Uma única coisa a impediu de desarrolhar o frasco e beber o seu conteúdo de uma só vez: não era um veneno rápido. Anna especificara que a sua ”inimiga morreria no prazo de uma semana sem que ninguém conseguisse saber de que doença”. Com um suspiro, Fiora voltou a colocar o objecto no seu lugar. Haveria de encontrar, mais tarde ou mais cedo, uma faca qualquer ao alcance da mão, ou, melhor ainda, uma muralha alta de onde se precipitar, um rio onde se afogar... Porque, decididamente, não fora feita para ser feliz e já que a maldição que presidira ao seu nascimento continuava a fazer das suas, seria bem melhor para toda a gente e sobretudo para o seu filho, que essa fatalidade desaparecesse com ela.

Coisa extraordinária, uma vez tomada aquela fúnebre decisão, sentiu-se melhor, quase livre. Os batimentos desordenados do seu coração apaziguaram-se, o carrocel infernal que lhe girava no cérebro deteve-se e ela, finalmente, adormeceu.

O som dos sinos, tocando todos ao mesmo tempo, acordou-a. A jovem viu que o Sol já ia alto e compreendeu que estava alguém junto dela quando o seu olhar caiu sobre uns dedos negros que seguravam umas contas de âmbar. O homem olhou para o rosto que, subitamente, se iluminou com um grande sorriso:

Dormiste bem? Domingo sente-se feliz por te ver de novo. Estava preocupado contigo.

Porquê? Por ter conseguido escapar ao teu patrão?

Não, mas até um servidor fiel pode sentir amizade pelo ser que é confiado à sua guarda.

Como é que estás aqui?

Ordens, claro. Domingo tem de te preparar para a audiência que o Santo Padre te vai conceder ao fim do dia.

Não me lembro de ter pedido uma audiência. Mas, diz-me: que quer dizer este carrilhão? Até estou surda...

Não és a única, mas, esta manhã, a nobre condessa Riario deu à luz uma filha a quem vai ser dado o nome de Bianca. O Santo Padre está feliz e, por conseguinte, Roma está em festa. Não percebo porquê acrescentou o núbio abanando gravemente a cabeça envolta num turbante. Uma rapariga! Tanto barulho por uma rapariga! Mas, regressemos à tua pessoa! Não estás com boa cara, sabes?

Não me admira! Fui ferida e ainda estou fraca. Além disso, não tenho nada para tratar o ferimento.

Deixa, que Domingo trata disso! Para já, tiremos esses farrapos negros que te dão um ar de insecto maligno!

Ela deixou-se despir sem protestar. Tinham conhecido ambos, na carraca, uma longa intimidade e Fiora habituara-se a não ver um homem naquele bom servidor que, aliás, já não era. O delgado ferimento inflamara um pouco. Domingo limpou-o com aguardente cuja queimadura marejou de lágrimas os olhos da jovem e depois colocou-lhe um penso limpo. Feito aquilo, deixou-a fazer a sua toillete, anunciando que ia buscar-lhe comida. Antes de sair, estendera sobre uma arca roupa branca bordada, meias de seda, um vestido de veludo verde com um bordado de seda branco como a saia de baixo e umas chinelas a condizer. Uma grande capa do mesmo veludo e uma grande coifa dourada destinada a prender a cabeleira completavam aquela toillete que nenhuma mulher teria vestido com prazer, e Fiora só lhe concedeu um olhar distraído. Teria preferido o fato de camponês, que a teria protegido ao longo do caminho de Florença!

No entanto, sentiu-se menos abatida quando, lavada, vestida e penteada, se instalou diante da refeição copiosa que Domingo lhe trouxera. Fora sempre assim nos períodos difíceis da sua vida: tinha mais apetite do que em tempos normais. Assim, sabendo a dimensão do adversário que iria defrontar naquela noite, fez as honras ao que lhe era servido.

Contrariamente ao que supunha, não foi para a sala onde fora recebida a primeira vez que o mestre-de-cerimónias Patrizi dirigiu Fiora, antes para a biblioteca. Sisto IV sentara-se lá numa espécie de cadeira de marfim e, com umas lunetas encavalitadas no nariz, lia um grosso livro escrito em grego, pousado junto dele numa grande estante e seguia as linhas com a ajuda de um pequeno ponteiro de ouro. O Papa interrompeu a leitura quando Patrizi introduziu Fiora e a levou ao longo da grande sala até uma almofada disposta aos pés do Papa e na qual a fez ajoelhar como o exigia o protocolo. Mas, de repente, Sisto IV começou a ler em voz alta:

”Tentar lutar contra os males enviados pelos deuses é dar provas de coragem, mas também de loucura; nunca ninguém poderá impedir o que deve, fatalmente, acontecer...”

Em seguida, virando a cabeça para a jovem, perguntou, tão naturalmente como se tivessem estado a conversar na véspera ou algumas horas antes:

Que pensais deste texto, Dona Fiora? É de uma grande beleza, não é verdade?

Se Vossa Santidade o diz, deve ser. Pela minha parte, não gosto muito de Eurípedes e menos ainda do seu Hércules furioso. Prefiro antes Esquilo: ”Ah! triste sorte a dos homens: a sua felicidade parece-se com um esboço; vem a desgraça, três golpes com uma esponja húmida e lá vai o desenho...” Há anos que o desenho da minha vida está meio apagado e eu não pude fazer outro.

A surpresa do Papa não era fingida. Tirando as lunetas, olhou para a jovem com uma espécie de admiração:

Lestes, portanto, os grandes autores helénicos?

E latinos, também, Vossa Santidade. Fazem parte da educação normal das florentinas de alto nascimento. Além disso, o meu pai era um letrado, ao mesmo tempo que um bibliófilo esclarecido. A sua colecção de livros era... quase tão importante como a do palácio dos Médícis.

A sério? E... que lhe aconteceu?

Que acontece às riquezas de um palácio quando ele é entregue à pilhagem e depois ao incêndio?

É uma grande pena, na verdade! Sim... uma grande pena! E nunca soubestes...

Era mais do que Fiora podia suportar com tranquilidade. Não só não fora ali para falar de literatura, como o tom de ingénua desolação do Papa lhe parecia o cúmulo da hipocrisia. A jovem levantou-se como se impelida por uma mola:

Para onde foram? É a Hieronyma Pazzi... perdão, à dama Boscoli que deveis perguntar, a essa que, para pôr as mãos na nossa fortuna, não teve pejo de mandar assassinar o meu pai e que continua a perseguir-me com o seu ódio.

Abstende-vos, minha filha, de julgamentos temerários! enunciou o Papa com severidade. É muito fácil fazer acusações!

Julgamentos temerários? Perguntai seja a quem for, que todos vos dirão o mesmo! E, no entanto, é a essa miserável que me quereis entregar de mãos e pés atados! Depois de ter querido forçar-me a casar com o monstro do filho, quer agora forçar-me a casar com o sobrinho... um outro monstro, se bem compreendi! Eu, que só presto vassalagem ao Rei de França!

Aceitastes esse casamento, ou mentiram-me?

Aceitei, sim, esta noite e sob coacção, para não ver morrer um grande e corajoso amigo meu que, com pena de mim, me veio procurar! E vós dais a mão a infâmias destas! Vós, o sucessor do Apóstolo, o representante de Cristo!

A jovem esperava cólera por cólera, mas Sisto não seguiu esse caminho. O Papa olhou para ela por um instante por cima das lunetas que tinha recolocado no nariz:

Aproximai esse tamborete e sentai-vos! Se vos mandei vir aqui foi para que possamos falar sem testemunhas. Vamos, fazei o que vos digo! Sentai-vos!

Ela obedeceu e viu-se muito perto do Papa, abrigada, como ele, sob as abas da grande estante.

Talvez a minha atitude vos surpreenda prosseguiu ele mas, hoje, sinto-me excepcionalmente feliz porque o Senhor abençoou a união do meu querido sobrinho. Talvez seja isso que faz com que me incline para... uma certa indulgência, porque há muito tempo que excitais a minha cólera. Tivemos muita dificuldade em encontrar-vos de novo... mas esse tempo decorrido permitiu-me reflectir.

Renunciastes a cortar-me a cabeça?

Que disparate! Estaríeis onde estais se fosse o caso? Mas devo dizer-vos o seguinte: o vosso casamento com Cario é importante para a minha política. É bom que Fiora Beltrami passe a ser Fiora Pazzi. É por isso que quero que a coisa se faça, não para dar prazer a Dona Hieronyma... que poderá, aliás, sofrer uma decepção, porque as coisas não se irão passar conforme o seu desejo.

Conforme o seu desejo? Posso dizer adiantadamente a Vossa Santidade o que me vai acontecer a partir do momento em que entrar na sua casa: acontecer-me-á uma desgraça.

Eu sei e foi por isso que falei de decepção, porque ela vai saber que não aceitarei nem doenças, nem acidentes, nem seja o que for, ou será entregue imediatamente ao carrasco.

Talvez, mas eu recuso-me a partilhar o mesmo tecto com ela! Nunca pensei odiar um ser humano como a odeio a ela. Jurei que a mataria!

Não partilhareis o tecto dessa dama senão por uma noite: a das vossas núpcias. No dia seguinte ela partirá para uma... viagem na companhia do seu cunhado e quando regressar já estareis a viver num pequeno palácio perto de Santa Maria in Pórtico, que eu vou dar a Cario como presente de casamento. E posso prometer-vos acrescentou ele com um sorriso fino que a vossa cabeça permanecerá no seu lugar se, por acaso, acontecer alguma... coisa deplorável à dama Boscoli! Nós... nós não temos muita simpatia por ela. É uma mulher barulhenta e vulgar.

Eu sou sensível, Santo Padre, a essa certeza que me quereis dar, mas não é menos verdade que devo casar-me com um monstro. Se ele for parecido com o defunto filho de Hieronyma, os meus dias estão tão contados como os dela.

Um monstro? Não exageremos. Cario é feio e é um pobre de espírito, mas não tem qualquer maldade. Podereis fazer dele o que quiserdes. Estou certo de que acabareis por apreciar a vida que ides ter em Roma. Tornar-vos-eis uma das primeiras damas...

Não vejo bem a que título?

O mais simples e menos contestável: porque eu quero assim. Quando vos tornardes minha vizinha, saber-se-á rapidamente que vos protejo... e confesso que me sentirei feliz, então, por podermos entreter-nos com os grandes autores e os belos textos antigos de que tanto gostamos.

Aquela declaração amável deixou Fiora sem voz. Era uma coisa estranha, na verdade. As grandes personagens deste mundo, que o Destino punha no seu caminho, amigos ou inimigos, pareciam não ter outro objectivo na vida senão instalá-la na sua vizinhança. Luís XI dera-lhe a Casa das Pervincas, o Temerário propusera oferecer-lhe, numa noite de euforia, uma posição nos seus domínios e fazê-la entrar na sua corte acabada a guerra e eis que agora o Papa queria alojá-la na colina vaticana, no palácio de Santa Maria in Portico.

Então? continuou Sisto não dizeis nada? Que pensais dos meus projectos?

Que são muito generosos, Santo Padre... e que terão de me servir. No entanto, recordo-vos que tenho um filho em França e que tenciono educá-lo eu mesma e viver com ele.

. E qual é a dificuldade? Mandai-o vir com a vossa gente e ele gozará, também, da Nossa particular protecção. Aliás, concluído o casamento, enviarei uma embaixada ao Rei de França para o tranquilizar, enfim, acerca do vosso futuro e dar-lhe parte da feliz conclusão dos nossos negócios.

Feliz? O Rei teria libertado frei Inácio e aquele cardeal cujo nome esqueci?

O pontífice desatou a rir com a alegria de um rapazinho que acaba de levar a cabo uma grande partida:

Eu hei-de conseguir recuperar, mais tarde ou mais cedo, o cardeal Balue. Meditar um pouco mais nas vicissitudes deste mundo só lhe será salutar. Quanto ao monge castelhano, disseram-me que morreu e que só podemos rezar pelo repouso da

1 Que será, mais tarde, o palácio de Lucrecia Bórgia.

2 Será libertado em 1481 e irá morrer a Roma.


sua alma. Os dois não passaram, de facto, de um... pretexto para vos fazer vir aqui. Mas, peço-vos, punhamos de lado esta política fastidiosa e...

Gostaria, no entanto, de fazer uma pergunta a Vossa Santidade, se Ela me permite?

Fazei!

Essa espantosa mudança de atitude, essa amabilidade que me é hoje oferecida, quando esperava a fúria da cólera... papal, a que a devo? Unicamente ao nascimento da pequena Bianca?

Não. É evidente que não. Devei-la a duas circunstâncias: a primeira é, naturalmente, o vosso arrependimento e é a principal, mas, por outro lado, Dona Catarina, a nossa sobrinha bem-amada, não cessou de defender a vossa causa e Nós não gostamos de lhe causar dor. Tereis nela a melhor das amigas e ela contribuirá muito para que venhais a amar Roma.

Após as suas palavras consoladoras, o Papa ofereceu aos lábios de Fiora o anel da sua mão e chamou Patrizi para que a reconduzissem ao castelo de Saint-Ange, onde não deveria ficar muito tempo. O dia seguinte, que era Domingo de Ramos, era impróprio, como todos os domingos, para uma cerimónia nupcial. O casamento teria lugar, portanto, na segunda-feira, ao fim da tarde, na capela privada do Papa, que o celebraria ele mesmo.