Eu conheço-a há muito tempo cortou Fiora. Nós sabemos todos, em Florença, que o Papa quer que o vosso marido se torne senhor da cidade.
Sim, mas o problema tornou-se mais grave desde que nós possuímos Imola, o que quer dizer que somos vizinhos. Com os Médícis mortos, Girolamo, o meu marido, deixaria de se preocupar com eles e o seu poder estender-se-ia até ao mar. Quanto a Francesco Pazzi...
Quanto a esse, também estamos ao corrente. Exilado, ele perdeu uma parte da sua fortuna e, apesar de se ter tornado banqueiro do Papa, sempre sonhou em regressar a Florença.
Onde ainda mora a cabeça da família e alguns dos seus membros.
O velho Jacopo ainda é vivo?
Mais do que nunca, claro, e disposto a ajudar Francesco a regressar e a vingar-se. Quanto a Montesecco, o terceiro homem, era capaz de matar a própria mãe por um saco de ouro e prometeram-lhe muito mais.
Estou a ver. E o Papa, no meio disso tudo?
Esse é o ponto obscuro. Asseguraram-me que ele teria, expressamente, recomendado que não houvesse ”efusão de sangue”.
Não haver efusão de sangue? Parece-me difícil matar alguém sem que o sangue corra! Como é possível?
Minha querida, Sua Santidade não pode ordenar um assassínio. Nem deve, sequer, ter conhecimento dele...
Para poder berrar bem alto, uma vez dado o golpe e, até, deplorá-lo? E excomungar alguns comparsas, porque não vai ser o vosso marido, imagino, a fazer o trabalho?
É evidente que não. Ele nem sairá de Roma. Só Pazzi e Montesecco é que farão a viagem.
Em que ocasião? Não esperam, certamente, ser recebidos por Lourenço?
Então, Catarina explicou o que sabia acerca do plano. O Papa, que acabava de conferir o chapéu de cardeal ao seu mais jovem sobrinho, Rafaele Riario e o mandara regressar por essa ocasião da universidade de Pisa onde ele terminava os seus estudos, decidira nomeá-lo, ao mesmo tempo, núncio em Peruggia. Catarina achava aquela nomeação absurda, porque o novo cardeal só tinha dezoito anos e não tinha capacidade para chefiar uma legação difícil, mas o Papa, que sentia por ele uma ternura muito paternal, não queria saber. Uma vez entronizado, o jovem Rafaele iria, com grande pompa, visitar a sua querida universidade para lhe dar a sua primeira bênção. Em seguida, de regresso de Peruggia, passaria muito naturalmente por Florença, onde os Médicis não se atreveriam a recusar-lhe acolhimento, visto que as relações aparentes entre Lourenço e a Santa Sé eram proveitosas. O jovem cardeal ficaria alojado provavelmente em casa do velho Pazzi, mas os Médicis teriam de o receber várias vezes. A sua hospitalidade era demasiado grande e faustosa para que não acolhessem da melhor maneira um cardeal núncio. Então, chegaria a ocasião de abater os dois irmãos.
Em casa deles? No seu próprio palácio? indignou-se Fiora. É, não só monstruoso, mas insensato. Os assassinos serão massacrados no local.
Escolherão de preferência uma festa, ou uma cerimónia no exterior. Todos os Pazzi estarão juntos por essa ocasião e Montesecco levará os seus homens de mão. Até o bispo de Pisa, Salviati, terá decidido dar uma ajuda. Ele não gostou nada que Lourenço se tenha oposto à sua nomeação para arcebispo de Florença.
Desta vez, Fiora não respondeu. Aquele relato era espantoso, insensato. Toda aquela gente, inimigos, sem dúvida, mas também padres, iam atirar-se, como um bando de abutres, contra a sua cidade amada para assassinarem Giuliano, que ela amara em tempos e Lourenço, que lhe dera provas de tanta amizade. Ainda por cima, utilizariam, para levar a cabo os seus fins, o princípio sagrado da hospitalidade, tão caro a toda a Itália.
Não dizeis nada? perguntou Catarina.
Perdoai-me, Madonna, mas esses projectos enojam-me e compreendo que a filha mais nova do grande Francesco Sforza se recuse a ter obrigações para com um Estado com tais procedimentos.
Não foi a recordação do meu avô que me levou a isso, foi a da mulher que me educou: a duquesa Bona, mulher do meu pai e irmã da Rainha de França, que me levou para o lado dos Médicis. Foi também a do meu pai, assassinado há pouco mais de um ano. Além disso, repito-o, sempre amei Giuliano. Ajudais-me?
Estou pronta a partir para Florença imediatamente. Eu também amei Giuliano antes de conhecer o marido que tive a dor de perder. Se o puder impedir, não os deixarei morrer.
É melhor esperar dois ou três dias para nos prepararmos melhor. A visita de Rafaele a Florença deve efectuar-se por ocasião da Páscoa e a semana Santa aproxima-se.
O palácio Riario situava-se perto do Tibre e das duas igrejas de Santo Apolinário e de Santo Agostinho. Imponente casa quadrangular de construção recente, parecia capaz de aguentar um cerco, de tal modo era sólida e bem defendida. A noite impediu Fiora de apreciar a sua arquitectura, pois não havia luzes para a rua com excepção das habituais jaulas de fogo. Mas a grande abóbada, onde velava um corpo de guardas e que dava para o habitual pátio quadrado, deixou a jovem pouco à-vontade quando a liteira a transpôs e mais ainda quando as pesadas portas fizeram ouvir o seu ranger ao fecharem-se. Decididamente, Girolamo não deixava nada ao acaso. A sua casa parecia um cofre-forte. Não devia ser fácil sair dele sem o consentimento do proprietário.
O pátio estava silencioso, mal iluminado por quatro archotes: dois fixados à saída da abóbada e dois na base da íngreme escadaria de pedra que ia dar aos andares superiores. Quando a liteira e a sua escolta pararam junto desta, o silêncio era completo, como se o palácio estivesse desabitado:
Puxai o véu para o rosto, Dona Fiora! aconselhou Catarina. E tu, Khatoun, ajuda-me a descer! Não me sinto muito bem...
Não disse que era uma tolice? resmungou a pequena tártara que, ajudada por Fiora, extirpava a sua patroa das almofadas.
Mais do que uma tolice, foi uma grande imprudência. Ainda por cima porque eu poderia tomar isso como uma grande traição! rugiu uma voz de homem que arrancou um grito a Catarina.
Vós? Mas, que fazeis aqui? Pensava-vos em Segni?
Sem lhe responder, Girolamo Riario virou-se para Fiora e arrancou-lhe o véu que lhe cobria a cabeça. O seu rosto largo, de traços pesados, que a sumptuosidade de um gibão bordado a ouro não conseguia dar distinção, iluminou-se com um sorriso satisfeito:
Até que enfim vos encontro, minha bela! Que sorte que um homem de Santa Croce vos tenha reconhecido, na outra noite, e vos tenha seguido da margem enquanto descíeis o Tibre de barca. Na manhã seguinte soube logo onde estáveis...
Por que razão não fui presa, então, como Stefano Infessura?
Não foi por isso que se apoderaram dele, antes para lhe ensinar a ter moderação naquilo que escreve. Vai ser...
Não teve tempo de dizer mais nada. Furiosa, Catarina acabava de se colocar entre ele e Fiora, os braços estendidos num gesto de protecção, um gesto ao qual não faltava grandeza.
Ousastes estender-me uma armadilha, vós? A mim?
Não vos punhais com os vossos ares de princesa! Comigo não, que sou vosso marido, se bem que não corresponda ao vosso ideal masculino. Onde fostes buscar a ideia de que vos estendi uma armadilha, ou que procurei apenas ser-vos desagradável? Se fosse o caso, teria mandado prender essa mulher em casa da judia e teria mandado esta para a prisão para reflectir.
Sob que acusação? Anna tratou uma mulher ferida que lhe foi levada, mais nada. Além disso, não ignorais que o Santo Padre não quer que molestem os Judeus e, menos ainda, a casa do rabino Nathan.
E eu esperei que a nossa fugitiva saísse. Eu sabia que vos encarregaríeis disso a partir do momento em que me acreditásseis ausente. As visitas da vossa seguidora ao gueto fizeram-me ter a certeza. Como vedes, tinha razão, porque, sem qualquer dificuldade, sem barulho e sem violência, o belo fruto veio-me parar às mãos.
Não sejais estúpido, Girolamo! Que vos interessa esta jovem? Que tendes vós a ver com a política do vosso tio com o Rei de França e com o facto de um monge piolhoso e um cardeal francês estarem presos?
Absolutamente nada, tendes razão. Pelo contrário, pode servir, sem querer, a minha política, a que entendo ter com os Médicis. Enfim... ela vale cem ducados, o que não é de desprezar!
Vós tendes à vossa disposição o tesouro da Igreja e desonrais-me por cem ducados? Sois um monstro, um ser infame, desprezível, e eu...
Catarina permaneceu ali de boca aberta e depois, com um grito dilacerante, curvou-se, levou as mãos ao ventre e começou a ofegar como se acabasse de fazer uma longa corrida. Khatoun precipitou-se para a amparar, com os olhos arregalados de inquietação, mas Fiora ainda tinha na memória a recordação do seu parto para não reconhecer os sintomas. A jovem encarou friamente Riario:
Devíeis mandar que conduzissem a condessa ao seu quarto! A criança que ela espera não tarda...
Achais... achais que sim?
Fiora ofereceu a si própria o luxo de um sorriso. Aquele senhor todo bem-vestido acabava de mostrar, sob a sua carapaça, o simples mortal que era, ao mesmo tempo assustado e inquieto no momento da chegada do seu primeiro filho. Pela primeira vez na sua vida foi, talvez, natural... e até humano.
Tenho a certeza! disse ela suavemente. Ainda há sete meses passei pelo mesmo.
Mas ele não a escutava. Aos seus apelos furiosos, um grupo de mulheres surgiu, apoderou-se da condessa e, com toda a espécie de precauções, levou-a pela escadaria acima. Khatoun não as seguiu. Catarina já não precisava dela e a tártara decidiu ficar junto de Fiora. Esta sorriu-lhe e beijou-a:
Vai também, Khatoun. Tu estás ao serviço dela...
Não... Eu continuo a pertencer-te. Quero ficar ao pé de ti.
Para fazer o quê? Eu não sei o que vai ser de mim...
Eu digo-vos disse Riario que regressava, deixando as criadas encarregarem-se de Catarina, que ouviam gritar cada vez mais debilmente à medida que subiam a escadaria. Ides tomar conhecimento com o castelo de Saint-Ange. Se vos tivessem metido lá aquando da vossa chegada, como eu queria, teríamos evitado muita confusão...
E eu teria evitado ao Papa uma soma de cem ducados. Devíeis agradecer-me.
Surpreendido, Girolamo Riario olhou para ela com um olhar estúpido, em seguida, subitamente, desatou a rir com grandes gargalhadas e postou-se diante da jovem com os punhos nas ancas.
Mas, ela tem razão, a marota! Sabes, minha bela acrescentou ele estendendo para a face de Fiora um grande dedo que ela evitou como se fosse uma vespa tu interessas-me cada vez mais e quando o meu tio tiver acabado contigo, talvez,possamos...
Absolutamente não! cortou Fiora. Vós não me interessais. Acabemos com isto e já que decidistes meter-me na prisão, vamos embora e não se fala mais nisso!
Não, minha senhora, suplico-te! exclamou Khatoun, que desatou a soluçar enquanto se agarrava ao braço de Fiora. Não o provoques. Não te podem meter na prisão.
Chega berrou Riario. Vai ter com a condessa, se não queres que te levem lá a golpes de chicote! E não esqueças que é a mim que pertences. Paguei por ti muito dinheiro. Levem-na!
Dois criados agarraram na pequena escrava que chorava e se debatia, suplicando que a deixassem seguir o mesmo destino da sua antiga senhora.
Não lhe façais mal disse Fiora, comovida. Ela é tão nova e tão frágil. Acabará por me esquecer.
Não te atormentes por causa dela; a minha mulher gosta mais dela do que dos cães, ou da ama negra. Mas, no fundo, a rapariga tem razão. Por que te hei-de meter na prisão? Aqui não faltam quartos. Ficarias melhor num deles enquanto esperas que te conduza perante o Santo Padre.
À medida que se ia familiarizando, o seu tom natural ia vindo ao de cima e reaparecia o funcionário rabo-de-saia alfandegário dos cais de Savone. O verniz estalava tanto mais depressa quanto mais longe Riario ia ficando dos ouvidos da sua mulher. Rígida de desprezo, Fiora dardejou-o com um olhar gelado:
Qualquer prisão é preferível à hospitalidade de um homem como vós. Por conseguinte, agradeço-vos que mantenhais a devida distância de mim. Eu não sou uma das vossas cortesãs, mas sim a condessa de Selongey, viúva de um cavaleiro do Tosão de Ouro!
Belo nome! Aproveita-o enquanto é tempo! Algo me diz que não vais poder usá-lo por muito mais tempo... Mas já que a senhora Condessa prefere a prisão acrescentou ele com uma saudação grotesca vou ter a felicidade de a conduzir eu próprio à cela!
CAPÍTULO X
CARLO
Foi precisa muita coragem da parte de Fiora para não desanimar com a fúria e o desencorajamento que se apoderaram dela quando, enquadrada por guardas, seguiu Riario ao longo da interminável rampa em espiral que subia pelo interior do castelo de Saint-Ange e ia dar aos terraços, aos aposentos do governador e também às prisões. Desde a sua chegada a Roma que não fazia outra coisa senão deslocar-se em redor da fortaleza papal e se, finalmente, estava nela confinada era porque lhe estivera, sempre, destinada. Tantos esforços para chegar ali! Dava, quase, vontade de rir, se o episódio que se desenrolara em casa de Anna, a judia, não tivesse inspirado à jovem reflexões estranhas. Por que razão insistira a condessa Catarina em levá-la para sua casa quando se dispunha a abandonar Roma? Por que razão, sobretudo, a escutara e seguira? A mulher de Riario podia muito bem tê-la posto ao corrente do perigo que ameaçava os Médicis levando-lhe os meios para os prevenir sem necessidade de a levar para sua casa? Teria agido preocupada com a sua saúde, ou levada, por uma mão muito mais segura, para uma armadilha sabiamente estendida? Uma armadilha na qual era impossível meter Khatoun. A pequena tártara não tinha, certamente, nada que se lhe reprovasse, senão, talvez, ter confiado à sua nova patroa o nome da amiga que ia visitar!
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