Pronto! disse Cario tranquilamente. Mais ninguém nos virá incomodar.
Apoiado a uma coluna do leito, os olhos bem abertos mostrando as pupilas azuis por onde passava uma chama de contentamento, perdera por completo o ar adormecido e olhava para a jovem, gozando a sua surpresa. Endireitara-se um pouco e, se continuava feio, inspirava muito menos aquela piedade misturada com uma certa repugnância discreta reservada, geralmente, para os atrasados mentais.
Como Fiora continuou sem dizer nada, ele emitiu uma espécie de cacarejo e desatou a rir:
Não façais essa cara, minha querida esposa! O facto de vos revelar o meu segredo deveria tranquilizar-vos quanto às minhas intenções. Posso, se isto não vos chega, afirmar-vos que as crianças nascidas do nosso casamento não nos custarão um tostão a alimentar e que ides poder dormir tranquila nesse grande leito que vos mete tanto medo.
Representais? articulou, por fim, a jovem. Mas, para quê?
Para sobreviver. Há anos que estou habituado a isto e a minha desgraça física foi, para mim, uma ajuda: sou tão feio que acharam muito natural que eu fosse, também, idiota.
Para sobreviver, dizeis? Mas, quem é que vos ameaça?
Os Pazzi em geral, com excepção do meu avô Jacopo, que sempre me defendeu. Devo dizer-vos que, depois dele, sou eu, após a morte dos meus pais, o mais rico da família e foi por isso que o meu tio Francesco me trouxe para Roma com ele quando teve de abandonar Florença. Eu era o seu cofre-forte ambulante, ou uma coisa assim. Obteve a minha tutela, o que lhe permitiu estabelecer em Roma um novo banco porque é um homem hábil, mas tem todo o interesse em que eu permaneça vivo, porque, morto, todos os meus bens lhe seriam retirados pelo meu avô. E ninguém se atreve a desagradar ao patriarca.
Como é possível eu nunca ter ouvido falar de vós quando vivia em Florença?
Porque me escondiam, com mais cuidado ainda do que com o meu horrível primo Pietro. Dois monstros na família é de mais! Eu morava em Trespiano, uma villa herdada pela minha mãe, onde me deixavam tranquilo com a minha ama e o velho padre que me ensinou o que podia. Tenho livros, lá, pássaros, árvores.
Éreis obrigado a desempenhar esse papel horrível... e sem dúvida esgotante?
Era, porque, se tivessem suspeitado de que era mais ou menos inteligente e, portanto, capaz de gerir os meus próprios bens, estaria morto há muito a despeito do patriarca. Houve, em tempos, em Roma, um homem chamado Claudius Ahenobarbus. Ele conseguiu escapar aos assassinatos incessantes, perpetrados na sua família, fazendo-se passar por cretino, e chegou mesmo ao trono imperial... ”,
Alimentais ambições assim tão altas? perguntou Fiora, que não pôde impedir um sorriso.
Oh não! Absolutamente! Tudo o que eu desejo é regressar a Trespiano. Aliás, pode ser que esse desejo se realize proximamente, mas em condições que me assustam. Se o meu tio Francesco e a abominável Hieronyma conseguirem levar a cabo o plano que idealizaram, Girolamo Riario não lhes poderá recusar nada e eu serei, muito provavelmente, assassinado. Vós também, aliás, porque só vos casaram para recuperar a vossa fortuna!
Mas... e o vosso avô?
Morrerá no tumulto que suscitará a tomada do poder por parte de Riario.
Estais ao corrente? Mas, como é possível saberdes isso tudo?
Ninguém desconfia de um pobre de espírito. Até falam abertamente diante dele. Eu sei tudo sobre a conspiração contra os Médicis organizada pelos Pazzi, por Riario e Montesecco, esse mata-mouros grande como uma noite de angústia e quase tão feio como eu. Lourenço e Giuliano morrerão no fim-de-semana no decurso da visita que lhes vai fazer o novo cardeal, Rafaele Riario, que deixou Roma ontem.
Sabeis se eles decidiram uma data?
Não, mas poderá ser no Domingo de Páscoa, durante as festas. O pior é que eles conseguiram reunir a família toda, incluindo o meu avô, que, no entanto, era hostil, ao princípio, ao que ele achava uma loucura. E eu não posso fazer nada. No entanto, gostaria de os salvar.
Salvar quem? Os Médicis? Vós, um Pazzi? Nesse caso, não os odiais?
Giuliano pouco me importa, é uma bela cabeça oca, mas gosto muito de Lourenço. É muito feio...
É por isso que gostais dele?
Por favor, não penseis que sou mesquinho a esse ponto! disse Cario, tristemente. Ele é feio, repito-o, mas que inteligência! E que encanto! Além disso, tentou ajudar-me. Tinha um médico grego do qual se diziam coisas espantosas.
Demétrios Lascaris! murmurou Fiora, perturbada.
Conhecei-lo? Lourenço queria que ele me tratasse, mas a minha querida família opôs-se. Oh sim! Eu gostava de poder impedir este crime, mas sou prisioneiro da minha personagem: não tenho dinheiro nem qualquer meio à minha disposição, não tenho um criado fiel e nem sequer sei montar a cavalo! Só consigo montar uma mula... desde que ela não vá muito depressa!
Mas eu sei!
Saltando da cama, Fiora enfiou um roupão pousado sobre uma cadeira, pegou em Cario pela mão e fê-lo sentar-se junto dela na arca que estava diante do leito. Uma esperança louca fazia-lhe bater o coração com toda a força.
Ajudai-me, amanhã, a sair desta casa. Irei a Florença e farei com que os projectos deles falhem!
Como posso ajudar-vos? Já vo-lo disse: não tenho nada para vos dar. Quando eles partirem, amanhã, levarão os cavalos todos e os mais fortes dos nossos servos.
Alguém me dará o que for necessário. Depois da partida deles, sei que a condessa Riario vai pedir que eu a vá visitar. Conduzi-me a casa dela numa visita de cerimónia... ela fará o resto.
Quereis dizer que... a mulher de Girolamo quer que salvemos os Médicis?
Ela ama Giuliano, mas, claro, terá de tomar grandes precauções...
Bruscamente, Cario pousou uma mão nas de Fiora e levou um dedo à boca. Em seguida, debruçando-se sobre o ouvido da jovem, murmurou:
Chorai! Gemei o mais alto que puderdes!
Carlo apontou para a porta que alguém tentava abrir muito suavemente. Hieronyma, sem dúvida, porque Pazzi devia estar demasiado embriagado para tomar tantas precauções. Fiora desatou a gemer e a soluçar. Parou e depois recomeçou, suplicando que a deixassem em paz, tudo tão natural que arrancou a Cario uma risada silenciosa. Por instantes, ouviu-se um grito débil, como se a tivessem magoado e em seguida recomeçaram os soluços, as queixas e as súplicas. Cario, pelo seu lado, emitia grunhidos de uma ferocidade convincente. Aquilo durou uns bons minutos para grande alegria dos protagonistas, que se divertiram francamente com aquele jogo. Então, após um último grito, Fiora calou-se, como se Cario a tivesse espancado de modo a fazê-la desmaiar. Este resmungou ainda duas ou três palavras indistintas e depois foi o silêncio... um silêncio que lhe permitiu ouvir, nitidamente, o som de passos prudentes afastando-se e o frufru de um vestido de seda.
Uf! suspirou Cario. Escapámos de boa!
Nós estávamos a falar em voz baixa, mas, mesmo assim, ainda bem que tendes bons ouvidos.
Já me prestaram grandes serviços! E agora, creio que devíeis dormir. Deveis ter necessidade.
E vós?
Eu vou-me instalar nesta poltrona com algumas almofadas.
A dita poltrona era dura como a justiça e só havia duas almofadas e, mesmo essas, muito pequenas. Fiora hesitou um momento e depois propôs:
Por que não vos estendeis na cama ao pé de mim? Nós, agora, somos amigos e vós prometestes...
Essa promessa, podeis acreditar, não me custa nada a cumprir. Vós sois extremamente bela, minha querida Fiora, mas eu só gosto de rapazes!
A surpresa colocou nos olhos de Fiora dois pontos de interrogação que provocaram em Cario, no entanto, um sorriso amargo:
Este gosto nunca chocou ninguém, nem sequer os meus parceiros, a quem o meu tio paga generosamente na condição formal de se mostrarem discretos.
Aquela estranha declaração causou tanta alegria a Fiora que, espontaneamente, abraçou Cario fraternalmente:
Decididamente, sois um marido que me agrada muito, Cario e nunca agradecerei o suficiente aos céus por nos ter unido. Doravante, serei vossa irmã, uma irmã que fará tudo para vos ajudar.
Uma lágrima brilhou nos olhos azuis do rapaz que, por sua vez, pousou um beijo prudente na face da jovem. Depois, com um ”boa-noite”, cada um deles se deitou no seu lado da cama.
Um momento mais tarde, os dois esposos, virando as costas um ao outro, dormiam um sono merecido onde entrava uma boa dose de alívio, tanto num, como noutro.
Terceira parte
PÁSCOA SANGRENTA
CAPÍTULO XI
A ESTRADA DE FLORENÇA
O fim do dia aproximava-se quando Fiora, irreconhecível num fato masculino, transpôs, por fim, aquela porta del Popolo na qual, desde há tantos dias, se cristalizavam os seus desejos e esperanças. Tudo se passara como num sonho, mas com a precisão de um bailado bem ensaiado: a partida matinal de Pazzi e de Hieronyma, que bateram à porta do quarto do jovem casal para um ”até à vista”, mas aos quais o marido respondera com injúrias e a cólera de um homem arrancado demasiado cedo ao seu sono. Depois, a correria de ambos à janela, para se certificarem de que os Pazzi tinham abandonado o palácio do Borgo, após o que Fiora regressou ao seu leito enquanto Cario ia, enfim, abrir a porta do quarto, reclamando com grandes gritos o seu pequeno-almoço e o seu criado. Em seguida, chegara o emissário da condessa Riario, pedindo a primeira visita da nova Dona Fiora del Pazzi, visita que Cario aceitou com um grunhido e clamando que também iria. Após o que, tendo partido em duas mulas com um pequeno séquito quatro criados e Khatoun para o palácio de Santo Apolinário, Fiora, abrigada sob um véu espesso que era suposto esconder os vestígios das sevícias sofridas durante a noite de núpcias e Cario, com cara de poucos amigos, cavalgavam à cabeça sem cessarem de fazer cem loucuras, que fizeram sorrir alguns passantes e um encolher de ombros a outros.
Chegado a casa de Catarina, que, de facto, estava só, Cario pediu de beber e conduziram-no, com uma reverência, aos aposentos de Girolamo, ao mesmo tempo que Fiora e Khatoun eram levadas ao quarto da jovem condessa.
Um quarto sumptuoso, na verdade, todo decorado de brocado azulado e tecidos prateados, atafulhado com uma infinidade de arcas pintadas, de cadeiras e mesas, no meio das quais se destacava um enorme leito forrado com o mesmo tecido prateado e coroado de tufos de penas azuis e brancas. Catarina, mergulhada em rendas preciosas, recebeu os seus visitantes com a devida cerimónia e despediu, depois, as mulheres ao seu serviço, ficando apenas com Rosário, a sua camarista preferida, em quem tinha toda a confiança. Uma hora mais tarde, Khatoun, mais alta devido a uns sapatos de salto alto venezianos, usando o vestido de Fiora e envolta no famoso véu, abandonava o palácio na companhia de Cario, que esvaziara a maior parte das vezes para dentro de ânforas de laranjas um certo número de frascos. Entretanto, escondida na alcova por trás do leito de Catarina, Fiora vestia o fato de burel castanho e a túnica com as armas dos Sforza, uma víbora, e as dos Riario, uma rosa, que tinham sido preparados para ela juntamente com umas botas altas de couro macio, uma ampla capa de cavalo e um alto gorro emplumado, sob o qual os seus cabelos, apertados numa rede, desapareciam por completo. ”
Quando ficou pronta, Catarina entregou-lhe uma bolsa de ouro cujo conteúdo Fiora distribuiu pelas diversas partes do seu fato e uma carta assinada com um simples C.
É para Lourenço precisou ela. Não quero que os Médícis pensem que sou cúmplice dos Pazzi... e do meu marido. Quando estiverdes para lá de Siena, tirai a túnica e enterrai-a, ou escondei-a num arbusto espesso. Tomai cuidado para não vos encontrardes com quem partiu esta manhã. Encontrareis na bolsa um itinerário que vos deve evitar esse mau encontro. E agora, beijai-me e que Deus vos guarde! Enviar-vos-ei Khatoun, que deve regressar esta noite, assim que for possível.
Com uma emoção profunda, Fiora pousara os lábios no belo rosto daquela jovem que, mal-grado um casamento detestado, conseguia permanecer fiel a si própria e ao nome que tencionava usar durante toda a sua vida. Fizera-o sem segundas intenções e sem inquietação: a despeito da idade, Catarina Sforza era capaz de se livrar das piores situações, porque possuía a inteligência
1 O que provaria superabundantemente ao longo dos quarenta e seis anos da sua existência
viva que faltava tanto ao seu marido e, sobretudo, uma enorme coragem. No último instante, ela fez um aviso a Fiora, ao mesmo tempo que Rosário colocava à cintura do falso rapaz uma espada e uma adaga:
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