca uma túnica de seda amarela e depois, virando-se para o Infessura:
E agora, deixa-nos, homem livre! Volta, também tu, quando quiseres. Khatoun sairá daqui depois de ti!
É a segunda vez que me salvas disse Fiora estendendo a sua mão válida a Stefano. Como poderei agradecer-te?
Eu não sou nenhum Bórgia para te pedir um pagamento. Basta-me saber que somos amigos.
Isso é pouca coisa!
Achas? Para mim, ter amigos é como ter uma religião. A amizade, vê lá tu, é o amor sem asas. É menos exaltante, talvez, mas muito mais sólida.
Um momento mais tarde, deitada naquele leito estranho e acolhedor como um casulo, Fiora esperava pelo sono que Anna lhe prometera ao fazê-la beber uma malga de leite com algumas gotas de um licor desconhecido. No entanto, esse sono tardava em chegar. Talvez porque a jovem não conseguia esquecer a sua decepção. Evidentemente, acabava de escapar a grandes perigos, evidentemente, estava salva, mas não fizera mais do que passar de um quarto para outro, luxuoso sem dúvida, mas que ficava a perder no que respeitava ao ar livre e à liberdade. Teria preferido cem vezes terminar aquela noite encostada a um muro qualquer em ruínas, numa casa qualquer em ruínas, porque o dia seguinte veria abrirem-se para ela as portas daquela Roma que odiava com todas as suas forças. A estrada de Florença, por um instante entrevista, evaporara-se como uma miragem.
A droga começava a agir. O corpo dorido da eterna fugitiva distendeu-se, ao mesmo tempo que o seu coração se apaziguou. A despeito da sua sorte precária, não dava provas de ingratidão para com a sorte, que pusera no seu caminho Stefano Infessura e os seus cães e que, sobretudo, lhe permitira reencontrar Khatoun naquela noite? Era a infância, a adolescência feliz que acabavam de reaparecer diante de Fiora sob a aparência da pequena tártara, que Léonarde comparava de boa vontade a um gatinho por causa do seu rosto triangular, do seu gosto pelo leite e pelos bolos e da maneira que ela tinha de se enroscar nas almofadas de seda que compunham o seu leito. Era também a devoção e a horrível recordação da casa da Virago, o bordel das margens do Amo, de onde Khatoun, entregue como a própria Fiora à prostituição, desaparecera, uma noite, para seguir um homem apaixonado por ela. Fiora recordava-se que era um médico de Roma, mas, nesse caso, como fora Khatoun parar ao serviço da condessa Riario? Foi sobre esta última questão que a jovem ferida, por fim, caiu num sono que iria durar mais de doze horas.
A história de Khatoun era simples e triste. A jovem tártara contou-a a Fiora no dia seguinte. O homem que ela conhecera em casa da Virago, Sebastiano Dolci, era um médico rico de Roma que, sob o pretexto de viajar para se instruir, gostava de esquecer, na casa de Pippa, a austeridade exigida pelas conveniências de uma existência burguesa e conformista pela qual velava, depois da viuvez de Sebastiano, uma tia já idosa. Essa dignidade um pouco severa valera-lhe a consideração dos seus vizinhos e um gabinete com a melhor das freguesias. Mas, de tempos a tempos, Sebastiano, que só tinha quarenta anos, sentia a necessidade de se evadir e foi assim que, tendo ido um dia a Florença para ali se encontrar com um professor da Universidade, descobrira um lugar de prazer, ao qual acabara por votar uma certa fidelidade. Pippa sabia que género de raparigas ele preferia e ele raramente ficava desiludido, mas na noite em que ela lhe levou Khatoun, ele sentiu uma emoção tão profunda que recusou, chegada a manhã, separar-se dela e comprou-a à alcoviteira.
Pelo seu lado, Khatoun sentira-se seduzida por aquele belo, doce e terno homem, que ao saber que ela era virgem a tratara como teria tratado a sua noiva na noite de núpcias. Tinham feito amor alegremente e foi com a mesma alegria que a pequena tártara seguiu aquele novo senhor que só queria ser seu escravo. A jovem acompanhara-o a Roma com o coração tanto mais ligeiro quanto os latidos da Virago, de madrugada, lhe tinham anunciado que Fiora, liberta por Demétrios, conseguira escapar aos seus inimigos.
Sebastiano estava tão apaixonado que quis casar com Khatoun, na viagem de regresso numa pequena capela perto do lago Trasimène e foi quase em triunfo que a levou para sua casa na via Latina. Um triunfo que não fora do agrado de toda a gente.
O médico apaixonado bem dissera que a sua jovem esposa era uma princesa exilada que um navio veneziano embarcara em La Tana e trouxera para as margens do Adriático, mas a tia só via uma coisa: o seu sobrinho tinha-se apaixonado por uma rapariga de cor que não podia inspirar nenhuma confiança à cristã picuinhas que era. O facto de Khatoun ter jurado que era baptizada e crente não mudara nada: a tia recusara-se a dar-lhe, na casa, o lugar a que tinha direito, não a autorizando a existir, bem contra a vontade, mas pela força das coisas, senão na câmara conjugal.
Não ter que gerir uma casa não desgostara absolutamente nada a jovem signora Dolfi. Ela ignorava quase tudo acerca da profissão de dona-de-casa, porque, no palácio Beltrami, lugar onde nascera na realidade, tinha um papel puramente decorativo na generalidade e em particular o de ser companheira de Fiora. Sentia-se feliz por se consagrar unicamente ao seu querido Sebastiano e se, por vezes, os dias de solidão lhe pareciam longos e um pouco amargos, as noites compensavam-na amplamente pelo ardor que os jovens esposos punham no amor.
E então, no decurso de uma dessas noites, Sebastiano tivera que sair. Um doméstico do cardeal Cipriani, que sempre protegera a sua família, fora buscá-lo de urgência e Khatoun esperara em vão o seu regresso no leito de lençóis amarrotados, cuja almofada conservava ainda a forma da sua cabeça. Encontraram o cadáver no Tibre no dia seguinte e, nessa mesma noite, a pobre Khatoun, cuja tia nunca admitira a realidade do casamento, fora conduzida à força a casa de um traficante de escravos do Transtevere. O homem fechara-a o tempo necessário para que acalmassem, se os houvesse, os rumores causados pela morte do médico e a eventual curiosidade da polícia; muito eventual, aliás, porque aquele género de descoberta era demasiado frequente para que os homens do Soldan procurassem saber a verdade. Então, o mercador propôs aquela peça rara a lenda da princesa exilada era boa ao conde Girolamo Riario, que a ofereceu à sua jovem mulher, não sem a ter feito passar, primeiro, pelo seu leito.
Aquela última noite fora a última da lista de infelicidades de Khatoun. A jovem condessa Catarina era orgulhosa e um pouco arrogante, mas era boa e generosa. A sua nova escrava agradou-lhe ao ponto de fazer dela a sua nova favorita e até sua confidente. Junto dela, Khatoun reencontrou quase o papel que fora o seu em casa de Fiora durante tantos anos.
Mas não é como tu suspirou ela como conclusão do seu relato. Há uma violência nela que não ousa mostrar, porque está longe de ser feliz com o conde, que é bruto, um homem comum, cujo tio se tornou Papa e que, por isso mesmo, esmaga tudo à sua volta. A única coisa que ama é o ouro.
Mas a sua mulher é bela! Ele não a ama?
Ele tem orgulho nela porque é princesa, mas não se trata de amor. Imagina que ela tinha onze anos quando casou com ele e, por isso, ele exigiu que a noite de núpcias tivesse lugar nessa mesma noite. Creio que ela nunca lhe perdoará.
Mas ela está grávida, se bem me lembro?
Está. Vai dar à luz um dia destes. Apesar de odiar o marido, é obrigada a suportá-lo. Oh, tem grandes compensações: é a Rainha de Roma. Tudo o que conta na cidade está a seus pés. E depois, tem os livros, o saber. No palácio, há uma sala para onde ela gosta de se retirar para compor filtros, poções e unguentos para a beleza.
Ela faz alquimia?
Não sei se essa prática se chama assim, mas a condessa vem aqui muitas vezes. É ela que protege Anna, a judia é assim que a chamam porque aprende muitas coisas em casa dela. Além disso, Anna compõe-lhe leites, cremes e emplastros que embelezam ou ajudam a conservar a beleza. Dona Catarina escreve tudo num livro que guarda ciosamente.
Decididamente, é uma mulher surpreendente disse Fiora mas ela não se espanta com as tuas ausências? Há dois dias que vens aqui. Ela deu-te autorização?
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