Aquelas cinquenta horas, Fiora passou-as na companhia de Domingo, encarregado, mais uma vez, da sua guarda. Perante a boa-disposição do pontífice, ela esperara que lhe mandassem Khatoun, mas o nascimento do bebé devia exigir os cuidados de todos no palácio de Santo Apolinário e a jovem condessa não queria, certamente, separar-se dela. No entanto, aqueles últimos momentos de cativeiro escoaram-se com grande rapidez e não apenas porque Domingo se prontificou a distraí-la jogando xadrez com ela e passeando-a pelos terraços do castelo, de onde ela pôde contemplar, à-vontade, a totalidade do panorama de Roma, mas também porque aquelas horas que se escoavam, inexoráveis, eram as últimas antes de uma mudança de existência que a aterrorizava a despeito das garantias dadas pelo Papa. Quer quisesse, quer não, ia passar a ser uma Pazzi e só a ideia de usar esse nome provocava-lhe repulsa. Pensava também em Mortimer, cativo naquele mesmo castelo de Saint-Ange e que, apesar dos seus pedidos, não lhe tinham permitido visitar. Poderia ele regressar livremente a França? Riario prometera, mas que confiança poderia ter na palavra daquele homem? Enfim, uma outra angústia afastou o sono das suas duas últimas noites: a ameaça que pesava sobre os Médicis, Fiora sabia bem o que significava a ”viagem”, no dia seguinte ao do seu casamento, de Francesco e Hieronyma. Iam preparar o seu triunfo, assistir ao último acto do drama que faria da sua família a mais rica e mais poderosa de Florença, sob a autoridade de Riario, sem dúvida, mas que concentraria nas suas garras uma parte dos bens das vítimas e a totalidade dos dos Beltrami, sem que a intransigente lei florentina se lhes pudesse opor. A ideia de que Lourenço e Giuliano iam morrer sem que ela pudesse fazer nada para o impedir era-lhe insuportável.
Assim, era a mais pálida e mais sombria das noivas quando, na segunda-feira à noite, após o pôr do Sol, Domingo lhe preparou um banho na grande tina que trouxera sem grande esforço aparente e lhe disse que chegara o momento de fazer a sua toilette.
Estás branca como uma morta notou ele. Domingo vai ter de te pôr carmim.
Ninguém está à espera que eu vá para o altar com o coração alegre. O meu aspecto não tem importância nenhuma e não quero pôr pintura. Detesto.
O Santo Padre não ficará contente.
Enganas-te. A única coisa que lhe interessa é o meu casamento. Eu! Casada! Quando Philippe...
Fiora desatou a soluçar tão violentamente que o núbio, espantado, foi buscar vinagre para lhe borrifar a fronte e as têmporas.
Por piedade, acalma-te! Domingo será punido se mostrares esse rosto desesperado. Tens de ser corajosa.
Ele tem razão disse uma voz doce que acalmou imediatamente o choro de Fiora. E creio que te sentirás ainda mais forte quando leres a carta que te trago!
Khatoun segurou com as duas mãos a cabeça da jovem para a obrigar a olhar para ela.
Vieste? murmurou Fiora. Deram-te autorização?
Deram, mas lê esta carta, peço-te! E tu, entretanto acrescentou ela para o negro vai buscar a arca que está lá fora numa mula guardada pelos criados da condessa Riario.
A carta, claro, era da condessa Catarina:
”Neste instante que vos deve ser cruel, escrevia a jovem, quero dar-vos todo o conforto de que sou capaz. Não posso acompanhar-vos, mas quero dizer-vos o seguinte: uma mulher inteligente é capaz de se adaptar ao pior dos casamentos desde que tenha amigos para a ajudarem e vós tendes em mim uma amiga. Khatoun, que eu vos ofereço será o meu presente de casamento dir-vos-á o que eu não tenho coragem de escrever. Quanto mais soberba e orgulhosa fordes, mais forte sereis no espírito do meu tio. Ver-nos-emos em breve porque, a partir de amanhã, exigirei a vossa visita, o que é normal pois não devo sair da cama. Sede corajosa e tende confiança! Beijo-vos. Catarina.”
Foi como uma lufada de ar puro e vivificante. Fiora verteu as suas últimas lágrimas nas faces de Khatoun, que a abraçou com profunda emoção.
Ao menos, reencontro-te, a ti! Não imaginava ter, esta noite, uma alegria tão grande.
Com a impressão de que os bons tempos regressavam, ela deixou que a jovem tártara lhe enfiasse o soberbo vestido dourado que Domingo acabava de trazer, mas o contacto com o tecido metálico e frio fê-la estremecer e Khatoun pensou que era de angústia:
Não penses! suplicou ela. Não penses no passado! Esta noite vives um pesadelo, mas, depois, acordarás.
Achas?
Tenho a certeza. Amanhã vais ver a condessa Catarina acrescentou ela num murmúrio. Ela tem coisas para te dizer.
Quando, uma hora mais tarde, Fiora, seguida de Khatoun tão compassada como uma dama-de-honor, fez a sua entrada na capela papal, pareceu-lhe penetrar no interior de um missal. Uma braçada de velas amarelas fazia cantar o ouro e viver as personagens dos frescos pintados por Melozzo da Forli. No seu esplendor de mau gosto e nas suas cores vivas, pareceram-lhe mais verdadeiras do que as personagens vivas colocadas em redor do altar, talvez porque o seu espírito e o seu coração recusavam a realidade com todas as suas forças.
Para retardar o instante temido, Fiora preferiu olhar primeiro para o Papa, uma mancha branca engastada nos braços de uma poltrona alta de veludo vermelho. Parecia-se, mais do que nunca, com um grande batráquio irritante. Na sua frente estava uma dupla mancha negra e prateada, que Fiora reconheceu, odiosamente, antes de lhe distinguir as feições: Hieronyma e Francesco Pazzi, que ela aflorou apenas com um olhar pesado de desprezo. E depois, diante do altar, uma forma estranha, uma espécie de insecto dourado de longas patas esguias, um corpo ovóide encimado por uma grande cabeça sem pescoço que se inclinava para um lado, demasiado pesada, talvez, para que a conseguisse manter direita. Uns cabelos longos e sedosos, de uma cor quente de castanha a única beleza daquele rapaz sem idade enquadravam um rosto de lábios moles, de nariz pendente e de pesadas pálpebras, mal deixando ver umas pupilas de cor quase impossível de ver.
Depois de transposta a soleira, Fiora deteve-se por um instante, prestes a fugir se aqueles cuja presença ela pedira não estivessem ali, Mas, na sombra do trono papal, descobriu a samarra púrpura do cardeal carmelengo e a alta silhueta de Mortimer sobriamente vestido de castanho que, de braços cruzados no peito, roía um punho. Riario cumprira a sua promessa e Fiora já podia tranquilizar-se quanto à sorte do seu amigo... Mas quando o seu olhar encontrou o do escocês, ensombrado por uma cólera impotente, sentiu diminuir a sua coragem. Era de tal modo a imagem de um passado recente, de um passado perdido e por isso, singularmente querido, que ela teve vontade de correr para ele e de se refugiar naquela força que conhecia tão bem. Evidentemente, Mortimer livrar-se-ia sem dificuldade de alguns dos homens presentes, idosos na sua maior parte, mas no exterior havia guardas, assim como carcereiros e carrascos e Fiora não podia voltar atrás.
Ia pôr-se em marcha para o altar quando a porta se abriu diante de Girolamo Riario. O conde juntou-se a Fiora e, com um sorriso pleno de arrogância, ofereceu-lhe o braço para que ela nele pousasse a sua mão, afirmando assim a sua vontade de aparecer como o único artesão do casamento, obra diabólica onde estavam reunidos a sua insaciável cupidez e o ódio de Hieronyma. A mão de Fiora hesitou em tocar a do homem, mas recusar causaria um escândalo que alienaria a frágil boa vontade de Sisto. Ela deixou-se, portanto, conduzir até junto daquele que se ia tornar seu marido, mas, depois de lhe ter concedido um olhar, fechou os olhos para melhor reter as lágrimas, porque não podia deixar de evocar, no lugar daquele ser profundamente desgracioso e que ela ouvia cantarolar a meia voz como se estivesse só, a alta silhueta do seu bem-amado Philippe, os seus largos ombros, o seu sorriso um pouco trocista e a paixão que ela vira brilhar, então, nos seus olhos cor de avelã.
Nunca ninguém tomará o teu lugar jurou ela silenciosamente para a sombra do seu amor. Quanto àquele, nem que tenha de me matar, não tocará em mim esta noite, nem nunca!
A voz do cardeal d’Estouteville fê-la reabrir os olhos e viu que o Papa, com a ajuda de dois diáconos, estava a vestir as vestes sacerdotais para celebrar o casamento.
Muito Santo Padre disse firmemente o francês peço-vos solenemente e pela última vez que reconsidereis quanto a este casamento. Nenhuma mulher consentiria numa tal união e custa-me a crer que Dona Fiora seja consentânea.
Vós não tendes a palavra! cortou brutalmente Riario. Ela deu o seu acordo e acabou!
Não acabou, não, porque é meu dever. Ela é súbdita do Rei de França e nem quero pensar no que ele dirá quando souber deste... deste acto insensato.
Onde é que fostes buscar essa de ela ser súbdita do Rei de França? disse Hironyma asperamente. Ela sempre foi conhecida por ser florentina e é viúva de um borgonhês. Este casamento vem, no fim de contas, no seguimento da natureza das coisas, porque, em tempos, ela foi noiva do meu pobre Pietro, o meu querido filho.
Eu nunca fui noiva do teu filho! exclamou Fiora. Eu sei que tu não conheces os limites da mentira, mas há, de qualquer maneira, limites...
Começada assim, a cerimónia nupcial prometia transformar-se num ajuste de contas e o Papa decidiu que era tempo de intervir. A sua voz de bronze soou, repercutindo-se nas abóbadas da capela.
Paz! Estamos num lugar santo, não no mercado. Nosso irmão d’Estouteville, tende calma! Amanhã escreveremos ao Rei Mui Cristão para lhe dar parte desta união que tanto alegra o Nosso coração paternal. Quanto a ti, Fiora Beltrami, consentiste, ou não, em casar com Cario aqui presente?
Consenti, mas com uma condição.
Qual?
Penso que Vossa Santidade não a ignora. Quero que o jovem que acompanha esta noite monsenhor d’Estouteville seja enviado imediatamente para Plessis-lès-Tours e com toda a segurança.
Riario desatou num grande riso que lhe fez tremer o duplo queixo e o ventre:
Tanto barulho por causa de um camponês! Palavra de honra, minha querida, dormíeis com ele?
Era mais do que aquilo que o visado era capaz de suportar.
Tu é que és camponês! grunhiu ele. Eu sou oficial da Guarda Escocesa do mui grande e poderoso Rei Luís, décimo primeiro do nome, pela graça de Deus Rei de França e de Navarra. E fui enviado aqui pelo meu senhor, cansado de ver partir duas embaixadas sem as ver regressar. Matai-me, se quiserdes, como matastes tantos outros, sem dúvida, mas recuso-me a que a minha liberdade tenha um tal preço! Acrescento, no entanto, que, se não regressar, o Rei considerará que se trata de um acto de hostilidade e não será uma embaixada que ele enviará, mas sim um exército.
Um exército? indignou-se Sisto IV. Ele ousaria declarar-Nos guerra?
Não, na verdade, mas sei que sonha em fazer valer os seus direitos hereditários sobre o reino de Nápoles, usurpado indevidamente pelos Aragoneses. Ora, acontece que Roma fica no caminho de Nápoles...
Foi a vez de Francesco Pazzi se lançar na batalha. Ele não mudara desde que Fiora o vira pela última vez quando, no dia da giostra, combatera contra Giuliano de Médicis pelos belos olhos de Simonetta. Continuava feio, atarracado, de cabelos negros e pele castanha. A sua voz continuava rude e a expressão do seu rosto continuava irritante:
A palavra de honra é a palavra de honra e Fiora deu a dela. Exijo que seja mantida.
E eu, Douglas Mortimer, dos Mortimer de Glen Livet, sustenho que essa palavra de honra lhe foi arrancada pela violência e que tu não passas de um mentiroso. E agora, se queres que discutamos de armas na mão, estou pronto a defender a causa de Dona Fiora até que a morte chegue para um de nós.
Um duelo! exclamou Estouteville. Lembrai-vos, Mortimer, que estamos numa capela!
Eminência, não sei se isso conta muito aqui. Não ouvi dizer que o duque de Milão foi, no ano passado, assassinado ao sair de uma igreja? Parece que, aparentemente, são esses os costumes neste país!
Chega! uivou o Papa cujo rosto se tornou cor de tijolo. Acabemos com isto. Dona Fiora, daqui a uma hora, este... oficial deixará Roma com a carta que Nós vamos escrever para o Rei de França e com um salvo-conduto assinado pela Nossa mão. Estais pronta a cumprir, nestas condições, a vossa parte do contrato?
Sem responder, Fiora aproximou-se do escocês, ergueu-se na ponta dos pés e pousou-lhe um beijo na face.
Obrigada, amigo Mortimer, obrigada pelo que quisestes fazer. Não vos preocupeis mais comigo, peço-vos.
Pedis-me o impossível.
- Não. Peço-vos que veleis pelo meu filho até que eu possa voltar a vê-lo, coisa que vai ser, doravante, o meu único objectivo.
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