Mestre Guido, que esperava o pior, pareceu renascer como uma flor deixada demasiado tempo ao sol que um jardineiro rega com uma chuva fina e fresca.
Mas é claro, Vossas Senhorias, mas é claro! Vinde! Eu mesmo vos vou preparar uma boa omelete e arranjar-vos umas provisões que guardava para mim e para a minha família... Nestes tempos terríveis é preciso ser previdente...
Tens a certeza que não puseste de parte um ou dois cavalos? perguntou-lhe Rocco, meio zangado. Entretanto, trata dos nossos! Que lhes banhem as pernas em vinho e que lhes dêem ração dupla! E que nos tragam um pichel enquanto esperamos pela refeição!
Fiora e ele entraram na sala do albergue que, de facto, parecia ter estado sob a acção de um furacão e puseram de pé dois tamboretes para neles se instalarem:
Nada está perdido! murmurou o bandido para Fiora, que, com a cabeça entre as mãos, parecia a ponto de desmaiar. Só nos restam umas vinte léguas para percorrer. Estou certo de que conseguiremos chegar a tempo.
Com cavalos que nos vão deixar a meio do caminho? Teremos de continuar a pé... e eu estou morta de fadiga!
Nesse caso, repousemos! Apenas algumas horas, mas isso permitirá que os nossos animais continuem. Comamos e depois tu irás dormir um pouco num dos quartos. Enquanto isso, eu vou à cidade ver o que posso encontrar...
Nem penses! Se eu descansar, tu também descansas e, se for preciso, ato-me a ti.
A confiança reina, ao que parece? No fundo, não te posso levar a mal. Ainda há pouco não nos conhecíamos. Faremos como queres, mas, primeiro, comamos! Morro de fome!
Já? No entanto, o carneiro não foi há muito tempo?
Talvez, mas vê tu, as contrariedades abrem-me o apetite! Aliás... tens a certeza que não te restaram nenhumas moedas para pagar ao nosso estalajadeiro?
Tu ficaste-me com a bolsa, sim, ou não?
Sim... siim, claro, mas eu tenho uma espécie de sexto sentido que me faz farejar o ouro como um porco fareja a turfa. E não me disseste que o teu nome era Beltrami?
Disse, mas esse nome significa alguma coisa para ti?
A segunda fortuna de Florença? Significa qualquer coisa para qualquer filho da aventura, em Itália.
Significava! O meu pai morreu e...
Eu sei, mas estou convencido de que te resta qualquer coisa, já que uma filha de banqueiro não deve pôr os ovos todos no mesmo cesto.
A despeito da fadiga, Fiora desatou a rir.
É preciso ir a Florença para o sabermos, Rocco. Não tenhas medo: terás a recompensa que te prometi, mesmo que não seja Lourenço de Médícis a dar-ta...
Os dois companheiros abandonaram Siena ao cair do dia, mesmo antes do fecho das portas. As ruas estavam cheias de sombras silenciosas que, vestidas de luto, regressavam do ofício das Trevas. Outras velariam durante toda a noite nas igrejas vestidas de negro e despojadas de qualquer aparato para deplorar a morte de Cristo no Calvário. Os sinos, que se tinham calado durante a Sexta-feira santa, deixavam, pela ausência das suas vozes familiares, a cidade desorientada e entregue à penitência. O próprio céu participara no ambiente sinistro ao deixar cair, depois do meio-dia, uma chuva fina e desesperante. Naquela noite, a imensa catedral branca e negra, estendida como um tigre sobre a cidade, faria cair sobre ela o pesado fardo da morte de um deus...
No momento em que abandonavam a sua casa, mestre Guido fizera aos viajantes uma última recomendação:
Uma palavra ainda, Vossas Senhorias! Se quiserdes chegar a bom porto com os vossos cavalos, evitai San Casciano in Val di Pesa!
Porquê? perguntou Rocco, trocista. Há lá bandidos?
Foi o que disseram uns viajantes que vinham de lá. Parece, até, que há oito dias degolaram dois irmãos pregadores... Portanto, tende cuidado!
Obrigado pelo conselho! Assassinos e maus cristãos merecem que nos acautelemos. Felizmente, estamos mais bem armados do que dois monges errantes...
Todavia, ao mesmo tempo que, seguindo Rocco que voltara a levar a sua extravagante montada pela brida, descia as colinas argilosas onde se situava a cidade, Fiora tinha dificuldade em lutar contra o mau pressentimento que se apoderara dela após ter sabido da impossibilidade de mudar de cavalos. Os contratempos pareciam acumular-se naquela estrada por onde enveredara com tanta esperança e determinação. No entanto, ainda nada estava perdido e, se tudo corresse bem, chegaria a Florença no sábado de manhã, pouco tempo depois do cortejo do jovem núncio. Mas não conseguia afastar a angústia que lhe apertava o coração. A imunda Hieronyma e os seus comparsas iriam ganhar mais uma vez e iriam, depois de Francesco Beltrami, os dois irmãos Médicis ser imolados para apaziguar o seu frenesim de morte e a rapacidade de Riario? Deus não podia dar razão ao Papa a partir do momento em que ele ousava lançar assassinos sobre uma cidade cristã, mesmo que Florença parecesse preferir Platão aos quatro Evangelhos? Era preciso, a qualquer preço, chegar a tempo! Infelizmente, a noite estava bem negra e ela não conhecia a estrada...
CAPÍTULO XII
ASSASSINATO NA CATEDRAL
Rocco também não conhecia e esta reservou-lhes todas as armadilhas possíveis. Só na madrugada de domingo é que os dois viajantes, esgotados e reduzidos a um único cavalo, viram erguer-se num céu cor-de-rosa e, enfim, desprovido de nuvens, as paredes e as torres do convento dos Cartuxos de Galluzzo, às portas de Florença. Uma ribeira que ia cheia barrara-lhes a passagem e foram obrigados a um longo desvio. Além disso, para evitar o perigo assinalado pelo estalajadeiro de Siena, tinham acrescentado maior distância à sua jornada e tinham-se perdido. Enfim, o cavalo de Rocco, ao bater num rochedo, fizera cair o seu cavaleiro e partira uma perna. Fora necessário abatê-lo. Quanto ao de Fiora, pouco habituado a longas jornadas, mostrara sinais de fadiga que o tornaram incapaz de suportar dois cavaleiros. Rocco, galantemente, resignara-se a caminhar deixando a jovem na sela, por mais incómodo que fosse. De tempos a tempos, ela caminhava junto dele sem dizer grande coisa, porque a esperança de salvar os Médicis diminuía à medida que o tempo passava. Finalmente, ela aceitou parar no convento como propunha Rocco. Àquela hora matinal, as portas da cidade ainda não estavam abertas. Por outro lado, teriam, certamente, notícias. Se os Pazzi já tivessem desencadeado o golpe, seria preciso decidir o que fazer, porque, então, entrar na cidade seria uma loucura. Por fim, os dois viajantes tinham grande necessidade de restaurar as forças.
O sorriso do irmão porteiro devolveu a coragem a Fiora. Se Florença tivesse sido, na véspera, teatro de uma catástrofe, o monge não arvoraria, certamente, aquela expressão tranquila. Enquanto os recém-chegados se sentavam na sala de hóspedes em frente de um queijo e de um bocado de pão, ele respondeu de boa vontade às suas perguntas: a cidade estivera em festa na véspera e até altas horas da noite. O irmão encarregue das compras regressara maravilhado com o cortejo do jovem núncio e pelo grande acolhimento que lhe tinham feito as senhorias dos Médicis. Naquele Domingo de Páscoa, o grande acontecimento seria a missa a que monsenhor Riario presidiria no Duomo na presença dos nobres da cidade e de todo o povo que conseguisse entrar na catedral...
Enquanto o monge ia buscar um novo pichel de água fresca, Rocco interrogou Fiora:
As portas já devem estar abertas. Sentes-te com forças para continuar?
É preciso. É verdade que não há nada a temer durante a missa, mas quanto mais cedo Lourenço for prevenido, melhor.
Estou de acordo, ainda por cima porque a missa não me inspira grande confiança...
És louco?
Não, mas tenho recordações. Na minha vida, forcei as portas de demasiados conventos e violei suficientes freiras para saber o que vale o temor a Deus quando o poder está em jogo. Mas ainda temos uma meia légua para percorrer antes de chegarmos às portas de Florença... e vai ser preciso fazê-la a pé.
Apesar dos esforços de Fiora para obter uma montada qualquer, tiveram de se resignar, mal-grado a fadiga, a continuar pelos seus próprios meios. Mas, ao ver a multidão que, vinda de todos os lados, começava a caminhar na direcção da cidade, Fiora achou que teria sido impossível ir mais depressa, a menos que esmagassem pessoas. De todos os lados, os camponeses caminhavam na direcção de Florença, como para uma nova Jerusalém, para tentarem ver o enviado do Santo Papa. Aquela afluência tinha muito a ver com o mau tempo, que cessara bruscamente. O Sol, um verdadeiro sol pascal, dourava toda a região, na qual os campanários, um após outro, acordavam as suas vozes de bronze para proclamar a toda a face daquela terra de traições, de guerras, de assassínios, de trevas e medo, que o Filho do Homem acabava de ressuscitar, trazendo com ele a esperança da vida eterna...
No decurso da noite anterior, Fiora abandonara definitivamente a túnica brasonada, que atirara para um ribeiro após tê-la atado solidamente a uma grande pedra, mas o gibão de pele de gamo, entretanto desapertado para melhor respirar, parecia-lhe pesado e trocara com alegria as botas altas por um par de tamancos. O fluxo entusiasta que esvaziara as aldeias levou os dois viajantes até às muralhas de Florença que Fiora, esquecendo a fadiga e a angústia, viu subir para si com uma alegria impossível de conter. Há tanto tempo que esperava por aquele momento, bendito entre todos, que lhe permitia rever a cidade bem-amada da sua doce infância! E Florença acolhia-a com o carrilhão de todos os seus sinos e com a alegria tumultuosa das suas ruas engalanadas.
À medida que avançavam pelas ruas, o fluxo tornava-se mais denso, mais violento, até.
Não conseguimos sair daqui murmurou Rocco, que não gostava de se sentir apertado. Vamos na direcção do palácio dos Médicis? perguntou ele enquanto a vaga se contraía para transpor a Ponte Vecchio por entre a dupla fila de lojas com as portas fechadas.
Sim e não. Primeiro vamos ao Duomo. O palácio fica um pouco mais longe...
Usando os cotovelos e os punhos das suas espadas, conseguiram ganhar terreno e desembocaram na praça que Fiora conhecia por ali ter visto desmoronar-se o seu universo no dia terrível do funeral do seu pai. Mas aperceberam-se, então, de que era impossível ir mais longe. Cordões de soldados guardavam as entradas de todas as ruas.
Eu venho de Roma e trago uma mensagem para monsenhor Lourenço disse Fiora a um dos sargentos. Deixai-me passar! Tenho de ir ao palácio...
Mais tarde, meu rapaz! Ainda não ouviste os sinos? A missa começou e monsenhor Lourenço está a assistir a ela com o irmão e os amigos... Espera! acrescentou ele, apiedado pelo rosto
Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico
magro, cheio de poeira e visivelmente fatigado. Vou fazer com que entres na igreja. Se te esgueirares, talvez consigas chegar até ele.
Levada pelo punho sólido do soldado, Fiora viu-se, em breve, sob o portal do Duomo, cujas portas monumentais, totalmente abertas, deixavam sair sons harmoniosos. Rocco seguia-a, colado aos seus calcanhares:
Como vês, filho, a igreja está cheia. Arranja-te como puderes! disse o sargento. Eu regresso ao meu posto antes que a multidão me impeça de o fazer.
Aproximar-se do altar, junto do qual deviam estar os irmãos Médícis, a sua família e os seus amigos, parecia difícil, porque havia gente, até, na nave central habitualmente vazia para marcar a fronteira entre os homens e as mulheres. Mas Fiora conhecia aquela igreja desde a sua infância e começou a deslizar pela nave lateral, murmurando aos que a impediam de passar e agitando a carta de Catarina:
Mensagem para monsenhor Lourenço! Mensagem para monsenhor Lourenço!
Fazia um calor de rachar. A multidão que se amontoava entre as paredes de Santa Maria del Fiore era tão densa que reproduzia naquela imensa nave de mármore o calor que começava a encher a cidade, secando, enfim, os ribeiros e as poças lamacentas que as chuvas incessantes da Semana Santa tinham engrossado. O odor do incenso, tão generosamente queimado que as suas espessas volutas subiam até ao alto da imensa cúpula, misturava-se com o mais insípido das centenas de velas que ardiam em redor do altar e com o aroma das flores que compunham um tapete e que morriam lentamente. Na nave amontoava-se uma assistência brilhante, toda de cetim e veludo, dourada, constelada de pedrarias e mais próxima da corte frívola de um príncipe terrestre do que de uma assembleia de cristãos devotos reunida para celebrar o Santo Sacrifício. As pessoas cumprimentavam-se, falavam, passavam umas às outras, em voz baixa, o último mexerico ou mais recente poema. Examinavam-se umas às outras. Criticavam toilettes e penteados. Por detrás daquela multidão enfeitada, o povo fazia os possíveis para conseguir ver, no coro, os dois senhores da cidade. Lourenço, todo vestido de negro, mas usando no barrete um diamante que valia um reino e Giuliano, todo de púrpura e ouro, belo e radiante como uma estátua de Apoio e alegre como um pajem em férias.
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