Não é um patrão, é uma patroa: a sobrinha do Papa, Dona Catarina Sforza, condessa Riario. Enviou-me a Florença em missão... especial, daí essa carta. Se não chegar lá, arrisco a minha cabeça, mas quem me impedir, ainda arrisca mais. Dona Catarina não é muito indulgente, apesar da idade.
O bandido tirou o gorro para coçar a cabeça, visivelmente preocupado com um problema difícil:
Já ouvi falar! Dizem que ela é tão brava quanto bonita e tem a quem sair! Eu, que estou aqui a falar contigo, servi sob as ordens do avô dela, o grande Francesco Sforza, um rude homem de guerra, esse! Ainda era miúdo, mas posso dizer-te que vivi bons tempos com ele. Aí está um que sabia como agradar aos seus soldados...
Subitamente, os olhos do bandido brilharam com um fogo mais vivo, ao mesmo tempo que a sua voz se enchia de uma espécie de nostalgia:
Pilhámos Piacenza juntos e tu nunca hás-de ver semelhante saque, meu rapaz, nem nada que se pareça! Estripámos os homens, violámos as mulheres todas dos dez aos sessenta, escaqueirámos tudo e, para acabar, deitámos fogo a tudo. A cidade parecia um inferno a arder, enquanto atirávamos com as raparigas para os ribeiros que iam cheios de vinho, de sangue e de tripas. Fazia um calor de rachar, mas bebemos tudo o que nos apeteceu. E depois, no fim, ficámos ricos: prata, belos tecidos, víveres e ouro, foi o que Sforza deu aos seus homens! Também tivemos freiras... e até fradecos, para aqueles que gostam. Ah!... seria preciso ir até bem longe para encontrar um chefe como ele! Os de agora só pensam em vestir-se de seda e evitar os golpes. Têm a pele tenra... Sforza, esse, usava couro, o bom e velho couro esmaltado, como a minha couraça, mas, no entanto, a Rainha de Nápoles não se importou de o ter na cama dela e Milão deu-lhe a mais bela das princesas...
Fiora escutara, sem impaciência e sem se comover, o bandido a desfiar as suas recordações: já vira a guerra bem de perto para lhe conhecer os horrores.
Eu sou tão fiel a Dona Catarina como tu eras ao seu avô e posso assegurar-te que ela é digna dele. Escuta! Fica com a minha bolsa, mas deixa-me partir com o meu cavalo! Juro-te que, uma vez a missão cumprida, trago-to com mais dois, se quiseres...
Por que não vinte? Os que estarão debaixo dos rabos dos soldados que te acompanharão? Tomas-me por imbecil, miúdo? Eu já não acredito na palavra das pessoas e tão certo como eu chamar-me Rocco da Magione, ainda não nasceu aquele que me há-de ficar seja com o que for... Especialmente um maricas que nem sequer barba tem. Uma verdadeira rapariga palavra de honra acrescentou ele passando um dedo pela face de Fiora, que quase lho mordeu, mas a jovem decidiu jogar a sua cartada!
Mas, eu sou uma rapariga disse ela docemente. E Rocco retirou o dedo como se o tivesse queimado. O que é que estás a dizer? É fácil de verificar. Tira-me o gorro! O bandido tirou o gorro de feltro, revelando a rede que mantinha apertados os cabelos da jovem. Esta agitou a cabeça e um rio de seda negra caiu-lhe sobre os ombros sob o olhar estupefacto de Rocco. É verdade! Mas, quem és tu? Eu digo-te, mas, primeiro, responde-me. Já que vigias esta estrada, não viste passar a noite passada uns cavaleiros escoltando uma liteira?
A noite passada, não: esta madrugada. Uma caravana bem esquisita, acredita-me, e vontade não me faltou de pôr os meus homens todos a cavalo, mas eles vinham bem armados demais para os modestos bandidos que nós somos.
É pena! gemeu Fiora. Se os tivesses atacado, terias, sem dúvida, evitado uma grande infelicidade...
Mais devagar! A infelicidade teria sido minha e destes bravos rapazes que se puseram sob a minha bandeira. Mas, regressemos ao princípio: quem és tu?
O meu nome é Fiora Beltrami e sou amiga de Dona Catarina. Para completar o quadro, acrescento que sou, também, a inimiga jurada do rústico marido dela... Oh, chega! Estou aqui a fazer de imbecil, a discutir com um ladrão de estrada enquanto que, se calhar, amanhã, os Médicis vão morrer!
A jovem quis levantar-se, mas Rocco impediu-a e atirou com ela para a palha. Ao mesmo tempo, o homem lançara um verdadeiro rugido:
O que é que tu disseste? Que história é essa de mortes?
Demora um certo tempo a explicar. Basta que saibas que, se estou com pressa, é porque a condessa e eu queremos salvá-los. Os que viste passar ontem são os assassinos!
Seguiu-se um silêncio durante o qual Rocco tirou do cinto uma longa faca muito pouco tranquilizadora, mas o homem limitou-se a cortar a corda que ligava os punhos da prisioneira. Em seguida, reflectindo, deu uns passos de um lado para o outro.
Se eu te ajudar, achas que posso esperar uma boa recompensa? disse ele cofiando a barba.
Pela memória do meu pai, assassinado por aqueles Pazzi que viste passar, juro-te. Mas, por que razão farias algo pelos Médicis?
O Magnífico salvou-me a vida em Volteira. Eu tinha morto uma rapariga que Vitelli reservava para si e ele quis enforcar-me. Lourenço cortou a corda e devolveu-me a liberdade. São coisas que um homem honrado não esquece. Mas, chega de conversa: teremos muito tempo para isso durante a viagem. Eu vou contigo! Será a melhor maneira de vigiar o meu cavalo.
Os dois em cima dele? Será, certamente, a melhor maneira de fazer com que ele morra e então iremos os dois a pé. Já te disse que devemos apressar-nos!
Ele, ao menos, não nos leva durante uma meia légua? Eu sei onde podemos arranjar um se tivermos ouro acrescentou ele acariciando a bolsa que atara à cintura com uns cordões. Mas, agora, vem comer um bocado de carneiro, que ainda se queima... mas penteia-te. Prefiro que continues a ser um rapaz.
Como Rocco dissera, Fiora devorou um pedaço de carneiro que estava assado no ponto, fazendo-o descer com uma taça de vinho carrascão, ao mesmo tempo que o chefe, sempre a comer, arengava aos seus homens mais ou menos uma dezena:
Eu vou acompanhar este rapaz, porque ele me propôs um negócio interessante, mas regresso em breve. Orlando acrescentou ele apontando para uma espécie de gigante cabeludo que devia possuir a força de dois ursos tu vais comandar na minha ausência, que não deve durar mais de uma semana, mas, entretanto, mantende-vos quietos e não chameis as atenções sobre vós. Deixo-vos uma parte do ouro deste rapaz, mas vou trazer-vos roupas decentes.
Porquê? grunhiu Orlando. Vamos deixar de ser bandidos?
Seremos o que sempre fomos: soldados. Quando eu regressar, iremos a Urbino. Dizem que o duque Frederico de Montefeltro, está a recrutar uma condotta para uma nova guerra e há muito que as nossas espadas enferrujam. De acordo?
Todos estavam de acordo menos Fiora, que se inclinou para Rocco:
Tens a certeza que estás a ser lógico? Montefeltro é um dos condottieri ao serviço do Papa e esse exército pode estar a dirigir-se para Florença.
Eu sei, mas digamos que é... o último recurso! Veremos o que acontece. Se os Médícis ganharem, colocar-nos-emos ao serviço deles. Senão... é preciso viver, que queres?
Não havia mais nada a acrescentar. Fiora acabou tranquilamente a sua refeição enquanto Rocco procedia à repartição equitativa das moedas de ouro. Graças à precaução que tivera de distribuir algumas pelas botas e pelos diversos locais da sua roupa, o facto de ter perdido a bolsa não atormentava Fiora, mas reclamou a escarcela que as contivera. Restavam poucas coisas: um lenço e o pequeno frasco que Anna lhe dera. Rocco olhou para ele por um instante.
O que é que há aí dentro?
A possibilidade de escapar a uma morte penosa no caso de ser... apanhada.
Rocco abanou a cabeça, meteu de novo o objecto na bolsa e estendeu-a a Fiora, que começava a bater os pés de impaciência. Tanto tempo perdido! Além disso, sentia-se um pouco inquieta com o efeito que produziria na estrada de Florença na companhia daquele homem andrajoso que dava a entender demasiado aquilo que era...
Mas quando Rocco, que se afastara por um momento, regressou, ela ficou mais tranquila. O homem trocara o seu gibão sujíssimo por um outro de espesso pano cinzento, não muito limpo, sem dúvida, mas mais apresentável. Umas botas, um cinturão de couro castanho e uma capa da mesma cor rematavam a transformação que a longa espada e a adaga, felizmente, completaram.
Tiveste medo que te envergonhasse, hem? disse ele aplicando uma cotovelada em Fiora. E agora, a caminho.
Saíram da gruta e ele montou o cavalo. Fiora montou na garupa e, saudados pelos votos do bando, dirigiram-se para a estrada no passo medido que a dupla carga exigia para não esgotar o animal.
A noite estava negra, fria e era preciso conhecer o caminho, mas Rocco sabia para onde ia e, um momento depois, Fiora viu-se dotada com uma nova montada comprada da maneira mais regular do mundo a um fazendeiro que parecia conhecer bem o bandido e, até, ter relações mais do que cordiais com ele.
Nós roubamos os viajantes explicou Rocco não os vizinhos! Se assim fosse, a vida não seria possível. Este nunca teve queixa de mim, antes pelo contrário.
O companheiro da jovem não forçara a camaradagem ao ponto de lhe devolver o cavalo. Ficara com ele e Fiora teve de dar-se por satisfeita. A sua nova montada era mais um animal de trabalho do que um cavalo de sela. Além disso, dava provas de uma independência de espírito e de uma originalidade que o levava a contornar o menor montículo de terra ou até a recuar se o obstáculo lhe parecia demasiado fatigante de ultrapassar. Rocco, que se divertia desavergonhadamente com o furor crescente de Fiora, acabou por levar o animal pela brida para poder seguir em frente. Fiora consolou-se ao pensar que em Siena o seu companheiro e ela poderiam arranjar cavalos frescos. Mas estava escrito no grande livro do destino que ainda não chegara ao fim das suas penas.
Na piazza del Campo, o albergue da Fontana acolheu os viajantes com a consideração devida a tão nobres visitantes, mas o seu proprietário, mestre Guido Matteotti, ofereceu-lhes uma imagem de desolação quando lhe pediram cavalos frescos.
Onde quereis que eu os vá arranjar, meus Senhores? Não tenho nenhum! Nem sequer um pequenino. Tudo o que vos poderia oferecer é um burro, mas é muito teimoso. E a minha filha gosta muito dele!
Que queres tu que façamos com um burro? barafustou Rocco. Sabes quem somos? O meu jovem senhor, que pertence à nobre casa do conde Riario, é um mensageiro enviado por Sua Santidade e, acredita-me, a sua mensagem é urgente.
Que eu caia morto aos teus pés, Senhor, se não digo a verdade. Restavam-me quatro cavalos, quatro cavalos soberbos: animais altos, fortes, sólidos como uma rocha, de olhares vivos e crinas maiores do que os cabelos de uma mulher, mas levaram-mos ontem à noite! Levaram-me os quatro...
E quem é que se atreveu a isso? Não estavam reservados para o serviço do Papa e dos seus?
É evidente, mas eu já tinha visto passar uma tropa grande e não imaginava que aparecesse outra. Além disso, tinham argumentos contra os quais eu não podia fazer grande coisa!
Rocco agarrou no homenzinho pelo colarinho da camisa e começou a abaná-lo:
E quem era essa gente? Dizes, ou não?
Uma tropa de homens que vinha de Pisa. Soldados! Beberam, comeram, pilharam-me o celeiro e a cave e maltrataram-me as criadas e os moços-de-cozinha. Um verdadeiro desastre!
Estou a perder a paciência! disse Rocco. Decides-te a dizer quem eram?
E eu sei? Eram soldados, já vos disse! Iam ter com um grupo que se está a formar perto daqui sob as ordens do condottiereSanseveríno. Viram os meus cavalos e levaram-nos, muito simplesmente. Ah! Pobre de mim!
De sobrolho franzido, Fiora reflectia. A situação agravava-se. Rocco falara de um recrutamento em Urbino sob as ordens do duque Frederico e eis que uma outra condotta se formava sob as ordens de Sanseverino. Um a leste, o outro a sudoeste, parecia-se diabolicamente com uma tenaz a fechar-se sobre Florença. Decididamente, Riario preparara tudo muito bem porque, com os Médícis assassinados, poderia largar aquela matilha esfaimada na cidade e estrangulá-la antes mesmo de ela ter tempo de se mexer. Por outro lado, para além do Papa, havia também Ferrante de Nápoles, enquanto os aliados de Florença, Milão e Veneza, nem sequer imaginavam o que se preparava. Sem falar, claro, no Rei de França, cuja distância apresentava pouco perigo para os conjurados.
A jovem não dissera nada, mas Rocco devia ter seguido o seu raciocínio, porque lhe pousou no braço uma mão que pretendia ser tranquilizadora e ela agradeceu-lhe com o olhar.
Bem disse ele Juntamo-nos aos outros em Florença e esperemos que os nossos animais aguentem até lá. Pelo menos, no teu celeiro pilhado e na tua cave arrasada não ficou nada com que possas alimentar dois honestos soldados?
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