Quando, por fim, os viu, Fiora sentiu o seu coração cantar de alegria. Estavam vivos, bem vivos e quando o ofício terminasse poderia entregar-lhes a mensagem. Deus permitira que, a despeito da sua jornada impossível, não chegasse demasiado tarde! E era tão bom rever, enfim, aqueles rostos que lhe tinham sido tão queridos... e que ainda eram.

No coro, uma outra personagem disputava com eles, naquele dia, a curiosidade do povo. Essa personagem mostrava-se delgada e pálida, muito jovem sob as rendas e a pesada púrpura cardinalícia, um jovem príncipe da Igreja de dezoito anos que parecia ter crescido demasiado depressa. O menor dos seus gestos acendia centelhas na sua mitra dourada coberta de pedras preciosas e nos sóis bordados a ouro das suas luvas escarlates. A bem dizer, Rafaele Riario não parecia muito à-vontade, mas todos atribuíam essa atitude à timidez, conveniente e até comovedora num jovem carregado com uma tal grandeza. As mulheres achavam-no encantador por causa dos seus olhos lânguidos e do frequente rubor que subia às maçãs-do-rosto, mas os homens, perante a sua evidente fragilidade, enchiam o peito e sentiam-se confirmados na sua superioridade de machos; contentes consigo próprios, etíquetavam-no com uma satisfação desdenhosa: um badameco.

Uma parte do clero e os padres do seu séquito rodeavam a espécie de trono onde o tinham sentado e onde ele estava meio adormecido a despeito dos clamores do órgão e dos cânticos de um coro cujas gargantas pareciam particularmente vigorosas. De facto, no meio daquela gente toda, só os Médicis e alguns dos amigos agrupados por trás deles Fiora reconheceu o grande nariz de Angelo Poliziano, as lunetas de Marsile Ficino e os olhos sonhadores de Botticelli pareciam seguir a missa de Páscoa.

No altar, o padre e os seus acólitos continuavam a seguir o lento e solene ritual da missa. Primeiro a Consagração, depois a Elevação. Uma campainha foi agitada com uma energia pouco habitual. Os cânticos morreram, as conversações cessaram, apenas o órgão continuou a tocar em surdina. Como um campo de flores dobrado por um vento súbito, homens e mulheres ajoelharam-se. Diante da mesa santa, cintilante de luzes, o oficiante, erguendo muito alto a hóstia que um reflexo de vitral pintou de vermelho, pareceu ficar maior na sua casula de ouro frisado. Os sinos recomeçaram a tocar e desencadeou-se um tumulto terrível. Fiora ficou lívida.

Não é possível? Aqui não...

Vamos! disse Rocco, desembainhando a espada.

Ela seguiu-o, tendo também desembainhado a sua por mimetismo e forçaram ambos um caminho através da multidão uivante, que se desorientava e perdia a cabeça. Os dois chegaram, assim, ao coro.

Lutava-se em frente do altar, nos degraus do qual o padre, espantado, deixara cair o cálice. O vaso sagrado ressaltou até um grande corpo vermelho e dourado estendido sem vida nas lajes de mármore negro, no meio de uma poça de sangue que aumentava cada vez mais: Giuliano de Médícis, o belo, o alegre, o encantador Giuliano estava, sem dúvida, morto, mas, apesar disso, um homem vestido de burel, em cima do seu corpo, continuava a enchê-lo de golpes de punhal. Rocco atirou-se a ele com fúria e golpeou. Tocado na coxa, o assassino ergueu-se e quis saltar sobre o agressor, mas um violento empurrão para a frente da multidão aterrorizada, afastou o assassino e impeliu o cadáver pelos degraus do coro abaixo, para onde Fiora se precipitou. Entretanto, Rocco, subitamente travado por uma mulher aos gritos que se lhe pendurou no pescoço, via, sem poder fazer nada, desaparecer o assassino na barafunda como uma serpente no buraco de uma rocha.

Ao mesmo tempo que Fiora, recusando a evidência, procurava desesperadamente socorrer o jovem que amara, alguém se ajoelhou junto do corpo e ela viu uma longa mão seca tocar no pescoço do cadáver.

Está para lá de qualquer socorro disse Demétrios Lascaris. Os conjurados fizeram um bom trabalho. Eu tinha reparado, nas primeiras filas, numas figuras de que não estava a gostar nada...

Tu? murmurou Fiora, estupefacta. Mas, que fazes tu aqui?

Podia fazer-te a mesma pergunta... Vem! Não podemos ficar aqui.

De facto, o combate continuava à sua volta. Rocco batia-se contra uma espécie de rufião com o rosto coberto de cicatrizes. Fiora e Demétrios procuraram Lourenço e viram-no. Diante do bonito e pequeno cardeal, tão pálido e trémulo nas suas rendas, o senhor de Florença, com o manto negro enrolado em redor do braço esquerdo, defendia-se corajosamente, apenas com a sua espada de cerimónia, dos dois padres armados de adagas que o tinham assaltado simultaneamente, quando a Elevação fizera curvar as cabeças, ao mesmo tempo que Pazzi e um tal Bandini atacavam Giuliano. O sangue corria-lhe de um ferimento no pescoço, mas ele não parecia abatido e enquanto se batia passo-a-passo no meio dos candelabros caídos, da cera esmagada e dos objectos de culto espalhados, com olhar negro ardendo com um fogo furioso no rosto cor de azeitona, superiorizava-se aos inimigos que o rodeavam e aos que procuravam ainda transpor a balaustrada do coro para se aproximarem dele. Atacados também eles, os seus amigos batiam-se no lado de lá desta e não o podiam ajudar. O perigo era extremo.

A mim, Médícis!... Palie!Palie! berrou ele e o velho grito a reunir da sua família soou pelas abóbadas do santuário acima.

Apenas alguns gritos esparsos lhe responderam. Fiora, aterrorizada, compreendeu que ele estava perdido. Fazia frente a quatro adversários e estava a ficar sem fôlego. Ela ia correr para ele para que, pelo menos, tivesse uma espada a sério, enquanto Rocco acabava com o seu adversário, quando, saltando das cadeiras do coro que tinham escalado, os dois irmãos Cavalcanti chegaram como duas balas de canhão e conseguiram resgatar o amigo. Lourenço pôde respirar, já que, perante aquele socorro inesperado, os dois padres António de Volterra e Stefano, preceptor dos Pazzi abandonaram a refrega visto as suas adagas não serem desafio para espadas de combate. Fiora aproveitou para correr na direcção de Lourenço e, pegando na sua espada pela lâmina, entregou-lha:

Toma! Lutas melhor com isto e eu não me sei servir dela!

Fiora! murmurou ele com uma súbita doçura que aqueceu o coração da jovem, mas gritando-lhe logo a seguir que se afastasse, que se pusesse a salvo. Pelo lado direito do coro, um grupo armado, à cabeça do qual Fiora reconheceu Francesco Pazzi, acorria ao morticínio. Desta vez eram, pelo menos, vinte!

Enquanto Demétrios, que gritara ”Eu encarrego-me dela!”, afastava a jovem, Rocco transpôs a balaustrada com um ligeiro salto e aterrou em frente do banqueiro:

Começo a ficar farto de ti! gritou ele enquanto atacava furiosamente. Mas, saído não se sabia de onde, um belo jovem, soberbamente vestido, interpôs-se entre os dois homens em riscos de ser ferido:

Deixai este cão malcheiroso para mim, messer! gritou ele pondo-se em guarda. O sangue na minha espada pertence a Giuliano. Acabo de a ensopar nele, jurando que o seu assassino morrerá às minhas mãos. O meu nome é Francesco Nori!

Para não lhe dificultar os movimentos, Rocco afastou-se e viu-se perante outros dois adversários.

Força, jovem, mas não falheis e não escorregueis no sangue! Isto está cheio dele... e, por Deus! acrescentou ele trespassando o seu primeiro inimigo façamos com que haja ainda mais.

Mal-grado a ajuda recebida, o combate continuava desigual. O Magnífico fraquejava e o seu peito magro arquejava com um som de forja. Tinham-no empurrado para fora do coro e arriscava-se a ser apanhado por trás.

Para a sacristia, Monsenhor! gritou Demétrios que, deixando Fiora ao abrigo de uma coluna, esgrimia, também ele, com a sua adaga. Fechai-vos na sacristia e esperai por socorro!

Lourenço recuou e, colocando-se entre os homens que se batiam por ele, começou a bater em retirada, não sem abater dois inimigos à sua passagem.

Bravo apreciou Rocco, que era entendedor.

Pelo seu lado, acabava de estender um nas lajes negras. O círculo de assaltantes teve, então, um instante de hesitação e o grupo dos Médicis, aproveitando essa fraqueza momentânea, escapou-se e atingiu, a correr, a nova sacristia cuja pesada porta de bronze, obra recente e admirável de Luca della Robia, se fechou sobre eles. Os seus perseguidores assentaram nela os punhos das suas espadas.

Vem sussurrou Demétrios. Temos de nos pôr a salvo. Não havia mais nada a fazer. Rocco, levado pela batalha, seguira Lourenço para a sacristia cercada pelos conjurados. Chegar à saída era impossível porque a luta continuava ao longo da nave. Acompanhando Demétrios, Fiora desapareceu a seguir a ele por trás do altar, no qual, meio deitado, o jovem Riario, mais morto do que vivo, abraçava, soluçando, o grande Cristo de prata maciça. Ninguém lhe prestava atenção. Ali chegados e abrigados por baixo da toalha bordada, os dois companheiros examinaram a situação. O mais grosso da agitação tinha a sacristia como centro e a nave começava a esvaziar-se, já que alguns dos combatentes escolhiam a fuga. O fluxo retirava, abandonando os despojos: corpos sangrando, dispersos no meio de armas inúteis, de véus de mulheres rasgados e espezinhados, de flores esmagadas e de jóias quebradas que mendigos, rastejando como larvas, se apressavam a recolher. Através das portas monumentais, apercebia-se a praça ensolarada, de onde vinha um barulho terrível, prova de que se lutava ali firmemente. Dir-se-ia que toda a cidade estava ali.

Como é possível que os Médicis tenham vindo sem guarda? sussurrou Fiora. Onde estão Savaglio e os seus homens? Onde está o magistrado de justiça? Continua a ser Petrucchi?

Demétrios encolheu os ombros:

Ninguém imaginaria um ataque durante a missa. Savaglio deve estar no palácio. Quanto a Petrucchi, a acreditar na Vacca que já está a tocar, deve estar na Senhoria com as portas bem fechadas... Vem, sei de um esconderijo melhor do que este para esperarmos o fim disto tudo.

Arrastando a jovem, o grego pôs-se a correr, meio curvado, ao longo da nave lateral, até à pequena escadaria escura que ia dar à Cantoria, a tribuna onde os cantores e os músicos se reuniam em redor do órgão. Esta estava vazia, mas a desordem proclamava a partida precipitada dos seus ocupantes. Os instrumentos de música juncavam o solo, misturados com as partituras.

Sino da prisão. Tocava em caso de incêndio ou de outra catástrofe.

Sobre uma grande estante de bronze estava aberta a música de um motete cujas notas deviam ter ficado estranguladas nas gargantas dos cantores: no entanto, uma bela obra, escrita recentemente por messirejean Ockeghem, mestre de capela do Rei de França e enviado por este a Lourenço para a festa da Páscoa. Tudo aquilo abandonado.

Se houve luta aqui comentou Demétrios foi para quem ver quem chegava primeiro à escada! Sentemo-nos, queres? acrescentou ele com uma humildade súbita. Gostaria de saber por que milagre te encontro em Florença... se me quiseres dizer?

Fiora tirou o seu lenço para enxugar o rosto onde o suor se misturava com a poeira. Há muito que o seu chapéu desaparecera na multidão e a rede, com o peso dos seus cabelos, era difícil de transportar. Os seus olhos cinzentos pousaram-se no grego com uma curiosidade onde havia um certo divertimento. Ele envelhecera durante aqueles últimos meses e os seus olhos escuros estavam cheios de melancolia:

Por que não havia de querer? disse ela docemente, pousando os seus dedos no punho nodoso do seu antigo amigo: O sangue que corre aqui mudou?

Por um momento pensei que sim, mas fui punido por isso, porque transporto comigo arrependimentos que são quase remorsos!

Eu sei em que estás a pensar. Estás a pensar naquela cena infeliz em Morat, onde nos dilacerámos mutuamente na tenda vazia do Temerário.

Exactamente!

Tens de esquecer, Demétrios, como eu própria esqueci. Correu tanta água por baixo das pontes, correram tantas nuvens de um lado ao outro do meu horizonte! Ficaste contente, há bocado, por me veres?

Que pergunta!

Eu também fiquei muito feliz. Foi um pouco de Sol depois dos dias negros que acabo de viver. Portanto, como vês, é a única coisa que conta! Tu és tu, eu sou eu e estamos de novo juntos.

Sem responder mas com os olhos marejados de água, ele pôs os seus grandes braços à volta dela e apertou-a contra o peito. Ficaram assim um instante, sem se mexerem, esperando que a emoção comum se apaziguasse. Nunca antes Demétrios tivera para com Fiora aquele gesto do pai que reencontra a filha que pensava perdida. A sua afeição, até então, evitara os gestos e ainda mais as palavras. Fora necessária aquela prova para que o grego compreendesse o lugar que aquela jovem criatura ganhara no seu coração.