O cortejo desembocou, por fim, num terraço encimado por um caminho de ronda ameado onde velavam alguns canhões. Uma casa da guarda, iluminada do interior, difundia uma luz amarela que não diminuía em nada o lado sinistro do local. Uma luz débil, sem dúvida uma vela, aparecia nas janelas dos aposentos do governador, em frente do qual dois soldados, apoiados nas suas lanças, estavam meio adormecidos, ameaçando a cada instante cair sobre o monte de balas de pedra que esperavam um ataque hipotético. Sobre tudo aquilo reinavam, bem erguidos contra o céu e quase aos pés do Arcanjo, os aposentos reservados ao Papa no caso de esses acontecimentos desagradáveis o forçarem a procurar um refúgio. Na muralha havia um balcão embutido, que lhe dava uma aparência mais agradável

O aparecimento do conde Riario acordou a casa da guarda e as sentinelas. Sabendo que o governador, bastante doente, estava acamado, ele pediu para chamarem o vice-governador, um albanês chamado Jorge, que foram buscar a correr.

Este apareceu após alguns instantes e Fiora pensou que raramente vira uma figura mais patibular. Não tanto pelo rosto bexigoso, pelos cabelos gordurosos, pelo nariz achatado por cima de bigode à mongol e pela boca demasiado húmida, mas pelas fendas delgadas por trás das quais se filtrava o inquietante brilho do olhar. Aquele homem era cruel e falso. Quanto à saudação que concedeu ao sobrinho do Papa, era uma obra de arte de subserviência.

Estavas na prisão notou este. A esta hora da noite?

Sim. Prenderam, há pouco, mais um francês, um peregrino, por assim dizer. Estava numa taberna do Campo del Fiori. O patrão preveniu o Soldan, que o prendeu não sem alguma dificuldade, aliás: foram precisos doze homens para o conseguirem, porque ele deu cabo de três.

Curioso peregrino! Por que razão chamaram o Soldan?

O homem estava a fazer perguntas. Procurava uma mulher do seu país que tinha vindo rezar junto do túmulo do Apóstolo, parece, e que desapareceu há vários meses. Uma mulher... muito bela.

Riario agarrou em Fiora pelo braço para a aproximar da luz do archote:

Como esta, talvez?

O outro afastou os lábios para mostrar uma coisa parecida com um sorriso.

Juraria que sim! Encontraste-a, por fim, senhor?

Não sem dificuldade. E trago-ta para que ma guardes enquanto esperamos que o Santo Padre peça para a ver. Quanto ao teu francês, se bem compreendi, já estavas a fazer-lhe algumas perguntas?

Exactamente, senhor! Queres ir ver?

Vamos lá os dois! Não é verdade, Senhora Condessa? Pode ser interessante.

O movimento de recuo de Fiora foi facilmente neutralizado. Riario segurava-a e segurava-a bem. Quer quisesse, quer não, teve de seguir o albanês por uma estreita escada que mergulhava nas profundezas da enorme torre. O seu coração estava cheio de uma angústia que tinha dificuldade em reprimir ao pensar que, dentro de instantes, iriam metê-la, segundo parecia, numa câmara de tortura para assistir ao suplício de um francês, e de um francês que, sem dúvida, a procurava. Mesmo que não o conhecesse, ia ao encontro de uma terrível provação.

Jorge parou diante de uma porta de carvalho enegrecido que não tinha qualquer ferrolho e que, até, estava entreaberta, deixando sair uma luz avermelhada. Lá dentro ouvia-se ofegar alguém que devia lutar contra o sofrimento.

O espectáculo que descobriu era ainda pior do que esperava: um homem estava estendido em cima do cavalete, os punhos e os tornozelos presos em pulseiras de ferro ligadas a um cabrestante destinado a puxá-las até à deslocação. A máquina hedionda estava parada devido à ausência do vice-governador e o carrasco, um negro gigantesco e nu até à cintura, esperava placidamente novas ordens de braços cruzados ao lado da vítima. Fiora não teve qualquer dificuldade em reconhecer aquele rosto de olhos fechados e empalidecido pela dor: era o de Douglas Mortimer, o sargento da Guarda Escocesa do Rei de França e um dos seus melhores amigos.

A jovem não pôde reprimir um estremecimento que não escapou a Riario, assim como a súbita palidez das suas faces.

Algo me diz que vos conheceis, os dois? perguntou ele com um sorriso pleno de fel.

Já Flora se recompunha. Rezando mentalmente a Deus para que Mortimer não estivesse inconsciente e pudesse ouvi-la, declarou, mais alto, talvez, do que o necessário e com uma indignação que não precisava de forçar:

É evidente que conheço! É o intendente do meu solar de La Rabaudière. Está muito ligado a mim e não me espanta nada que se tenha posto à minha procura. Há meses que fui raptada.

Vosso intendente? Um simples camponês? Como se compreende, então, que ele tenha vindo a Roma? Quem lhe terá dito que vós estáveis aqui?

Quem havia de ser? Eu pensava que, desde a minha chegada, o cardeal d’Estouteville tinha enviado um mensageiro a Plessis-lès-Tours para dar a conhecer ao Rei Luís as exigências do Papa? O meu solar é vizinho do castelo real e os meus empregados devem ter sabido do meu destino. A propósito, o Rei não enviou um mensageiro, uma delegação, uma carta, qualquer coisa, como resposta à mensagem do cardeal?

Não enviou nada! disse Riario, encolhendo os ombros. Não deveis ter tanta importância como o meu tio imaginava.

Isso é uma grande mentira! disse uma voz que parecia vir das profundezas da terra e que era a de Mortimer em pessoa. A despeito da sua situação trágica, os seus olhos azuis, muito abertos, brilhavam com um fogo alegre que reconfortou o coração de Fiora. Graças a Deus, o escocês ouvira, reconhecera-a e, entre os dois, talvez conseguissem enganar o funcionário alfandegário disfarçado de príncipe que os observava.

Ah, tu, afinal, falas? grunhiu ele. Talvez consintas em nos dizer o teu nome?

Chama-se Gaucher disse Fiora Gaucher Lê Puellier. O tio e a tia dele, Étienne e Péronnele, são os guardiões da minha propriedade. Apanhastes uma grande presa, ha? Um simples camponês, que neste mundo só responde perante Deus e o seu senhor!

Mas que se atreve, mesmo assim, a acusar-me de mentiroso? Que pode ele saber das relações entre o Rei e o Sumo-Pontífice?

O que toda gente sabe em Plessis, onde todos têm pena de Dona Fiora continuou o falso Gaucher. Que o Rei Luís já enviou para aqui, e por duas vezes, gente dele... que nunca mais regressou!

Os caminhos não são seguros nos tempos que correm suspirou Riario hipocritamente. Acontece que não recebemos ninguém... e que tu tens sorte, amigo, por teres chegado inteiro.

O conde aproximou-se do corpo estendido, sobre o qual se debaiçou:

Tens a certeza de que não foste enviado pelo rei? Apetece-me atormentar-te um pouco mais, apenas para saber se não tens ainda alguma coisa para me dizer!

Já sou suficientemente grande para me enviar a mim mesmo! grunhiu Mortimer, forçando o seu tom de camponês. Lá em casa nós gostamos da nossa patroa e eu quis ver o que vocês tinham feito dela! Mas... nunca pensei que havia de a encontrar numa cave destas!... prisioneira, a bem dizer!

A bem dizer, não. Eu sou mesmo prisioneira, meu bom Gaucher. O Papa pôs a minha cabeça a prémio e não vou sair daqui viva! Fui apanhada esta noite, mas há meses que andam à minha procura!

Chega! rangeu Riario. Eu não vos dei autorização de falardes... sobretudo para dizerdes tolices! O Santo Padre é demasiado bom, meu rapaz, para mandar executar esta bela dama. O que ele quer, como ela é viúva, é dar-lhe um marido, um marido florentino, jovem, nobre...

E odioso! cortou Fiora, indignada. Nunca casarei com ele, estais a ouvir-me? Podeis arrastar-me até diante de um padre, mas ninguém me obrigará a dizer ”sim”. E agora, libertai esse rapaz, contra o qual não tendes nada!

Não tenho nada? Nada!... Pelo contrário, penso, talvez, que ainda nos virá a ser útil! Zamba acrescentou ele para o gigante negro põe mais algumas garras de ferro a aquecer!

Não ides continuar a atormentá-lo? exclamou Fiora. Que há-de ele dizer-vos mais?

Nada, sem dúvida, mas vós, vós podeis dizer muitas coisas! Basta uma pequena palavra: esse ”sim” que vos recusais a dizer com tanta teimosia!

Depois, mudando de tom:

Ou jurais que casareis, ou, à fé de Riario, esfolo este homem vivo diante dos vossos olhos!

Sois louco? exclamou Fiora, estupefacta.

Não creio, mas eu sei o que quero, o que o Santo Padre quer e saberemos forçar-vos porque, uma vez casada com Cario Pazzi, não nos preocuparemos mais convosco.

Não ides aceitar isso? gemeu Mortimer. Não têm o direito de vos forçar...

Temos. Temos o direito do mais forte! Decidi, Dona Fiora, mas depressa! Vede como estes ferros estão de um belo vermelho! Zamba está impaciente por começar. O que ele gosta mais é de arrancar a pele a um homem! Vamos, Zamba, ajuda um pouco a senhora condessa!

Com uma luva de couro, o carrasco pegou num dos ferros que estavam metidos nas chamas de uma braseira. Fiora gritou como se o ferro incandescente tivesse entrado na sua própria pele.

Não!...

Em seguida, mais baixo:

Se eu jurar, libertais-lo?

Imediatamente.

Que garantias tenho? Quem me diz que uma vez na posse da minha palavra não mandais degolar o meu pobre Gaucher?

Mas... a minha palavra!

Perdoai-me, mas a vossa palavra não me inspira grande confiança. Proponho o seguinte: ele assistirá ao casamento e com ele o cardeal d’Estouteville. Depois, será entregue ao cardeal, que o enviará ele mesmo... e em segurança, para França. Senão, juro por Deus, que me está a ouvir, que responderei ”não” enquanto me restarem forças e podereis matar-nos aos dois! E tomai cuidado para não ofenderdes o Rei Luís durante muito mais tempo!

O quê, declara-nos guerra?

Não, mas será preciso, então, desconfiar de todos aqueles que se aproximarem de vós. Ele sabe melhor do que vós servir-se do ouro e é tão rico quanto poderoso. Pode comprar qualquer consciência, qualquer amigo e pagar a dez, cem, mil assassinos. Ele abateu o duque de Borgonha, que era um príncipe a sério. Portanto, honrai a vossa palavra, ou tende cuidado!

Com os olhos arregalados pelo estupor, Riario olhava para aquela mulher que lhe fazia frente, ameaçadora, terrível, vingativa. Ele adivinhou obscuramente que ela era da raça das feras reais e que entre elas e ele próprio, príncipe de pacotilha, haveria sempre um abismo intransponível. Supersticioso, pensou ver brilhar nos olhos dela a chama sombria das profetisas antigas e sentiu um arrepio ao longo da espinha.

Liberta-o! ordenou ele ao albanês que, mudo e aparentemente tão insensível quanto uma estátua, assistira à cena.

Em seguida, virando-se para a jovem:

Aceitais casar?

Nas condições que acabo de impor, sim!

Muito bem. Vamos mandar este homem para a prisão, onde ficará até ao casamento. O que acontecerá em breve. E agora, vinde.

Não ides fazer isso? exclamou Mortimer cujo carrasco lhe friccionava os punhos e os tornozelos com a solicitude de um bom criado de quarto.

Não tenho escolha disse Fiora suavemente. Deixar que vos matassem seria uma coisa estúpida, porque o meu filho terá necessidade de... todos aqueles que me pertencem. Além disso, voltaremos a ver-nos... talvez mais tarde!

A capitulação valeu a Fiora terminar a noite num dos quartos destinados ao séquito do Papa e não numa das masmorras que povoavam as entranhas da fortaleza. As instalações eram espartanas, mas, pelo menos, tinha à sua disposição uma cama verdadeira, utensílios de toilette, água e sabão. Terrivelmente cansada, contentou-se em estender-se por cima da colcha sem mesmo se dar ao trabalho de se despir.

Mas não dormiu muito, já que os últimos acontecimentos da noite lhe tinham tirado o sono de que o seu corpo tanto necessitava. O seu ombro ferido doía-lhe, mas não tinha nada para mudar o penso, já que a ligeira bagagem que Anna lhe dera ficara na liteira de Catarina. Só lhe restava a bolsa de Dona Juana, sempre pendurada do seu cinto. Vasculhando no seu interior para tirar o lenço, os seus dedos voltaram a encontrar o pequeno frasco vestido de chumbo que a judia lá tinha metido. A jovem tirou-o e olhou para ele por um momento. Anna dera-lho para que ele fosse o instrumento da sua vingança contra Hieronyma, para que esta fosse eliminada para sempre. Agora, Fiora pensava que talvez ele pudesse servir para a sua libertação, o último socorro à beira do abismo para onde iria cair e onde se perderia para sempre. Para salvar Mortimer, entregara-se aos seus piores inimigos, mas, por outro lado, o escocês correra grandes riscos para a salvar. Não seria indigno da sua parte deixar-se morrer diante dos seus olhos e daquela maneira abominável? Além disso, sabia agora que, em França, não a tinham esquecido. O Rei dera-se ao cuidado de enviar duas delegações, além de Mortimer. Era encorajante, mas toda a força de que ele dispunha estava demasiado longe e os seus mensageiros deviam ter tido um destino trágico. Luís XI receberia, um dia qualquer, uma missiva hipócrita, anunciando-lhe um ou vários acidentes estúpidos. Um dia qualquer, uma vez ela casada com Cario Pazzi.